Conceito, ontologia, evolução, características e classificação da garantia patrimonial geral

AutorMarcelo Abelha Rodrigues
Páginas17-66
Capítulo 02
CONCEITO, ONTOLOGIA, EVOLUÇÃO,
CARACTERÍSTICAS E CLASSIFICAÇÃO
DA GARANTIA PATRIMONIAL GERAL
1. INTROITO: A RELAÇÃO OBRIGACIONAL E A GARANTIA DA
RESPONSABILIDADE PATRIMONIAL
O clássico conceito de obrigação, com algumas variações, pode ser resumido
na seguinte denição:
relação jurídica, de caráter transitório, estabelecida entre devedor e credor e cujo objeto
consiste numa prestação pessoal econômica, positiva ou negativa, devida pelo primeiro ao
segundo, garantindo-lhe o adimplemento através de seu patrimônio1.
Embora este conceito não esteja equivocado, ele é insuciente para descrever
a obrigação como um fenômeno bem mais complexo, seja porque os deveres nela
existentes não se limitam à prestação principal – que normalmente a qualica
-, seja porque em virtude desses outros deveres os atores que dela participam
assumem posições jurídicas ativas e passivas variadas e distintas.
Além disso, essa transitoriedade da relação obrigacional é muito mais do
que uma relação “momentânea” ou “efêmera”, porque envolve verdadeiras eta-
pas distintas que se desenvolvem de forma sucessiva ao longo do tempo, como
acertadamente assevera autorizada doutrina2-3-4.
1. MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1979. v. IV, p. 8.
2. “La relación de obligación, como relación jurídica concreta entre personas determinadas, existente
en el tiempo, es, ciertamente, un conjunto de derechos, obligaciones y ‘situaciones jurídicas’, pero no
es la suma de aquello. Es, más bien, un todo, un conjunto (‘Gefüge’). [...] Toda relación de obligación
persigue, a ser posible, la más completa y adecuada satisfacción del acreedor e de los acreedores, a
consecuencia de un determinado interés en la prestación. Ahora bien, por el hecho mismo de que en
toda relación de obligación late el n de la satisfacción del interés en la prestación del acreedor, pude
y debe considerarse la relación de obligación como un proceso. Está desde un principio encaminada
a alcanzar un n determinado y a extinguirse con la obtención de este n.” L ARENZ, Karl. Derecho
de obligaciones. Tomo I. Trad. (espanhola) Jaime Santos Briz. Madrid: Editora Revista de Derecho
Privado, 1958, p.38-39; ver ainda SILVA, Clóvis do Couto e. A obrigação como um processo. São Paulo:
José Bushatsky, 1976, p. 120; MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor: o
novo regime das relações contratuais. 5.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 217; NORONHA,
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RESPONSABILIDADE PATRIMONIAL PELO INADIMPLEMENTO DAS OBRIGAÇÕES • Marcelo abelha
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Assim, por exemplo, quando um advogado recebe um telefonema no seu
escritório de um sujeito que se interessa por contratar os seus serviços de ad-
vocacia e consultoria, desde o primeiro momento, antes mesmo de rmar um
negócio jurídico com ele, ele já tem deveres prévios em relação à futura e eventual
contratação que possa realizar com potencial cliente. 3-4
A primeira coisa a fazer, antes de ouvir o caso, é saber se existe algum impe-
dimento/suspeição de alguma causa/pessoa do escritório em relação ao referido
sujeito. Superado este obstáculo, então agendará um encontro, ouvirá o relato,
estudará o caso e fará uma proposta de trabalho com diversas cláusulas estabele-
cendo os direitos e deveres de ambos; direitos e deveres estes que se relacionam
tanto com o objeto principal da contratação, quanto com prestações secundárias
como custo de deslocamento, ressarcimento de despesas, sigilo das informações,
relatórios mensais, regras de compliance etc.
De tal modo, assinado o contrato, à medida que o processo judicial cami-
nha, a relação jurídica negocial de prestação de serviços advocatícios também se
desenvolve no tempo, e os deveres aos quais ambos estão submetidos vão sendo
cumpridos segundo o roteiro contratual preestabelecido em comum acordo.
Contudo, conquanto o contrato preveja o seu m normal, também estão ali pre-
vistas as regras que incidem em caso de inadimplemento de qualquer das partes.
Logo, as consequências do inadimplemento, ainda que este não venha acontecer,
também integram a relação jurídica negocial. Ninguém deseja que aconteça o
inadimplemento, mas ali estão elas (as consequências), rmadas e sacramentadas
para o caso de vir a ocorrer.
Com este exemplo comum do cotidiano, é muito fácil perceber que as obri-
gações podem ser simples ou complexas, duradouras e imediatas, envolvendo
apenas uma ou várias prestações principais ou acessórias, além é claro, dos deveres
anexos que lhes são inerentes.
Fernando. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais. São Paulo: Saraiva, 1994, p.153-190;
PERLINGIERI, Pietro. Pers do direito civil. Introdução ao direito civil constitucional. Tradução de
Maria Cristina de Cicco. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 212.
3. Portanto, a solutio não extingue uma obrigação; realiza-a. Considerada em relação com o facto ou
o negócio constitutivo dessa obligatio, vem a ser o acto nal duma série ou cadeia que se desenrola”.
CRUZ, Sebastião. Da “solutio” I (Época arcaica e clássica). Coimbra, 1962, p. 14.
4. “Por outras palavras: as obrigações têm marcadas na sua teleologia ou destinação a satisfação dos
interesses do credor, ou seja, o cumprimento. As obrigações constituem-se para se cumprirem. Por
isso que a obrigação tenha sido pensada algumas vezes como um mecanismo (Gefüge), organismo
(Organismus), em suma, como um processo (Prozess), misto de sucessão de estádios e de possibilidades
concedidas aos sujeitos dele, e isso não apenas para por em evidencia o destino ou nalidade últimos
da relação obrigacional como para chamar a atenção para as diversas inuências de perturbação a
que ela está sujeita precisamente até ao cumprimento.” FARIA, José Leite Areias Ribeiro de. Direito
das obrigações, vol. I, Coimbra: Almedina, 1987, p. 4-5.
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CAPíTulo 02 • GArANTIA PATrImoNIAl GErAl
Como dito pelo civilista lusitano Ribeiro de Faria5, ora reconhecida como
organismo, ora como mecanismo, ora como estrutura, ora como um processo,
a “obrigação” é um fenômeno dinâmico, processual e procedimental, que nela
contém inúmeras relações jurídicas; relações que nela se formam e se conformam
dentro de uma macro relação jurídica, submetendo os seus atores a ocupar uma
série de posições jurídicas distintas, ora ativas ora passivas, durante todo o seu
desenrolar.
Didaticamente falando, essa complexa relação jurídica se nca em dois
pilares que são o dever principal de prestar e a garantia patrimonial para o caso
de sua inexecução. Conquanto a relação jurídica obrigacional nasça para ter um
m; m este que se dá com o cumprimento do dever de prestar, nela também está
prevista a situação indesejada do incumprimento. Embora seja, como se disse,
uma “situação indesejável, quando se estabelece a relação jurídica obrigacional,
nela se prevê o “plano B”, ou seja, a responsabilização patrimonial por meio da
realização da garantia patrimonial.
No momento em que se constitui uma relação obrigacional, nasce junto
a garantia patrimonial legal, pois o nosso ordenamento adotou a regra geral da
responsabilidade patrimonial legal do devedor inadimplente, ou seja, ela já existe
enquanto “garantia” da relação obrigacional antes do inadimplemento, mas
caso aconteça esta condicio iuris, p ermite-se que esta garantia seja efetivamente
realizada por meio da excussão do patrimônio do responsável.
O credor só poderá retirar do patrimônio do devedor a quantia correspon-
dente ao prejuízo do inadimplemento porque tal situação potestativa deriva do
subjacente direito material à garantia patrimonial. É importante que se perceba
isso, pois são momentos distintos do mesmo fenômeno alcunhado de responsabili-
dade patrimonial – antes e depois do incumprimento – que podem ser protegidos
juridicamente sob perspectivas também distintas, como adiante se demonstrará.
2. CONCEITUAÇÃO
2.1 Discernindo os termos: o que é responsabilidade?
O vocábulo “responsabilidade” é de senso comum no nosso dia a dia. Po-
de-se até dizer que faz parte de um pensamento intuitivo – diria quase “lógico”
– decorrente do binômio causa/efeito (dever/consequência).
A “responsabilidade” é, pois, a qualidade, uma qualidade que se atribui ao
“responsável”; e este, por sua vez, é o sujeito que deve suportar, assumir, garantir,
5. RIBEIRO DE FARIAS, Jorge Lei Areias. Direito das Obrigações, vol. II, Coimbra: Almedina, 1990.
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