Critérios valorativos e reparação integral

AutorMaria Celina Bodin de Moraes
Ocupação do AutorProfessora Associada do Departamento de Direito da PUC-Rio
Páginas267-318
5.1. O papel do juiz no arbitramento do quantum debeatur
e a indispensável motivação da decisão
Surge a necessidade de reparar-se o dano moral quando,
como se viu, um interesse extrapatrimonial protegido (de
forma expressa ou genérica) pelo ordenamento jurídico é in-
justificadamente violado. Se o dano corresponde à supressão
de vantagens, o dano moral corresponderia à supressão de
vantagens não-patrimoniais497.
Para reparar o que é irreparável, mas que, no entanto, não
pode (nem deve) ficar sem reparação, a jurisprudência fran-
cesa usou de um artifício. Nesses casos, em que o prejuízo
não podia ser avaliado economicamente, decidia-se por uma
condenação simbólica, com a finalidade de expressar a repro-
vação social pelo ato praticado498.
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497 A. MENEZES CORDEIRO, Teoria geral do direito civil, 2. ed., rev e
atualiz., 4ª reimp., 1994, Lisboa: Associação Academica da Faculdade de
Direito de Lisboa, 1º v., p. 339.
498 Entre tantos, v. P. JOURDAIN, Les principes de la responsabilité civi-
le, Paris: Dalloz, 1998, 4. ed., p. 132 e ss. O autor indica como primeiro
caso de reparação de interesses extrapatrimoniais o “arrêt des Chambres
réunies de la Cour de Cassation du 25 juin de 1833 (S.1833.1.458)”,
cuja grande preocupação foi o modo como limitar o número de pessoas
legitimadas.
Como o bem jurídico lesionado era insuscetível de avalia-
ção pecuniária, a condenação tinha, na verdade, um caráter
de exemplaridade. Seu reconhecimento no Direito Civil, no
entanto, teve o mérito de acabar por conduzir à reparabilida-
de do dano não-patrimonial. De fato, o único caminho que
resta para quem sofre danos morais reside na exigência de
uma indenização; de outro modo, os bens não-patrimoniais
ficariam sem qualquer proteção sancionatória499. Logo iria se
construir a tese de que, sendo os bens jurídicos lesados parte
da esfera extrapatrimonial da vítima e ensejando, portanto,
sofrimento e dor, tais sentimentos poderiam, de alguma for-
ma, ser minorados se a condenação passasse de simbólica a
efetiva.
A tese representou uma ruptura paradigmática500, ao ad-
mitir a compensação para a lesão a bens extrapatrimoniais,
justificando-se agora (no que acabou sendo seguida pela juris-
prudência majoritária dos demais ordenamentos de matriz
romano-germânica) como uma satisfação pecuniária — com
base no pagamento de quantia em dinheiro como um leni-
mento para mitigar ou, de algum modo, suavizar a dor sofrida
(o chamado “dinheiro da dor”) — e como uma satisfação
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499 O que representaria uma contradição inaceitável do sistema. Assim,
A. MENEZES CORDEIRO, Teoria geral do direito civil, cit., p. 340.
500 Como se sabe, o uso atual do termo “paradigma”, no contexto cien-
tífico, é devido a Thomas KUHN (1922-1996). Em sua obra The structu-
re of scientific revolution (1962), ele demonstrou que a história da ciên-
cia, ao contrário do que se pensava, é resultante de rupturas, erros, passos
em falso e limitações de imaginação. Segundo Kuhn, em épocas normais,
mais ou menos longas, a ciência opera com um conjunto de suposições, ou
modelos, conhecido por paradigma, que orienta o desenvolvimento pos-
terior das pesquisas científicas, na busca da solução para os problemas por
elas suscitados; em períodos excepcionais, ou revolucionários, o velho
paradigma fracassa e dá lugar, não sem disputa, a um novo paradigma.
moral, através da sanção (não ainda punitiva) ao ofensor, que,
de outro modo, não seria responsabilizado pelo dano que cau-
sou501.
Essa evolução, com pequenas alterações, ocorreu também
no Brasil, mas, aqui, somente ao final da década de 80, após a
previsão constitucional da possibilidade (rectius, exigibilida-
de) plena de reparação dos danos morais502, é que o paradig-
ma veio a se inverter. Pode-se verificar, com efeito, que, até
o início da década de 90, o dano patrimonial era normalmen-
te mais vultoso do que o dano extrapatrimonial, enquanto,
hoje, só excepcionalmente não ocorre o contrário.
Aliás, o dano moral vem experimentando, nos últimos
anos, uma expansão de tal monta, e de modo tão veloz, que
hoje muitas são as vozes discordantes, no que tange à sua
conceituação, à sua valoração e, principalmente, à sua quanti-
ficação, problema este último que se remete à função (ou
funções, conforme a existência ou não, ao lado da função
compensatória, de uma função punitiva) desempenhada pela
sua reparação. Concorda-se, no mais das vezes, apenas sobre
dois aspectos, quais sejam, a intrínseca extrapatrimonialida-
de do dano moral e a importância de se garantir uma compen-
sação ao lesado.
O ordenamento pátrio, como é notório, concede ao juiz a
mais ampla liberdade para arbitrar o valor da reparação dos
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501 P. JOURDAIN, Les principes de la responsabilité civile, cit., p. 133.
502 Antes da Constituição, o STF já julgava procedentes casos de dano
moral; o que não se permitia era a sua cumulação com os danos patrimo-
niais. A Constituição explicitou a permissão para a cumulação e, não
obstante, o STJ, novo Tribunal ao qual ficaram afeitas estas questões,
achou por bem editar uma súmula, a de nº 37, segundo a qual “são
cumuláveis as indenizações por dano material e moral oriundos do mes-
mo fato”.

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