Estado democrático de direito ? pluralismo jurídico, individualização de estilos de vida e o mosaico das famílias brasileiras

AutorRenata de Lima Rodrigues
Páginas11-27
CAPÍTULO 1
ESTADO DEMOCRÁTICO DE
DIREITO PLURALISMO JURÍDICO,
INDIVIDUALIZAÇÃO DE ESTILOS
DE VIDA E O MOSAICO
DAS FAMÍLIAS BRASILEIRAS
No romance Stiller, Max Frish faz o promotor público perguntar: “O que o homem faz com o
tempo de sua vida? Uma questão da qual eu mal tinha consciência, ela simplesmente me irri-
tava”. Frish faz essa pergunta no indicativo. O leitor reexivo, inquietando-se consigo mesmo
confere-lhe uma versão ética: “O que devo fazer com o tempo de minha vida?” Durante muito
tempo, os lósofos acharam que dispunham de meios adequados para tal pergunta. No entanto,
hoje, após a metafísica, a losoa já não se julga capaz de dar respostas denitivas a perguntas
sobre a conduta pessoal ou até coletiva. (HABERMAS, 2004, p. 03).
A séria releitura pela qual passa o direito privado nas últimas décadas é tomada
pelos doutrinadores como fruto da necessidade de adequação dos institutos juspri-
vatísticos ao paradigma do Estado Democrático de Direito.
A densif‌icação normativa dos dispositivos presentes na Constituição de 1988,
que num primeiro momento atingiu apenas o direito público e as questões de ordem
pública atinentes ao direito privado, provoca agora uma reestruturação desse ramo
do Direito como um todo, conformando não só os parâmetros de interpretação e
aplicação da norma, mas sua própria fundamentação (RODRIGUES, RÜGER; 2004,
p.12-13).
A consequência de tal fenômeno é que o Estado Democrático de Direito passa
a ser o marco teórico para o estudo de movimentos que preconizam a “constitucio-
nalização do direito civil”1, forçando a instrumentalização de institutos basilares,
1. Nas palavras de Paulo Luiz Netto Lobo, “A constitucionalização do Direito Civil, entendida como inserção
constitucional dos fundamentos de validade jurídica das relações civis, é mais do que um critério her-
menêutico formal. Constitui-se a etapa mais importante do processo de transformação, ou de mudanças
de paradigmas, porque passou o direito civil, no trânsito do estado liberal para o social” (LÔBO, 2003,
p. 216). É certo que tal fenômeno ou sua nomenclatura são criticados por parte da doutrina, pois af‌irmar
que o direito civil contemporâneo é constitucionalizado pode nos levar a crer que este ramo ordinário do
Direito nunca esteve submetido à força hierarquicamente superior da Constituição, subvertendo a vigente
ordem normativa. Para alguns críticos, as transformações que vêm modelando o caráter do direito civil
hodiernamente são fruto simplesmente da mudança de paradigma de nossa organização política, através
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PLANEJAMENTO FAMILIAR: LIMITES E LIBERDADE PARENTAIS • RENATA DE LIMA RODRIGUES
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como a propriedade, o contrato e a família, os quais se encontram atualmente fun-
cionalizados ao desenvolvimento pleno da pessoa humana, com f‌incas no princípio
fundamental da dignidade da pessoa humana.
Desta feita, não sem razão, a evolução do regime político brasileiro – uma re-
pública que se apresenta como Estado Democrático de Direito e que tem como fun-
damentos primordiais a defesa do pluralismo e a promoção da dignidade da pessoa
humana, dentre outras causas, é reiteradamente citada pelos doutrinadores de direito
privado como substrato da crise do direito civil2 experimentada nas últimas décadas.
Ao lado do fundamento da dignidade da pessoa humana, que marca a conota-
ção de nosso Estado como personalista, o pluralismo se apresenta em nosso texto
constitucional como outro fundamento da república. A conjugação destes dois pres-
supostos força uma revolução estrutural e hermenêutica nas instituições de direito
privado, que pode ser resumida através da af‌irmação de que, no Estado Democrático
de Direito brasileiro, as tradicionais dicotomias oitocentistas entre ser e dever-ser,
e ainda entre público e privado, cedem espaço a um sistema que se operacionaliza
a partir de uma necessária complementariedade entre público-privado e entre ser e
dever-ser para reduzir a tensão entre faticidade e validade.
Assim sendo, as instituições jurídicas passam a se revelar sempre como instru-
mentos garantidores e promotores do princípio da dignidade da pessoa humana,
aqui, inexoravelmente, compreendido como norma que comanda a garantia de
iguais espaços de liberdade de atuação indistintamente distribuídos a todos para a
realização de seus projetos de vida boa ou de vida digna na maior medida possível,
em um ambiente de intersubjetividades compartilhadas, que devem coexistir de
forma harmônica e pacíf‌ica:
da evolução do Estado Social até a inauguração do atual Estado Democrático de Direito, que se funda
em uma ordem de coisas, em tudo e por tudo, diversa daquela instalada pelo Estado Liberal, em vigor
no período das grandes codif‌icações oitocentistas. Contudo, defensores do movimento, como Gustavo
Tepedino, defendem a “constitucionalização”, af‌irmando: “A adjetivação atribuída ao direito civil, que se
diz constitucionalizado, socializado, despatrimonializado, se por um lado quer demonstrar, apenas e tão
somente, a necessidade de inserção no tecido normativo constitucional e na ordem pública sistematica-
mente considerada, preservando, evidentemente, a sua autonomia dogmática e conceitual, por outro lado
poderia parecer desnecessária e até errônea. Se é o próprio direito civil que se altera, para que adjetivá-lo?
Por que não apenas ter a coragem de alterar a dogmática, pura e simplesmente? Af‌inal, um direito civil
adjetivado poderia suscitar a impressão de que ele próprio continua como antes, servindo os adjetivos para
colorir, como elementos externos, categorias que, ao contrário do que se pretende, permaneciam imutáveis.
A rigor, a objeção é pertinente, e a tentativa de adjetivar o direito civil tem como meta apenas realçar o
trabalho árduo que incumbe ao intérprete. Há de se advertir, no entanto, desde logo, que os adjetivos não
poderão signif‌icar a superposição de elementos exógenos do direito público e privado, de tal maneira a se
reelaborar a dogmática do direito civil” (TEPEDINO, 2004, p. 22).
2. César Fiúza leciona que: “A crise do Direito Civil pode ser analisada sob diversos aspectos. Em primeiro
lugar, a crise das instituições do Direito Civil, basicamente de seus três pilares tradicionais: a autonomia
da vontade, a propriedade e a família. Em segundo lugar, a crise da sistematização. Em terceiro lugar, a
crise da interpretação. (...) Veremos, entretanto, que estes três pilares entraram em crise, principalmente
diante do paradigma do Estado Democrático de Direito, o que veio a acarretar graves consequências gerais
e, especif‌icamente, para a interpretação do Direito Privado”. (FIUZA, 2003, p. 24).
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