Capítulo 10 - Cláusula Penal: Contratos de Consumo e Contratos Interempresariais

Páginas257-318
CAPíTUlO 10
ClÁUSUlA PENAl: CONTRATOS DE CONSUMO
E CONTRATOS INTEREMPRESARIAIS
10.1 OS TRÊS SUJEITOS CONTRATUAIS
O Código Civil de 1916 é tido como o último dos códigos dos oitocentos. De fato,
imbuído do espírito napoleônico do Code de 1804, preconizava a igualdade formal de
todos perante a lei. Em um viés universalizante, a modernidade conferia abstratamente
a todos os homens a igualdade e a liberdade no campo do direito privado como forma
de supressão das desigualdades provenientes da distinção entre a nobreza e as classes
inferiores. A presença do Estado como fornecedor monopolista do arcabouço normativo
era imprescindível para institucionalizar o discurso da segurança jurídica.
Mas o conceito global de sujeito de direitos e cidadão abstrato há muito entrou
em crise. Na exata dicção de Ricardo Lorenzetti, “a crise das visões totalizadoras fez ex-
plodir todo o texto unif‌icador. Os interesses são individuais ou setoriais, perfeitamente
diferenciados uns dos outros”.1
A pós-modernidade é marcada pela fragmentação. Sai de cena o “cidadão comum”
e entra em cena a pessoa, dotada de situações subjetivas existenciais e patrimoniais.
Para cada papel que exercite há uma lei ou microssistema que regule parcialmente o seu
agir, sempre submetido ao texto constitucional e ao império dos direitos fundamentais
provenientes do direito interno ou do internacional.
O Código Civil de 2002 é um código central despido da pretensão totalitária de
exaurir dentro de si o conjunto do direito privado brasileiro. Como sintetiza Clóvis do
Couto e Silva,2 a sua importância reside em dotar a sociedade de uma técnica legislativa
e jurídica que possua unidade valorativa e conceitual, ao mesmo tempo em que infunda
nas leis especiais essas virtudes, permitindo à doutrina poder integrá-las num sistema,
entendida, entretanto, essa noção de modo aberto.
Não poderia ser de outra forma. O pluralismo é o signo da pós-modernidade e o
direito emerge de diversos sítios. Para uma sociedade complexa, surge a necessidade de
atuação de um sistema jurídico igualmente complexo, porém ef‌iciente, a f‌im de que várias
normas convivam de forma coordenada e possam, pelo menos no que tange à matéria
obrigacional, realizar a f‌inalidade constitucional de edif‌icação de uma sociedade livre,
justa e solidária (art. 3º, I, CF).
1. LORENZETTI, Ricardo. Fundamentos do direito privado, p. 53.
2. COUTO E SILVA, Clóvis do. O direito civil brasileiro em perspectiva histórica e visão de futuro, p. 30. Explica o autor
que “é reconhecida ao contrato uma dimensão conceitual plural e não homogênea. O contrato são os contratos”
(op. cit., p. 133).
CLÁUSULA PENAL – A PENA PRIVADA NAS RELAÇÕES NEGOCIAIS • NELSON ROSENVALD
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Está em curso o fenômeno da pluralização da subjetividade jurídica. Todos somos
pessoas em todas as circunstâncias de nossas vidas, esta é uma noção absoluta. Mas, nas
relações contratuais, as qualif‌icações de civis, consumidores ou empresários são estatu-
tárias e relacionais, pois, exemplif‌icativamente, só poderá ser chamado de consumidor
quem estiver situado em determinada relação (relação de consumo) e numa determinada
posição (status), tudo dependendo, portanto, das circunstâncias do caso. Todos somos
pessoas em qualquer circunstância, mas em cada contrato serão as circunstâncias que
constituirão o f‌iltro pelo qual serão sopesados os princípios e as regras contratuais, tudo
conforme os papéis sociais desempenhados pelos sujeitos contratantes.3
Após invocar o diálogo de fontes de Eric Jayme como forma de expressar a neces-
sidade de uma aplicação das leis de direito privado coexistentes no ordenamento brasi-
leiro, Cláudia Lima Marques ensina que a construção de um direito privado depende do
grau de domínio dos aplicadores do direito sobre o sistema de coexistência do direito
civil, do empresarial e do consumidor, “pois a reconstrução do direito privado brasileiro
identif‌icou três sujeitos: o civil, o empresário e o consumidor”.4
A opção legislativa para o Código Civil foi pela unif‌icação das obrigações civis e
empresariais, porém com exclusão de regulação das relações consumeristas. Isso signif‌ica
que o Código de 2002 disciplina as relações intercivis e interempresariais (entre iguais),
mas abdica de cuidar das relações entre consumidores e fornecedores (desiguais), incidin-
do microssistema legislativo específ‌ico para tanto, o Código de Defesa do Consumidor.
A Lei da Liberdade Econômica (Lei n. 13.874/19) realçou o fenômeno da plurali-
zação da subjetividade jurídica, ao inserir no art. 421-A uma distinção entre contratos
civis e empresariais, que, em comum, presumem-se paritários e simétricos. Pela primeira
vez, explicitamente o Código Civil realiza tal distinção, já que com a unif‌icação das
obrigações civis e empresariais empreendida em 2002, tornou-se um macrossistema,
que trata das relações civis e empresárias, complementado pelos microssistemas e leis
esparsas. Porém, a tendencial simetria das relações interempresariais é menos frequen-
te no campo das relações intercivis. Todavia, o status de cada um desses personagens
é essencialmente dinâmico. Aquele sujeito de direito que, em determinada relação
obrigacional, desempenha o papel de empresário, poderá atuar como civil em outro
contrato, nada impedindo que, em algum momento, se identif‌ique como consumidor.
O mesmo tipo contratual ensejará aplicação de normas distintas, conforme a mutação
subjetiva e f‌inalística da hipótese de incidência. Quer dizer, a igualdade ou a diferença
serão visualizadas na concretude do caso, de acordo com o papel a ser desempenhado
pelo agente econômico comparativamente ao outro agente econômico de determinada
3. MARTINS-COSTA, Judith. O método da concreção e a interpretação do contrato, p. 142.
4. MARQUES, Claudia Lima. O novo modelo de direito privado brasileiro e os contratos, p. 55. A autora explicita que
“outro elemento novo, neste olhar mais pós-moderno dos contratos e do campo de aplicação do Código Civil de
2002, é a função. Em outras palavras, como a relação pode ser civil, comercial e de consumo, não há como retirar
da análise do aplicador da lei a visão funcional desta relação e do contrato daí resultante. Há uma mudança de pa-
radigma no fato de o direito privado atual concentrar-se não mais no ato (de comércio ou de consumo/destruição)
e sim na atividade, não mais naquele que declara (liberdade contratual), mas no que recebe a declaração (conf‌iança
despertada), não mais nas relações bilaterais, mas nas redes, sistemas e grupos de contratos. Há uma nova visão
f‌inalística e total (holística) da relação contratual complexa atual” (op. cit., p. 58).
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CAPítUlO 10 • ClÁUSUlA PEnAl: COntRAtOS dE COnSUMO E COntRAtOS IntEREMPRESARIAIS
relação jurídica. Um contrato de compra e venda será civil, empresarial ou de consumo
conforme a posição que se encontre naquela obrigação específ‌ica.
O contrato é o ponto de encontro de direitos fundamentais: de um lado a autono-
mia privada, derivativo da liberdade no campo das relações civis; de outro, a igualdade
material e a solidariedade, princípios que iluminam a boa-fé objetiva, função social dos
contratos e equilíbrio contratual. Em sede de ef‌icácia horizontal dos direitos fundamen-
tais nas relações privadas, a maior ou menor prevalência da autonomia privada oscilará
conforme estivermos diante de contratos empresariais (AP forte), contratos civis (AP
média) e contratos massif‌icados, notadamente os de consumo, administrativos ou que
envolvam mercados regulados, nos quais a autonomia privada será fraca. Fatalmente, a
distinção entre contratos empresariais, civis e de consumo será um importante indício
para a ampliação ou não do raio de autodeterminação das partes. Todavia, a adequação
entre a autonomia privada e os princípios sociais do contrato também dependerá de uma
avaliação objetiva dos interesses econômicos envolvidos, poderes decisórios e forma de
contratação. Ilustrativamente, mm acordo de acionistas é um contrato empresarial onde
a boa-fé terá grande importância.5
Calixto Salomão Filho esclarece que esta contínua movimentação é dada pela tensão
constante entre interesses que exigem tratamento diferenciado (ou pela prof‌issionalidade
– como era o caso dos comerciantes, agora empresários – que requer em muitos casos que
a eles seja dado tratamento jurídico mais rigoroso ou, ao contrário, pela necessidade de
proteção especial de determinados grupos de hipossuf‌icientes, como é o caso da legislação
do consumidor) e as forças constantes, historicamente importantes no campo do direito
civil, no sentido da generalização e da universalização de tratamento jurídico uniforme.6
Pode-se dizer hoje que o direito dos contratos se depara com uma dualidade de
espaços normativos, diferenciados pelo distinto grau de acolhimento da liberdade con-
tratual. Há uma área em que a autonomia negocial é consagrada com muita amplitude e
outra em que vigoram limites especiais de conteúdo fortemente restritivos da liberdade
de modelação. As estipulações que são perfeitamente válidas em contratos negociados
e entre partes tendencialmente iguais, serão feridas de nulidade quando caem dentro
do âmbito de aplicação de um certo modo de contratar – a adesão a cláusulas contra-
tuais gerais –, ou à natureza funcional da relação (como a relação de consumo). Nessas
hipóteses a liberdade dos privados se submeterá a um controle de conteúdo, dentro de
limites mínimos de equilíbrio contratual.7
Destarte, cumpre-nos examinar este sistema de direito privado tripartido. Três
protagonistas que culminam por imprimir uma divisão entre um direito civil geral (a
5. Rodrigo Fernandes Rebouças aduz que urge “implementar a aplicação de uma gradação do poder de autonomia
privada conforme os interesses econômicos envolvidos, os poderes de decisão, a forma da contratação, as cir-
cunstâncias negociais, entre outros aspectos socioeconômicos”. In Autonomia privada e a análise econômica do
contrato, p. 39.
6. SALOMÃO FILHO, Calixto. A fattispecie empresário no novo Código Civil, p. 127-128. Enfatiza o Professor das
Arcadas que “em presença das enormes disparidades econômicas geradas pela sociedade moderna, a generalidade
de tratamento atribuída pelas normas civis clássicas, ao invés de uma garantia do cidadão, com frequência revela
ser um grave risco e uma importante fonte de aprofundamento dos desequilíbrios sociais e econômicos” (op. cit.,
p. 128).
7. SOUSA RIBEIRO, Joaquim de. Direito dos contratos, op. cit., p. 227.

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