Capítulo 7 - Delimitação perante modelos jurídicos próximos

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CAPíTUlO 7
DElIMITAÇÃO PERANTE
MODElOS JURíDICOS PRóxIMOS
7.1 A OBRIGAÇÃO ALTERNATIVA
O art. 410 do Código Civil determina: “Quando se estipular a cláusula penal para o
caso de total inadimplemento da obrigação, esta converter-se-á em alternativa a benefício
do credor” – redação idêntica ao do art. 918 do Código Civil de 1916.
A leitura apressada do dispositivo pode conduzir o estudioso do direito a confundir
a cláusula penal como uma espécie de obrigação alternativa a favor do credor. Mas há
claras distinções entre os dois modelos jurídicos.
Tem-se a obrigação alternativa quando várias coisas estão submetidas ao vínculo
obrigacional de tal modo, porém, que só uma entre elas pode ser objeto do pagamento.
Ou seja, no momento genético da constituição da relação obrigacional as duas ou mais
prestações são devidas disjuntivamente, pois com o adimplemento de uma delas a obri-
gação será cumprida. Segundo Renan Lotufo, “como é a esfera de liberdade do devedor
que sofre a carga da obrigação, em geral cabe a este a escolha”.1
Vimos que a cláusula penal é uma obrigação facultativa com escolha do credor. É
uma f‌igura singular e bem apartada das obrigações alternativas. Ao contrário destas, o
objeto da obrigação facultativa é determinado desde a origem. O devedor só deve uma
prestação. Mas, caso ocorra o descumprimento da obrigação, terá o credor a faculdade
de substituir a prestação originária por outra, de caráter supletivo, que já estava previa-
mente convencionada.
Como bem exemplif‌ica Serpa Lopes,
nas alternativas, duas ou mais coisas são objeto da obrigação: devo uma saca de milho ou uma de
feijão; o devedor, se lhe competir a escolha, realiza a obrigação elegendo uma das duas prestações.
Na facultativa, tudo se passa de maneira diversa: só uma coisa se encontra vinculada: obrigo-me a en-
tregar uma partida de açúcar, sendo que, se me convier, poderei substituí-la por tantas outras de café.2
Na cláusula penal, a pena é a outra prestação que se conf‌igura em favor do credor
ao tempo do inadimplemento. Por se tratar de um direito potestativo, o credor poderá
deliberar por insistir no cumprimento da obrigação pela via da tutela específ‌ica.
Quando o art. 410 do Código Civil se refere a uma “alternativa em benefício do
credor”, quis apenas dizer que a cláusula penal é uma obrigação com faculdade alter-
1. LOTUFO, Renan. Código civil comentado, v. II, p. 252.
2. SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de direito civil: obrigações em geral, v. 2, p. 81.
CLÁUSULA PENAL – A PENA PRIVADA NAS RELAÇÕES NEGOCIAIS • NELSON ROSENVALD
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nativa em favor do credor. A pena constitui uma prestação que o credor pode exigir em
alternativa à prestação devida, uma vez que esta não seja satisfeita.3
Pinto Monteiro leciona que
ao exercer a sua faculdade alternativa o credor está a colocar a pena no lugar da prestação inicial, pelo
que o cumprimento daquela, impedi-lo-á, obviamente, de exigir a indemnização. O que signica,
portanto, que a sanção, que a pena traduz, não é exercida através da indemnização, antes por meio
de uma outra prestação, que o credor tem a faculdade de exigir, em vez da prestação inicial ou da
indemnização pelo seu não cumprimento.4
A única observação que se impõe concerne ao alcance da pena como obrigação
facultativa na cláusula penal stricto sensu e na cláusula de pref‌ixação de indenização.
Na cláusula penal em sentido estrito, sua localização como fonte de obrigação facul-
tativa explica como a pena goza de ef‌icácia coercitiva, sendo simultaneamente meio de
satisfação do credor, sem que possa ser rotulada como uma indenização propriamente dita.
Por isso, o fato de as partes convencionarem uma pena de valor superior ao da prestação
não constitui fato impeditivo ao pleno acesso do credor à pretensão indenizatória pelas
regras comuns. Cuida-se de uma tríplice opção: o credor pode exigir a pena ou dela não
fazer uso, sendo que, nesse caso, terá duas vias: insistir no cumprimento ou, conf‌igurado
o descumprimento, pleitear o ressarcimento em detrimento da pena.
Já na cláusula de liquidação antecipada de dano, sua natureza de indenização f‌ixa e
invariável – um forfait – impede ao credor lesado o recurso às vias indenizatórias, mesmo
que o dano real seja superior ao valor ajustado para a pena. Aqui, o fator determinante
para o ajuste não foi de ordem compulsória, portanto o ressarcimento se traduz na
cláusula penal. Assim, a obrigação facultativa se traduzirá na opção do credor entre o
cumprimento e a pretensão à pena. Nada mais.
7.2 A MULTA PENITENCIAL
A multa penitencial reveste-se de considerável importância prática, dado o seu
frequente emprego no tráfego jurídico.
Sua característica marcante consiste em ser uma estipulação por meio da qual os
contratantes estipulam uma soma que, em caso de o devedor exercitar a faculdade de
arrependimento, servirá como forma de pagamento ao credor. Em virtude da multa peni-
tencial, o devedor pode desistir livremente do negócio jurídico, oferecendo o pagamento
da multa convencionada sem que o credor tenha o direito de insistir na execução específ‌ica
da obrigação ou de pretender qualquer coisa a título de indenização por perdas e danos.
3. Marcelo Matos Amaro da Silveira pondera que “alguma doutrina tem rejeitado o enquadramento da cláusula
penal nas obrigações com faculdade alternativa. Essa rejeição muitas vezes ocorre, pois, tais autores somente
consideram que essa espécie de obrigação possa facultar a escolha do devedor, que é a concepção tradicionalmente
apresentada. Mas não procedem as críticas pois a estipulação de uma cláusula penal signif‌ica a criação de uma
opção de ação para o credor. Com a ocorrência de sua “condição de funcionamento”, qual seja, o incumprimento,
ela não necessariamente irá ser exercida, abrindo-se uma faculdade de agir para o credor, que poderá tutelar seu
direito de crédito de diversas maneiras”. In Cláusula penal e sinal, p. 9.
4. MONTEIRO, Antônio Pinto. Cláusula penal e indemnização, p. 648.
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CAPítUlO 7 • dElIMItAçãO PERAntE MOdElOS JURídICOS PRóxIMOS
As diferenças entre a cláusula penal e a multa penitencial são nítidas e corretamente
descritas por Jorge Peirano Facio:
La primera, se establece en utilidad del acreedor con el n de dispensarle de la prueba de los daños y
perjuicios (si la cláusula penal es una liquidación convencional y anticipada de daños), o con el de am-
parar las seguridades de cumplimento de la obligación del deudor (si la cláusula penal es una verdadera
pena). En cambio, la multa penitencial está siempre pactada en utilidad del deudor, ya que tiene por n
salvaguardar sus intereses en caso de que produzca su arrepentimiento, permitiéndole retractarse de
lo pactado sin más trascendencia que la pérdida de la cantidad o cosa que se había establecido como
multa penitencial.5
O Código Civil de 2002, à semelhança de seu antecessor e dos códigos que seguiram
o sistema francês, nada dispôs acerca da multa penitencial. Porém, não há óbice em sua
estipulação, tanto por se mostrar uma densif‌icação do princípio da autonomia privada,
como pelo fato de nada possuir de ilícito – seja por ilegal ou por ilegítimo – a aposição
de cláusula que faculte ao devedor a exoneração do negócio jurídico.
Adiante, o art. 1.153 do Código Civil espanhol prevê expressamente a possibili-
dade de se conceder ao devedor, mediante pacto expresso, a faculdade de se libertar da
obrigação pagando uma pena. Javier Davila Gonzalez se refere ao dispositivo como lo
que se denomina multa poenitencialis o pena de arrepentimiento.6 Acrescenta, ainda, que,
ao se conceder ao devedor a faculdade de escolher entre cumprir a obrigação principal
e a pena, estar-se-á diante de uma espécie de obrigação facultativa.
Essa observação também é apresentada na doutrina brasileira por Judith Martins-
-Costa:
se as partes estipularam que o devedor se pode liberar da dívida principal, prestando a pena, também
não haverá cláusula penal, mas facultas alternativa em benefício do devedor: o credor só pode exigir o
adimplemento e o devedor ou adimple, ou presta a alternativa.7
Salta aos olhos a aproximação entre as obrigações facultativas – em cujo contexto
se situa a cláusula penal – e a multa penitencial. Mas a distinção pode ser vista na inicia-
tiva da escolha: a multa penitencial é uma cláusula que dispõe ao devedor um direito de
arrependimento. Karl Larenz acentua que o termo “pena” não se adapta a essa f‌igura,
pois o descumprimento da prestação não implica uma injustiça, sino únicamente la in-
demnización por una expectativa no realizada. 8
Portanto, a multa penitencial fragiliza a relação obrigacional. Em contrapartida,
a pena é uma faculdade alternativa concedida ao credor, eis que a cláusula penal é uma
prestação que reforça o cumprimento da obrigação, seja por constranger ao adimple-
mento (cláusula penal stricto sensu), seja por liquidar antecipadamente os danos. Algo
incompatível com a função de uma cláusula de arrependimento.9
5. FACIO, Jorge Peirano. La cláusula penal, p. 154.
6. GONZALEZ, Javier Davila. La obligacion com clausula penal, p. 171.
7. MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo código civil, v. V, t. II, p. 454.
8. LARENZ, Karl. Derecho de obligaciones, p. 373.
9. Como exemplo de pref‌ixação de multa penitencial, podemos assinalar a quantia que uma das partes terá de pagar
a outra, na hipótese do art. 463 do Código Civil: “Concluído o contrato preliminar, com observância do disposto

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