Capítulo 4 - A superação do Modelo Unitário da Cláusula Penal

Páginas73-94
CAPíTUlO 4
A SUPERAÇÃO DO MODElO UNITÁRIO
DA ClÁUSUlA PENAl
4.1 O MODELO UNITÁRIO
No estudo levado a efeito no item 4 do Capítulo I, constatamos que a doutrina bra-
sileira pré e pós-Código Civil de 2002, salvo raras exceções, mantém aceso debate sobre
a f‌inalidade da cláusula penal. Ora acentuando sua função indenizatória, ora a f‌inalidade
coercitiva. No primeiro caso, acaba por confundir a cláusula penal com uma pré-estimativa
convencional de indenização. No segundo, o montante ajustado é tido como uma pres-
tação que impõe uma pena ao devedor, uma sanção de caráter compulsório, revelando-se
secundária a função de estimativa de danos. Para um terceiro grupo de autores, aos quais
poderíamos chamar de sincréticos, a pena convencional seria, simultaneamente, pena e
coerção, uma espécie de indenização sancionatória. Ainda há aqueles que relevam a função
indenizatória, atribuindo à coerção uma posição secundária e eventual.1
Em Portugal, França, Espanha e Itália, há certa concordância sobre a bifunciona-
lidade da cláusula penal: f‌igura unitária, com perf‌il de indenização sancionatória; um
misto de pré-liquidação de danos e coerção ao cumprimento da prestação.2
A cláusula penal, seja ela uma penalidade, uma pré-avaliação de danos ou uma con-
venção de limitação de responsabilidade, apresentará uma feição de quantia indenizatória,
estabelecida previamente por convenção e de modo invariável, 3 atuando contra ou a favor
do devedor, dependendo de sua eventual superioridade ou inferioridade ao dano concreto.
Nessa linha, argumenta João Calvão da Silva que
a vontade das partes desempenha um papel determinante na função cominatória da cláusula penal
que é tanto maior quanto mais o seu montante ultrapassar o das perdas e danos calculados pelas regras
gerais. Se bem que a xação do forfait revista um caráter aleatório – podendo essa álea aproveitar ao
devedor, se o montante da cláusula penal for menor que o prejuízo sofrido pelo credor, ou a este, se
aquele montante for maior”. 4
1. Como representantes do primeiro grupo: Tito Fulgêncio e Pontes de Miranda; do segundo grupo: Caio Mário da Silva
Pereira, Fábio Ulhoa e Arnaldo Rizzardo; do terceiro grupo: Clóvis Beviláqua e Maria Helena Diniz e Carlos Roberto
Gonçalves; no quarto grupo: Orlando Gomes e Sílvio Rodrigues, Gagliano & Pamplona (cf. Cap. I, item 4).
2. “Penalty clauses are known and enforced in all civil law jurisdictions. The individual rules within the national
jurisdictions allow the adoption of penalty clauses for both purposes, i.e. the purpose of putting pressure in the
debtor to perform his obligation or deterring him from non-performance as well as the purpose of making it easier
for the creditor to recover his damages suffered” BASEDOW, Jurgen; HOPT, Klaus; ZIMMERMANN, Reinhard.
The Max Planck Encyclopedia of European Private law, v. II, p. 1260.
3. Com exceção das hipóteses em que se mostrar desproporcional ao dano produzido (art. 413, CC).
4. SILVA, João Calvão da. Cumprimento e sanção pecuniária compulsória, p. 269.
CLÁUSULA PENAL – A PENA PRIVADA NAS RELAÇÕES NEGOCIAIS • NELSON ROSENVALD
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Para os que comungam de tal raciocínio, isso signif‌ica que a cláusula penal será
invariavelmente reconhecida como indenização. Dito de outro modo, na eventualidade
de o valor estabelecido pelas partes ter excedido ao dano efetivo do credor, além de pre-
f‌ixação de ressarcimento, a pena atenderia a uma função coercitiva, sancionatória. Isso
implica af‌irmar que o caráter compulsório da pena convencional seria de cariz aleatório,
dependendo da constatação a posteriori ao inadimplemento, se o montante convencio-
nado superou a extensão do dano sofrido.
Assim, A e B estipulam uma obrigação cuja cláusula penal é de R$1.000,00. Caso
o dano sofrido pelo credor em razão do ato ilícito esteja na ordem de R$500,00, o fato
de a pena ter excedido o dano efetivo em R$500,00 implicará uma sanção – uma inde-
nização sancionatória. Mas, se o dano real alcançou a soma de R$1.000,00, será apenas
indenização. É despiciendo o intuito das partes ao contratar.
Em crítica ao referido discurso, praticamente um “mantra jurídico”, Antônio
Pinto Monteiro assevera que sob este ângulo, a cláusula penal não teria qualquer
autonomia em relação à obrigação de indenizar, pois ainda que a pena fosse devida
na ausência de qualquer dano, isto consistiria em “uma simples particularidade
da f‌igura, explicável porque a pena constitui uma indemnização antecipadamente
convencionada”.5
De fato, adotando-se a concepção abstrata da cláusula penal, torna-se irrelevante
perquirir a feição que as partes aspiraram lhe imprimir, seja com o intuito de indeni-
zação, seja com o de coerção. Vale dizer, por mais que os contratantes tenham f‌ixado o
valor da pena em um quantum consideravelmente superior à expectativa de danos, em
caso de descumprimento a cláusula penal sempre seguirá o regime da pré-liquidação de
ressarcimento. A índole coercitiva e compulsória da pena não afetará o seu manequim de
indenização. É a prevalência de uma elaboração neutra e asséptica da cláusula penal, na
qual a preponderância de uma ou outra f‌inalidade em nada altera o seu raio de ef‌icácia
no mundo concreto.
Essa adesão maciça ao enquadramento da cláusula penal como substitutivo de
ressarcimento é reforçada pelo próprio legislador. A cláusula penal é tida com a f‌ixação
antecipada e invariável – à forfait – do montante de indenização exigível pelo credor. Na
arquitetura legislativa vigente, a cláusula penal está localizada no capítulo do inadimple-
mento das obrigações (Livro I, Título IV), conjugado com o exame das perdas e danos.
Sintoma deste raciocínio é a própria letra do art. 416: “Para exigir a pena con-
vencional, não é necessário que o credor alegue prejuízo”. Isto é, se a pena é devida
independentemente do montante do dano real, nada mais ela é do que uma cláusula de
prévia liquidação de danos. Segundo a perspectiva corrente na doutrina, caso a pena
convencional tenha valor claramente superior ao do dano efetivo, surgirá a função co-
ercitiva, que (paradoxalmente!) atuará por meio da função indenizatória. A coerção se
situa em plano secundário e eventual.
Essa linha de pensamento é percebida claramente nas palavras de João Calvão da
Silva:
5. MONTEIRO, Antônio Pinto. Cláusula penal e indemnização, p. 293.

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