A problemática do dano moral

AutorMaria Celina Bodin de Moraes
Ocupação do AutorProfessora Associada do Departamento de Direito da PUC-Rio
Páginas19-56
Em tendência identificada como a de uma espécie de “ju-
ridicização” da vida social, observou-se que os processos ou-
trora implicados na resolução do problema da sobrevivência
da pessoa em meio à comunidade — como a guerra e a políti-
ca, de um lado, e a caridade, o assistencialismo e a solidarie-
dade familiar, de outro — hoje confluem, com cada vez maior
intensidade, para o campo do jurídico18.
O advento da Constituição Federal de 1988 e a opção
preferencial pela dignidade humana, inserida entre seus prin-
cípios fundamentais, fizeram com que a perspectiva jurídica
tomasse a si o papel garantidor da transição em direção ao
“personalismo”, ausente em outros momentos históricos
quando a Igreja, o Estado e o Exército tiveram alçadas de
poder em relação às escolhas individuais. Tais escolhas, po-
rém, do ponto de vista do personalismo, só podem ser feitas
por cada um, individualmente, e devem, por isso mesmo, ser
garantidas pelo Direito19.
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18 B. DE SOUSA SANTOS, A crítica da razão indolente: contra o desper-
dício da experiência. para um novo senso comum, 2. ed., São Paulo:
Cortez, 2000, v. I, p. 151 e ss. Na mesma perspectiva, Z. BAUMAN, O
mal-estar da pós-modernidade, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 27
e ss, em especial p. 35, segundo o qual “certas redes de segurança”,
tecidas e sustentadas individualmente, isto é, na linha de trincheira antes
oferecida pela vizinhança ou pela família, se não se desintegraram com-
pletamente, foram, pelo menos, consideravelmente enfraquecidas.
19 Por sua conotação equívoca, vinculada ao liberalismo econômico, evi-
ta-se o termo “individualismo”.
Por essa via, o Direito converte-se em arena privilegiada
— e seguramente mais legítima — para o debate entre as
diversas concepções acerca do modo como a pessoa e o grupo
social devem interagir, equilibrando-se mutuamente. As ba-
ses ético-filosóficas dessa interação e desse equilíbrio vêm
sendo dadas pela noção de responsabilidade, nos termos em
que a ela se referiu um filósofo do nosso tempo: “Com a
instituição social da pessoa nasce o conceito eticamente bási-
co de responsabilidade, que é tanto a vocação de responder
ante os outros, quanto ser responsável pelos outros.”20
A este respeito, foi argutamente salientado, contrariando
o senso comum, que o problema da responsabilidade civil não
traduz outra exigência senão aquela de determinar — segun-
do critérios temporais de conveniência — as condições em
relação às quais um dano deve ser suportado por um sujeito
ou por outro, isto é, pelo agente causador ou pela própria
vítima21.
Se se insere esta afirmação em uma perspectiva histórica,
será fácil entender por que, antes da promulgação do Código
de Defesa do Consumidor, o risco do dano era todo ele
suportado pela vítima, “aventurando-se” o consumidor cada
vez que fazia uma compra. Após a tomada da decisão, funda-
mentalmente política, de proteger o consumidor — neste
caso, essa natureza é ainda mais evidente, na medida em que
foi a Assembleia Constituinte a tomá-la, através de expressa
disposição normativa —, considerando responsável pelos da-
nos o produtor, isto é, a pessoa que inseriu o produto no
mercado, hoje sequer se imagina uma relação de consumo
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20 F. SAVATER, Ética como amor-próprio (1988), São Paulo: Martins
Fontes, 2000, p. 149.
21 S. RODOTÀ, Il problema della responsabilità civile, Milano: Giuffrè,
1967, p. 71 e ss., espec. p. 74.
que não tenha, a garantir o polo vulnerável composto pelo
consumidor, as numerosas regras da responsabilidade objeti-
va previstas naquele código22.
A disciplina da responsabilidade civil, portanto, deve mui-
to mais a escolhas político-filosóficas do que a evidências ló-
gico-racionais, decorrentes da natureza das coisas23. A propó-
sito, observou-se que somente será possível dizer que um su-
jeito causou um dano depois de ter havido a decisão de res-
ponsabilizá-lo24 — assertiva que se desdobra nesta outra: será
a sucessiva coligação a um sujeito determinado que vai servir
a tornar um dano ressarcível25. De fato, o dano, em si e por si,
não é nem ressarcível nem irressarcível (nem “justo”, nem
“injusto”). A decisão — ética, política e filosófica, antes de
jurídica — deverá ser tomada pela sociedade em que se dá o
evento.
Assim é que há danos que são passíveis de indenização em
determinados países e não o são em outros, embora se trate de
sistemas jurídicos da mesma família e muito semelhantes entre
si. É o que ocorre, por exemplo, com o chamado “dano morte”
ou “dano à perda da vida”, em relação ao qual não há, entre nós,
qualquer compensação — ao contrário do que ocorre, por
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22 E o mesmo se diga em relação à evolução da responsabilidade civil do
Estado, a qual passou de um extremo a outro em menos de um século: da
total irresponsabilidade, prevista na Constituição de 1891, à plena res-
ponsabilização, como se verifica na disposição do parágrafo 6º do artigo
37 da Constituição Federal de 1988.
23 Por que esta evidência é menos perceptível aqui do que em outras
disciplinas do Direito Civil? Talvez a razão esteja no caráter moralizador
que a responsabilidade civil sempre apresentou e na arraigada noção de
culpa que diretamente se associa, na civilização ocidental, de origem
judaico-cristã, à religião e ao pecado.
24 P. BARCELLONA, Diritto privato e processo economico, 2. ed., Napoli:
Jovene, 1977, p. 291 e ss.
25 S. RODOTÀ, Il problema della responsabilità civile, cit, p. 74.

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