Capítulo 3 - Caracterização da Cláusula Penal

Páginas35-72
CAPíTUlO 3
CARACTERIzAÇÃO DA ClÁUSUlA PENAl
3.1 NATUREZA
3.1.1 Acessoriedade
Conceituamos a cláusula penal como uma convenção acessória que acopla uma
pena privada ao inadimplemento de uma obrigação.
É clara na generalidade dos ordenamentos a referência à forçosa acessoriedade da
cláusula penal, quer pela expressa alusão à sua dependência da existência e validade da
obrigação principal (assim os arts. 1.155 do Código Civil espanhol e 1.227 do Código
francês), quer pela indicação clara de que a cláusula penal se deve no caso de inexecução
ou mora no cumprimento de uma obrigação – na linha do art. 409 do Código Civil de 2002.
A cláusula penal é uma estipulação negocial aposta a uma obrigação, em que qual-
quer das partes, ou uma delas apenas, compromete-se a efetuar certa prestação em caso
de ilícita inexecução da obrigação principal.
A pena pode acrescer a qualquer relação obrigacional, seja esta positiva ou negativa.
Imprescindível é que seu teor seja inequívoco, pois não seria razoável aplicar uma sanção
compulsória de forma tácita ou presumida. Como assinala Caio Mário da Silva Pereira,
“já que traz em si um objetivo penal, e nenhuma pena é de aplicar-se por inferência, senão
por disposição explícita”,1 certamente será dispensada a terminologia sacramental, tão
cara ao formalismo da stipulatio romana.
A pena é geralmente f‌ixada ao tempo da realização do negócio jurídico, mas nada
impede que seja celebrada posteriormente, em instrumento apartado, desde que antes
da violação da relação obrigacional. Ou seja, sua estipulação jamais antecederá à da obri-
gação principal, mas sempre deverá preceder o fato ilícito que ela pretenda sancionar.
Ainda com reforço em Caio Mário da Silva Pereira,2 se a cláusula penal fosse f‌ixada após
o descumprimento haveria um desvirtuamento em sua f‌inalidade econômica, “já que o
reforçamento da obrigação descumprida pareceria o que a linguagem popular caracteriza
no refrão que alude a ‘pôr fechadura em porta arrombada’”.
Nesse sentido, dispõe o art. 409 do Código Civil: “A cláusula penal estipulada con-
juntamente com a obrigação, ou em ato posterior, pode referir-se à inexecução completa
da obrigação, à de alguma cláusula especial ou, simplesmente à mora”. Mário Júlio de
Almeida Costa obtempera que, “tanto na primeira como na segunda hipótese, sempre
1. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, v. II, p. 149.
2. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, v. II, p. 146.
CLÁUSULA PENAL – A PENA PRIVADA NAS RELAÇÕES NEGOCIAIS • NELSON ROSENVALD
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a cláusula penal se encontra ligada à obrigação de que previne o incumprimento: tem
carácter acessório”.3
Vê-se que a cláusula penal pode incidir apenas sobre uma parte da obrigação a ser
cumprida. Dito de outro modo, com espeque na autonomia negocial, em um contrato de
locação a multa de três meses do valor locatício poderá ser restrita à desocupação ante-
cipada, e não à hipótese de infração a outra cláusula, tal qual a de vedação a sublocação
ou danos causados no imóvel.
Salienta Serpa Lopes que a doutrina distingue com denominações diversas a estipu-
lação da cláusula penal juntamente com a obrigação ou em ato posterior, “denominando
de cláusula penal, ao primeiro e pena convencional, ao segundo. Contudo, consoante a
sistemática do nosso Código Civil não há fundamento para essa distinção, e a diferença
é meramente verbal”.4
A propósito, a confecção da cláusula penal em instrumento separado não implica
desvirtuamento de sua natureza acessória em relação à obrigação principal. A acesso-
riedade é da essência da cláusula penal. Ela não possui uma causa própria distinta da
obrigação principal, a ponto de ser considerada um negócio jurídico autônomo.5
Certamente não podemos reduzir a cláusula penal a uma pura e simples cláusula
negocial, pois ela possui um esquema causal específ‌ico de natureza sancionatória. Mas
essa função própria é estritamente coligada à da obrigação que visa assegurar, pois é
endereçada a disciplinar as consequências da não realização dos interesses dispostos no
contrato. Por tais razões, Silvio Mazzarese traz a lume a doutrina mais recente de Aníbal
Marini, que def‌ine a cláusula penal como
un negozio accessorio rispetto ad un diverso contratto, principale, nel ben preciso senso che la funzione
sanzionatoria propria della stessa non può esplicarsi se non in relazione ad una diversa funzione, precet-
tiva, in senso ampio, realizzata da un diverso negozio che ne viene, pertanto, a costituire il presupposto. 6
Com efeito, a pena convencional – tal e qual qualquer obrigação acessória – acom-
panha a obrigação principal na sua trajetória e nas suas vicissitudes. Em regra, a obri-
gação que visa assegurar é constituída por um contrato. A fonte habitual da obrigação
é o negócio jurídico. Mesmo para os defensores da autonomia da cláusula penal, como
3. ALMEIDA COSTA, Mário Júlio de. Direito das obrigações, p. 738. Em outra passagem, o autor delimita a cláusula
penal das convenções disciplinadoras da responsabilidade civil – convenções de limitação, agravamento e exclusão
da responsabilidade – pois aquela é uma “cláusula acessória de negócios jurídicos” (p. 730).
4. SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de direito civil, v. II, p. 159.
5. Não podemos deixar de acentuar a existência de divergência doutrinária quanto ao tema. Alicerçado na opinião
de valiosos juristas como Massimo Bianca, Massimiliano de Luca e Silvio Mazzarese, Marcelo Benacchio propugna
pela localização da cláusula penal como negócio jurídico autônomo, “por não depender da obrigação principal para
a sua existência”, sendo a sua causa diversa da operação contratual a que visa satisfazer. (Cláusula penal: revisão
crítica a luz do Código Civil de 2002, p. 12). Para uma crítica a esta posição, Antônio Pinto Monteiro se refere a
opinião minoritária do direito italiano, capitaneada por Trimarchi (La clausola penale, p. 19) e Magazù (clausola
penale, p. 189). Porém, a ela se opõe, pois “esta sanção se reporta ao não cumprimento de determinada obrigação,
f‌icando na dependência desta, quer no tocante ao seu nacimento como no que concerne à sua subsistência e
exigibilidade” (Cláusula penal e indemnização, p. 87).
6. MAZZARESE, Silvio. Clausola penale, p. 209. Tradução nossa: “Um negócio acessório respeitante a um contrato
diverso, principal, no sentido de que a função sancionatória que lhe é inerente não pode ser explicada se não se
relacionar a uma diversa função, preceptiva, realiziada por um negócio diverso, que se torna o seu pressuposto”.
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CAPítUlO 3 • CARACtERIzAçãO dA ClÁUSUlA PEnAl
Denis Mazeaud, la cause de la clause implique donc une certaine dépendance de celle-ci
vis-à-vis de l’obligation garantie. 7
Pelo fato da cláusula penal guardar uma relação de dependência com uma obrigação
principal, atuando como cláusula de reforço e tutela desta, quando as partes exprimem
a sua vontade, estabelecendo a cláusula penal em negócio levado ao cartório, o tabelião
de notas verif‌icará qual é a obrigação que as partes querem tutelar com a cláusula penal.
Ilustrativamente, em uma escritura pública de compra e venda de bem imóvel, será
bastante usual que as partes queiram que a cláusula penal reforce, ou seja, seja acessória
à obrigação de pagamento do preço. Mas nada impede que elas queiram estabelecer
uma cláusula penal para tutelar o prazo de imissão da posse do imóvel, ou estipular
uma cláusula penal para o caso de resolução do contrato. A obrigação assegurada pela
cláusula penal, portanto, deverá ser expressamente indicada no ato notarial, cabendo
esse cuidado por parte do tabelião de notas.8
Eventualmente, a cláusula penal poderá se reportar ao cumprimento de uma obri-
gação não contratual cuja fonte seja a própria norma jurídica e, em particular, de um ato
ilícito. Assim, nada impede que em matéria de direito de vizinhança se convencione que
um vizinho será sancionado com a ameaça de uma pena caso perturbe o sossego do mo-
rador do prédio próximo depois de determinado horário. Trata-se de modo compulsório,
porém pacíf‌ico, de reforço de tutela de obrigações ex lege. Caio Mário da Silva Pereira
ressalta que “nenhuma incompatibilidade existe entre a natureza legal da obrigação e o
caráter convencional da multa”.9
O Código Civil de 2002 não reiterou o texto do art. 922 do Código Civil de 1916:
“A nulidade da obrigação importa a da cláusula penal”. Todavia, em nenhum momento
poderemos inferir que o legislador optou por suprimir de nosso ordenamento a acessorie-
dade da pena convencional. Ela, invariavelmente, seguirá a sorte da obrigação principal.10
7. MAZEAUD, Denis. La notion de clause pénale, p. 59. Tradução nossa: “A causa da cláusula penal implica pois
uma certa dependência de frente a obrigação principal”.
8. SILVEIRA, Marcelo Matos Amaro da. Prossegue o autor, trazendo outra questão que também se liga à acessoriedade
da f‌igura e decorre “da noção de prestação futura da pena convencional e do seu fator de ef‌icácia, que é o inadim-
plemento da obrigação. Como a cláusula penal estabelece uma prestação futura e condicionada à verif‌icação do
inadimplemento absoluto ou da mora, ela pode ser estipulada até o momento do vencimento da obrigação. Como
ela estabelece uma prestação que só será realizada pelo devedor se ele inadimplir, as partes podem estipulá-la em
momento posterior a celebração da obrigação principal. Mas essa estipulação necessariamente deverá ocorrer
antes da ocorrência do inadimplemento, uma vez que uma estipulação posterior contraria a natureza e a função
da cláusula penal. Além disso, é importante observar que no âmbito dos atos notariais a estipulação posterior da
cláusula penal deverá ser realizada na mesma forma do contrato principal, o que signif‌ica dizer que ela deverá
ser estipulada por escritura pública. In A Cláusula Penal nos Atos Notariais: Cuidados necessários na inserção da
cláusula penal nas escrituras públicas. Extraído do site migalhas em 1º.3.23. Disponível em: https://www.migalhas.
com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/359784/cuidados-na-insercao-da-clausula-penal-nas-escrituras-
-publicas.
9. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, v. II, p. 148.
10. STJ, Informativo 613: 8 de novembro de 2017: “a cláusula penal constitui pacto acessório, de natureza pessoal, por
meio do qual as partes contratantes, com o objetivo de estimular o integral cumprimento da avença, determinam
previamente uma penalidade a ser imposta ao devedor na hipótese de inexecução total ou parcial da obrigação, ou
de cumprimento desta em tempo e modo diverso do pactuado. Nos termos do art. 409 do Código Civil de 2002, a
cláusula penal, também chamada de pena convencional ou simplesmente multa contratual, pode ser classif‌icada
em duas espécies: (i) a cláusula penal compensatória, que se refere à inexecução da obrigação, no todo ou em
parte; e (ii) a cláusula penal moratória, que se destina a evitar retardamento no cumprimento da obrigação, ou

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