Capítulo 9 - O Controle da Cláusula Penal

Páginas207-256
CAPíTUlO 9
O CONTROlE DA ClÁUSUlA PENAl
9.1 NOÇÕES INTRODUTÓRIAS
Ao longo deste estudo evidenciamos a grande contribuição da cláusula penal para
a eticização das relações contratuais. Quando delimitada como meio de coerção ao cum-
primento, atua como mecanismo de persuasão, pela ameaça de uma sanção ao devedor
por uma prestação de um valor suf‌icientemente elevado, a ponto de estimular a consci-
ência do adimplemento. Quando estimada como cláusula de liquidação antecipada de
danos, permite aos contratantes o prévio conhecimento do montante da indenização,
independentemente da extensão real dos prejuízos.
Ou seja, na cláusula penal stricto sensu, o credor quer fortalecer a conf‌iança na pala-
vra empenhada pelo devedor; já na cláusula de pref‌ixação de prejuízo, evita-se o recurso
às incertezas de uma avaliação judicial, com prevenção de litígios. Enf‌im, a autonomia
privada conspira no sentido de reforçar a relação obrigacional.
Todavia, a mesma liberdade contratual que confere plasticidade ao modelo jurídi-
co pode ser um perigoso instrumento de opressão negocial. Neste diapasão, Cristiano
Chaves de Farias pondera entre os princípios colidentes ao ressaltar
a importância da cláusula penal nas relações obrigacionais, por lhe conferir maior segurança e, via
de consequência, às próprias relações socioeconômicas. Atente-se, todavia, que essa maior garantia
não poderá, no entanto, desrespeitar as garantias conferidas pelo sistema legal ao devedor. Em outras
palavras, não pode violar a dignidade da pessoa humana do devedor.1
Ao ingressar na relação contratual, os particulares possuem expectativas otimistas
quanto ao cumprimento de suas f‌inalidades. Nesse momento psicológico de euforia, não
raramente o devedor aceitará cláusulas penais excessivas, por acreditar que alcançará o
adimplemento, e a sanção se tornará uma hipótese distante. Já em outras situações, a pena
é determinada em parâmetros razoáveis, mas, em razões de eventos futuros, previsíveis
ou não, ela se torna gravosa ao tempo do inadimplemento.
Em qualquer desses casos, o cumprimento da cláusula penal em sua integralidade con-
duzirá a abusos e iniquidades. A intervenção do Poder Judiciário será no sentido de prestigiar
a equidade, reduzindo a cláusula penal quando manifestamente excessiva. Nas palavras
de Harm Peter Westermann, “de um modo global, a pena convencional, como fenômeno
marginal e caso fronteiriço da autonomia privada, é encarada com crescente desconf‌iança”.2
Há tempos já abandonamos a concepção de ser o devedor invariavelmente a parte
mais frágil da relação obrigacional. Se na maior parte dos casos será ele o contratante
1. FARIAS, Cristiano Chaves de. Miradas sobre a cláusula penal no direito contemporâneo, p. 246.
2. WESTERMAN, Harm Peter. Código civil alemão: parte geral – Direito das obrigações, p. 36.
CLÁUSULA PENAL – A PENA PRIVADA NAS RELAÇÕES NEGOCIAIS • NELSON ROSENVALD
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tutelado, em algumas hipóteses será o credor que se encontrará em posição de fragilidade,
diante de uma cláusula penal de valor irrisório. Cuida-se, também, de uma situação em
que o juiz será convocado para reforçar equitativamente a pena.
Enf‌im, o controle judicial da cláusula penal será dimensionado como uma das
mais interessantes ponderações entre o princípio da autonomia privada e da solidarie-
dade. Uma forma de harmonizar a autodeterminação dos privados com a necessária
correção de cláusulas desproporcionadas ou excessivas. Daí a necessária preocupação
doutrinária em estabelecer parâmetros razoáveis para o acolhimento do poder mode-
rador do Judiciário, para evitar, segundo Maria Dolores Mas Badia, el temor de acoger
una regla tan amplia o tan ambigua que fomente los litigios y frene, por tanto, la marcha
de los negocios.3
9.2 O CONTROLE GERAL DA CLÁUSULA PENAL
Para que possamos cogitar da redução da cláusula penal, temos de primeiramente,
indagar pela sua validade. É fato que só após o exame da conformidade da cláusula penal
ao ordenamento é que podemos avaliar o seu plano de ef‌icácia e a moderação de sua
exigibilidade pelo Poder Judiciário.
Inicialmente, há que se investigar a fase de formação do acordo. A cláusula penal
não pode ser unilateralmente imposta a uma das partes. Trata-se de um modelo jurídico
vinculado às obrigações contratuais, por isso a aquiescência do devedor à pena deve
ocorrer antes da inexecução, mesmo que obtida em ato autônomo e posterior à realização
do negócio jurídico que objetiva garantir.
Em seguida, observamos o consentimento das partes. A ela se aplica a teoria dos
defeitos do negócio jurídico. Pode a pena ser viciada por erro, dolo e coação como a
generalidade dos negócios jurídicos.
Até aí não há qualquer dif‌iculdade. As referidas f‌iguras se relacionam ao volunta-
rismo e à abstração de ordenamentos jurídicos formalmente fundados na autonomia da
vontade. Ao contrário do que sucede na “penalty doctrine” – na qual se nega o enforce-
ment de penalty clauses por invalidade – a abordagem das jurisdições da civil law remete
a discussão das sanções punitivas contratuais nas relações interprivadas ao campo de
sua ef‌icácia. Excepcionalmente, apenas os vícios do consentimento poderiam questionar
aquilo que a soberania da vontade “justamente” determinou.
José de Oliveira Ascensão refere-se a este período como aquele em que
o fundamento da vinculatividade jurídica será encontrado em critérios voluntarísticos, portanto indi-
vidualistas e subjectivos. Pacta sunt servanda passa a ser a chave da validade e ecácia dos contratos.
Os negócios, tal como as leis ou os tratados, produzem efeitos porque foram queridos. Não interessa o
conteúdo dos contratos ou o objeto da vontade, ou a matéria regulada. Não interessa o que se escolheu,
interessa apenas que tenha havido liberdade de escolha. Por isso, naqueles limites muito amplos, os
vícios só poderiam ser referidos à própria vontade.4
3. BADIA, Maria Dolores Mas. La revision judicial de las clausulas penales, p. 164.
4. ASCENÇÃO, José de Oliveira Alteração das circunstâncias e justiça contratual no novo código civil, v. 2, p. 169.
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CAPítUlO 9 • O COntROlE dA ClÁUSUlA PEnAl
No século XX, houve uma reação generalizada a esse estado de coisas. Há um
renovado interesse pela justiça do conteúdo. Diversos modelos jurídicos procuram
preservar o equilíbrio econômico das relações negociais, tais como o controle dos
contratos de adesão, a repressão às cláusulas abusivas, o combate à lesão e a redução
da cláusula penal.
O vício da lesão (art. 157, CC) se aproxima da ideia da redução da pena manifesta-
mente excessiva do art. 413 do Código Civil. Renan Lotufo ensina que
a lesão é caracterizada como uma situação de desequilíbrio entre a prestação e a contraprestação,
grave, que autoriza o prejudicado a anular o negócio, pela simples existência da lesão. Por outro lado,
a comutatividade requer o equilíbrio dessas obrigações recíprocas, chegando-se a falar em igualdade
de sacrifícios. Ocorre que a lesão destrói o equilíbrio das obrigações no nascedouro do negócio. 5
Todavia, duas diferenças são evidentes: a) a lesão é identif‌icada como uma enorme
desproporção entre as prestações ao tempo da contratação. É causa de invalidade por
anulabilidade do negócio jurídico (art. 171, II, CC) ou revisão judicial do negócio jurí-
dico (art. 157, § 2º, CC);6 já a redução da pena excessiva pressupõe um negócio jurídico
válido, mas que se mostra desproporcional ao tempo do inadimplemento, pois a pena
é largamente superior aos danos efetivos. Na primeira, ofende-se o sinalagma genético;
na segunda, o sinalagma funcional; b) a lesão no Código Civil é subjetiva. Não basta a
desproporcionalidade gritante entre as prestações, sendo necessária a demonstração pelo
devedor de sua inexperiência ou necessidade econômica; 7
a redução judicial da pena, a seu turno, contenta-se com a aferição do elemento objetivo da manifesta
excessividade da cláusula penal, sem se cogitar da situação subjetiva do devedor.
Caso o devedor inadimplente possa demonstrar os elementos da lesão, a invalidade
do negócio jurídico poderá lhe ser mais útil do que a mera redução da cláusula penal. De
fato, obtempera Antônio Pinto Monteiro que, quanto aos negócios usurários,
entendemos que, preenchidos os respectivos pressupostos, nada obsta a que o devedor, em vez de
solicitar a redução da pena, peça a anulação da cláusula penal. A sua aplicação favorecê-lo a mais
do que a redução judicial da pena, uma vez que esta pode deixar subsistir algum excesso, em relação
ao valor do dano causado, ao passo que a anulação da cláusula força o credor a ter de socorrer-se da
indemnização, nos termos gerais, carecendo, para o efeito, de provar o dano sofrido e não obtendo
mais do que o necessário à reparação deste.8
Em outra passagem, examinaremos situações em que a cláusula será nulif‌icada
por lesão à ordem pública, em razão da tutela especial que determinados contratantes
merecem pela sua posição de assimetria negocial. Nesses setores, não podemos preservar
a mesma liberdade contratual das relações privadas.
5. LOTUFO, Renan. Código civil comentado, v. 1, p. 439.
6. Cada vez mais a doutrina tende a especializar contratos interprivados e interempresariais: I Jornada de Direito
Comercial – Enunciado 28: “Em razão do prof‌issionalismo com que os empresários devem exercer sua atividade,
os contratos empresariais não podem ser anulados pelo vício da lesão fundada na inexperiência”.
7. IV Jornada de Direito Civil – Enunciado 290: “A lesão acarretará a anulação do negócio jurídico quando verif‌icada,
na formação deste, a desproporção manifesta entre as prestações assumidas pelas partes, não se presumindo a
premente necessidade ou a inexperiência do lesado”.
8. MONTEIRO, Antônio Pinto. Cláusula penal e indemnização, p. 719.

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