Capítulo 2 - A função da Cláusula Penal na História

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CAPíTUlO 2
A FUNÇÃO DA ClÁUSUlA PENAl NA HISTóRIA
2.1 O DIREITO ROMANO E O DIREITO MEDIEVAL
2.1.1 A origem da cláusula penal
O direito das obrigações é o setor do direito privado mais inf‌luenciado pelas origens
romanas. Com a cláusula penal não poderia ser diferente, muito pelo contrário. Para-
doxalmente, apesar do extenso desenvolvimento da matéria nos dois últimos milênios,
é em suas origens que persistem as justif‌icativas para a af‌irmação da função da cláusula
penal como tema central de nosso trabalho.
É lugar comum advertir que o conhecimento do passado ajuda a compreender o
presente. Em nossa trajetória, perceberemos que a maior parte dos equívocos relaciona-
dos à compreensão da cláusula penal reside no desvirtuamento de seu modelo jurídico,
da forma pela qual foi encetado no direito romano.
Na Roma antiga os julgamentos sempre tinham como base uma específ‌ica quantia
em dinheiro (omnis condemnatio pecuniaria). A consequência era que um grande número
de promessas contratuais não era executada quando o objeto contratual não detivesse um
valor pecuniário imediato. Assim, o Direito Romano veio em socorro do credor para criar
uma cláusula penal pela qual o devedor declarava pagar uma certa quantia de dinheiro, caso
não cumprisse certa obrigação. Assim, o comportamento desejado se tornava indiretamente
executável. Foram nomeadas como cláusulas penais autônomas. A engenhosidade e pragma-
tismo dos antigos romanos igualmente forjou cláusulas que forneciam uma pré-estimativa
de danos em caso de descumprimento contratual, aliviando o credor da necessidade de
provar o prejuízo realmente sofrido. Estas eram tidas como cláusulas penais acessórias.1
A ancestralidade histórica da cláusula penal é atribuída à stipulatio poenae do direito
romano primitivo. Denis Mazeaud2 assinala que a stipulatio era uma verdadeira pena
privada, uma sanção de caráter repressivo que era devida em sua integralidade, mesmo no
caso da impossibilidade de execução da obrigação pelo fortuito ou de execução parcial. O
rigor da pena era explicado pela função particular que visava assegurar a obrigatoriedade
das relações contratuais cujo objeto fosse outro que não o dinheiro, como as obrigações
de dar, fazer, não fazer, ou de transferir propriedade.3
1. BASEDOW, Jurgen; HOPT, Klaus; ZIMMERMANN, Reinhard. The Max Planck Encyclopedia of European Private
Law, v. II, p. 1.260.
2. MAZEAUD, Denis. La notion de clause pénale, p. 291.
3. Não se poderia falar em certeza quanto a este último requisito, mas apenas em termos de probabilidade, pois o
direito romano, em um primeiro momento, não havia realizado as clássicas distinções entre responsabilidade civil
e penal, nem de responsabilidade contratual e extracontratual (esta última pela lex aquilia).
CLÁUSULA PENAL – A PENA PRIVADA NAS RELAÇÕES NEGOCIAIS • NELSON ROSENVALD
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Segundo Maria Dolores Mas Badia,4 a stipulatio era um negócio eminentemente
formal que se estruturava por meio de uma pergunta solene que o credor fazia ao devedor,
à qual ele respondia com a palavra spondeo. O uso solene de tais palavras determinava
o nascimento da obrigação. Certamente a stipulatio era precedida de um acordo entre
as partes, uma causa. Porém, uma de suas notas mais relevantes era a sua conf‌iguração
como negócio abstrato. Sem qualquer necessidade de provar a causa, era possível exigir o
prometido. O único modo de dar relevância a uma possível ilicitude do credor, falsidade
ou inexistência da causa era a alegação da exceptio doli como defesa.
Assim, faziam-se duas promessas: a primeira, a respeito de determinada presta-
ção; a outra, relativa ao pagamento da pena, em caso de descumprimento da prestação
originária. Trata-se de esquema que remete o perf‌il atual da cláusula penal como f‌igura
acessória de uma obrigação principal.
Antônio Pinto Monteiro5 explica que a stipulatio poena constituía uma sanção
particularmente severa contra o devedor inadimplente. A pena não possuía limites e
poderia acrescer ao cumprimento da prestação principal se houvesse declaração nesse
sentido; não impedia o credor de reclamar uma soma maior, caso o montante da pena
f‌icasse aquém do valor do seu interesse lesado.
Esses traços fundamentais sugerem a importância que o direito romano atribuiu
à cláusula penal como mecanismo de pressão sobre o devedor, de maneira a reforçar o
cumprimento da obrigação e tutelar o interesse do credor. Daí a observação de Savigny:
Qu’en droit romain la clause pénale était en petit une disposition pénale fondée sur la volonté
privée.6
Todavia, a questão que avulta é saber se além de conf‌igurar uma sanção do tipo
coercitivo, em suas origens, a cláusula penal teria visado também a uma função indeni-
zatória, tal como hoje é por muitos concebida, enquanto modelo hábil à pref‌ixação de
perdas e danos.
No magistério de Massimiliano de Luca7 predominava a função de garantia prestada
para o adimplemento da obrigação principal. Se o devedor não respeitasse a palavra assu-
mida pagaria uma quantia determinada na stipulatio. Ela servia como meio compulsivo e
sancionatório, dispensando o credor de comprovar o seu interesse, pois a pena substituía
o valor da prestação inadimplida. O fato de a pena dispensar o credor de provar o seu
interesse não signif‌icava que ela equivaleria a uma f‌ixação antecipada de indenização. Não
se pode conferir a atribuição de certo valor pecuniário a uma prestação com a natureza
de indenização, como se fossem equivalentes.
De fato, observa Gemma Vives Martinez8 que apenas com o advento da doutrina
canônica sobre a usura deu-se alteração da concepção da cláusula penal, passando, então,
4. BADIA, Maria Dolores Mas. La revision judicial de las clausulas penales, p. 22.
5. MONTEIRO, Antônio Pinto. Cláusula penal e indemnização, p. 361.
6. Apud MAZEAUD, Denis. La notion de clause pénale, p. 291. Tradução nossa: “No direito romano a cláusula penal
era, em princípio, uma disposição penal fundada na vontade privada”.
7. LUCA, Massimiliano de. La clausola penal, p. 6.
8. MARTINEZ, Gemma Vives. El juez y el abogado ante la cláusula penal y su moderación. Revista General del Derecho,
p. 40.

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