Caráter punitivo, além de compensatório?

AutorMaria Celina Bodin de Moraes
Ocupação do AutorProfessora Associada do Departamento de Direito da PUC-Rio
Páginas195-264
4.1. A dicotomia público-privado e a exclusão da pena do
âmbito da indenização
O individualismo jurídico, principal efeito da doutrina do
liberalismo econômico — segundo a qual uma economia dei-
xada livre nos meios e nos fins desenvolve-se automa-
ticamente em direção ao bem-estar social —, tinha na dicoto-
mia público-privado um de seus principais sustentáculos371.
Tal dicotomia, também chamada de “ideologia da separa-
ção”, fundava-se em três distinções, elaboradas quase contem-
poraneamente: a separação entre legalidade e ética social, que
historicamente pode ser reconduzida a Immanuel KANT, a se-
paração entre política e economia, devida a Adam SMITH372, e
a separação entre Estado e sociedade civil, surgida a partir da
Escola Histórica de Friedrich-Carl VON SAVIGNY373.
1082.02-4
DANO-PES
195
371 Assim, entre os tantos, M. GIORGIANNI, O direito privado e as suas
atuais fronteiras, cit., passim. Sobre a “grande dicotomia”, v. tb., embora
em perspectiva diferente, N. BOBBIO, Estado, governo e sociedade: para
uma teoria geral da política (1985), 4. ed., São Paulo: Paz e Terra, 1992,
p. 13-31.
372 Sobre o viés jurídico e os postulados éticos da teoria econômica de
Adam Smith, v. P. ATIYAH, The rise and fall of freedom of contract,
Oxford: Clarendon Press, 1979, p. 294 e ss. V. tb., embora sustentando
que a liberdade contratual havia findado em razão do desenvolvimento
simultâneo do realismo jurídico e do welfare state, G. GILMORE, The
death of contract, Columbus: Ohio State University Press, 1974, passim.
373 A propósito, v. as observações de P. BARCELLONA, Diritto privato e
De fato, da concepção liberal de separação entre econo-
mia e política — com ênfase não só na liberdade individual,
mas igualmente na concorrência entre agentes econômicos e
na ausência de interferência governamental — derivou a se-
paração entre Estado e sociedade civil e a delimitação jurídica
bem definida das atividades do Estado como as de um “vigi-
lante noturno”374, a quem cabia cuidar para que as regras do
livre mercado fossem respeitadas375.
Nesta perspectiva, a autonomia da vontade individual,
como sustentada por KANT, manifesta-se juridicamente atra-
vés da liberdade contratual, que, de um lado, se configurava
como a única forma de realizar o bem-estar coletivo, através
da livre concorrência, e, de outro, era a representação mais
1082.02-4
DANO-PES
196
processo economico, cit., p. 339 e ss., o qual ressalta: “Kant, Smith, Savig-
ny continuano ad essere i numi tutelari della facoltà di giurisprudenza
[...] sebbene le loro ipotesi si siano mostrate radicalmente inadeguate alla
compreensione della realtà nella quale ci troviamo ad operare.
374 Sobre o tema, v. as páginas iniciais de N. IRTI, L’età della decodifica-
zione, cit., p. 613 e ss. Para B. DE SOUSA SANTOS, A crítica da razão
indolente, cit., p. 146 e ss., esta intervenção do Estado liberal, aparente-
mente excepcional e discreta, trazia consigo o potencial para o “absolutis-
mo jurídico”, potencial que, no entanto, se manifestava de modo muito
incompleto, resultando num desenvolvimento desigual do campo jurídi-
co. Considerava-se que o direito privado, o foco privilegiado do cientifi-
cismo e do positivismo jurídicos, estava desvinculado de qualquer con-
teúdo político ou social. Tinha como objetivo assegurar a reprodução de
um mercado competitivo, capaz de se autoequilibrar, através de liberda-
des negativas, enquadramentos jurídicos apropriados, mas supletivos, e
mecanismos que garantissem o cumprimento dos contratos.
375 É interessante recordar que, até as revoluções burguesas do século
XVIII, os Estados agiam diretamente como operadores econômicos (pro-
prietários e empresários) e, ao mesmo tempo, como autoridades públicas,
a regular a atividade econômica dos súditos com atos imperativos. Para
essa observação, M. S. GIANNINI, Diritto pubblico dell’economia, Bolog-
na: Il Mulino, 1977, p. 24.
bem acabada da igualdade formal, isto é, da formulação então
vigente de justiça376.
Embora, do ponto de vista teórico, nada pusesse em dúvi-
da, então, nem a justiça nem a adequação dessa concepção, na
prática, a intervenção estatal logo se faria necessária, em ra-
zão da incapacidade do mercado de garantir não apenas a livre
concorrência, mas até mesmo sua própria sobrevivência377. Já
a partir da década de 1870, pouco a pouco, todos os países
capitalistas sacrificaram os princípios do livre comércio em
prol de algum tipo de protecionismo378. No final do século
XIX, o panorama se alterara radicalmente nessa direção, em
virtude do recrudescimento do modo de produção capitalis-
ta, em particular da concentração e da centralização do capi-
tal industrial, comercial e financeiro379.
A doutrina jurídica foi obrigada, então, a manifestar-se
sobre a presença das múltiplas manifestações intervencionis-
tas na economia por parte do Estado, mas o fez segundo o
esquema tradicional da contraposição “autoridade-liberda-
de”, acentuando a impossibilidade de conciliação entre a par-
1082.02-4
DANO-PES
197
376 Expressão da famosíssima fórmula de Fouillée, também atribuída a
Kant, segundo a qual “qui dit contractuel, dit juste”.
377 A concepção de liberdade contratual foi debilitada pela utilização do
próprio contrato como instrumento de eliminação da livre concorrência e
a consequente afirmação de um capitalismo de tipo monopolista. Segun-
do L. MENGONI, Diritto e valore, Bologna: Il Mulino, 1985, p. 152, o
laissez faire não foi capaz, uma vez completada a industrialização, de
regular a sociedade industrial.
378 Assim, A. AMMANNATI, Economia (e diritto), in Dizionario critico
del diritto, org. C. Donati, Milano: Savelli, 1980, p. 107.
379 Segundo B. DE SOUSA SANTOS, A crítica da razão indolente, cit., p.
147, nestas condições, a separação entre estado e sociedade civil iria
sofrer um lento e gradual processo de transformação, que começou por
deslocamentos sucessivos da linha demarcatória e terminou por esvaziar
completamente a distinção.

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT