Dignidade humana e dano moral: duas faces de uma moeda

AutorMaria Celina Bodin de Moraes
Ocupação do AutorProfessora Associada do Departamento de Direito da PUC-Rio
Páginas59-140
2.1. O Direito Civil na era das incertezas89
As dificuldades de conceituação e valoração do dano mo-
ral são, a rigor, o resultado de incertezas mais profundas, as
quais conduzem a um outro tipo de análise, levada a cabo nas
páginas seguintes com o objetivo de estabelecer o contexto
no qual se desenvolvem as indagações já referidas.
Com efeito, não é o regime do dano moral, nem tampou-
co a disciplina jurídica, em si mesma, mas todo um sistema de
crenças e valores que hoje é posto em causa sob os mais diver-
sos pontos de vista. Antes, portanto, de enfrentar o problema
dos fundamentos do dano moral, parece essencial explicitar
as relações entre os contornos valorativos do Direito Civil
contemporâneo e o ambiente histórico e filosófico no qual ele
se insere.
Segundo Erhard DENNINGER, podem-se encontrar as bases
das marcantes diferenças entre o Direito da época das Luzes e
da Revolução Francesa e o Direito atual no fato do “fim da ra-
zão prática universal”, daquela razão, fonte privilegiada do Di-
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89 Um desenvolvimento mais aprofundado das ideias expostas neste
item — fruto de questionamentos estimulados pela participação na XVII
Conferência Nacional dos Advogados (promovida pela OAB no Rio de
Janeiro em 1999) e que muito influenciaram os rumos desta tese — foi
publicado, sob o título Constituição e direito civil: tendências, na Revista
dos Tribunais n. 779, p. 47.
reito Privado, a que se referiu KANT90, assinalando-se aí o início
de uma nova era: uma era de incertezas, de instabilidades. Nes-
ta linha, um dos fenômenos mais relevantes da época atual,
visualizado especialmente no âmbito das Ciências Humanas e
Sociais — mas que também se observa no campo das Ciências
Exatas com o advento da Relatividade e da Física Quântica — é
a denominada “crise generalizada da razão prática”91.
Diversas são as circunstâncias, características do progres-
so científico, que levaram à disseminação desta incerteza, em
relação a parâmetros tradicionais e consolidados, e que vêm
propondo a criação de novos valores, bem como, em conse-
quência, engendrando novas e acesas controvérsias jurídicas,
a ponto de se considerar estabelecido um novo paradigma: o
da chamada pós-modernidade92.
A primeira circunstância é a constatação da impossibilida-
de de dominar os efeitos da tecnologia, em suas mais amplas
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90 Segundo KANT, o direito privado é um direito permanente, racional e
ideal, que se baseia “exclusivamente em princípios a priori, por meio da
razão”, e que se opõe ao direito público exatamente porque suas leis são,
ainda que externas, leis naturais, enquanto as normas de direito público,
ao contrário, sem uma legislação externa real, “não obriga[ria]m a nada”:
daí a necessidade de manifestação do legislador. V., a propósito, N.
BOBBIO, Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant, 3. ed., Brasília,
Ed. UnB, 1995, espec. p. 86.
91 E. DENNINGER, Racionalidad tecnologica, responsabilidad etica y de-
recho postmoderno, Doxa, n. 14, 1993, p. 95-113.
92 Para o significado desta noção, v. J.-F. LYOTARD, A condição pós-mo-
derna (1979), 5. ed., Rio de Janeiro: José Olympio, 1998; A. KAUFMANN,
La filosofia del derecho en la posmodernidad (1991), 2. ed., Bogotá:
Themis, 1998; B. DE SOUSA SANTOS, Introdução a uma ciência pós-mo-
derna, cit., passim; J. J. GOMES CANOTILHO, O direito constitucional
entre o moderno e o pós-moderno, Revista Brasileira de Direito Compa-
rado, v. 9, 1990, p. 76 e ss. V. ainda o volume de P. FERREIRA DA CUNHA,
Pensar o direito, II, Da modernidade à postmodernidade, Coimbra: Al-
medina, 1991.
dimensões espaço-temporais93. A ciência baseia-se no princí-
pio do possível/impossível, sendo ela incapaz de limitar-se a
si mesma. As novas questões, postas pelas manipulações ge-
néticas, pela reprodução assistida, pela energia nuclear, pelas
agressões ao meio ambiente, pelo desenvolvimento da ciber-
nética, configuram “situações-problema” cujos limites não
poderão ser decididos internamente, estabelecidos pelos pró-
prios biólogos, físicos ou médicos, mas deverão ser resultan-
tes de escolhas ético-político-jurídicas da sociedade.
A segunda circunstância é o que se denominou “explosão
de ignorância”94, devida à monumental disponibilidade de in-
formações forjadas em ambiente virtual, numa espécie de bi-
blioteca universal95. À medida que crescem os horizontes do
saber, cresce, na mesma proporção, o leque das questões sem
solução, do desconhecimento, e, mais, se incrementa a cons-
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93 E. DENNINGER, Racionalidad tecnologica, cit., p. 368.
94 E. DENNINGER, Racionalidad tecnologica, cit., p. 368. B. DE SOUSA
SANTOS, Introdução a uma ciência pós-moderna, cit., p. 13, afirma, em-
bora a outro propósito, que o distanciamento e a estranheza do discurso
científico se reproduzem “no próprio interior da comunidade científica,
na medida em que o avanço da especialização torna impossível ao cientis-
ta, e não já apenas ao cidadão comum, compreender o que se passa à volta
do habitáculo (cada vez mais estreito) em que vive em Scientiápolis”.
95 U. ECO, Entrevistas sobre o fim dos tempos, realizadas por C. DAVID
et al. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 190, conta que, ao necessitar de
informações sobre Kant, acessou a Internet e encontrou uma quantidade
incrível de informações: “Como tenho uma boa cultura filosófica, fui
capaz de eliminar os maníacos, os fanáticos, os sites que produziam
somente informações do nível do curso secundário, e pouco a pouco pude
selecionar, digamos, os dez sites que davam uma informação válida. Mas
eu sou por assim dizer um especialista. [...] E para os outros, todos os
inocentes que procuram na Web o que é preciso saber sobre I. Kant, que
se passa? Estão certamente mais perdidos que o rapazinho de uma aldeota
que só encontra na casa do pároco uma velha história da filosofia escrita
por um jesuíta do século XVIII.”

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