A construção da identidade pessoal

Páginas17-42
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A CONSTRUÇÃO
DA IDENTIDADE PESSOAL
Neste capítulo, buscaremos compreender como os conceitos de identidade pes-
soal e privacidade se relacionam no contexto da proteção de dados pessoais, ou seja,
a partir de noções de como a identidade pessoal do sujeito é afetada por atividades
de tratamento de dados pessoais,1 especialmente quando destinadas a descobrir e/ou
prever o seu comportamento. Esta seção tem como objetivo identif‌icar o conteúdo
normativo do direito à privacidade nesse cenário, a partir de uma discussão f‌ilosóf‌ica
a respeito de como se dá a construção da identidade pessoal e de como atividades
de tratamento de dados podem afetá-la.
Para isso, será necessário, primeiramente, fundamentar a ideia de identidade
pessoal em uma perspectiva diacrônica, ou seja, o que faz uma pessoa ser a mesma
ao longo da vida e como isso molda o processo de formação da identidade pessoal.
Ressalta-se que não pretendemos fazer uma revisão bibliográf‌ica ou histórica a
respeito das diversas concepções e teorias da identidade pessoal. Adota-se como
marco teórico a teoria desenvolvida na obra Staying Alive: Personal Identity, Practical
Concerns and the Unity of a Life, de Marya Schechtman, em que se entende a formação
da identidade enquanto um processo de construção narrativa que se desenvolve de
maneira intersubjetiva.2
Massimo Durante também parte da ideia de identidade narrativa e def‌ine que
a construção da identidade pessoal:
é alcançada por meio da narração. Em outros termos, a identidade pessoal é composta de infor-
mações [...] que são dotadas de signicado por meio de uma construção narrativa coerente da
identidade pessoal em um contexto compartilhado de comunicação.3
1. O termo “tratamento” é conceituado pelo art. 5º, X da Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/18) para
se referir a “toda operação realizada com dados pessoais, como as que se referem a coleta, produção, recep-
ção, classif‌icação, utilização, acesso, reprodução, transmissão, distribuição, processamento, arquivamento,
armazenamento, eliminação, avaliação ou controle da informação, modif‌icação, comunicação, transferên-
cia, difusão ou extração”. (BRASIL. Lei n. 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados
Pessoais (LGPD). Brasília, DF: Presidência da República [2021]. Disponível em: http://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm. Acesso em: 13 jul. 2021). Sendo assim, este será o termo
utilizado no presente texto para se referir de forma abrangente a essas operações de processamento de dados.
2. SCHECHTMAN, Marya. Staying Alive: Personal Identity, Practical Concerns and the Unity of a Life. Oxford:
Oxford University Press, 2014.
3. DURANTE, Massimo. The Online Construction of Personal Identity Through Trust and Privacy. Informa-
tion, v. 2, n. 4, p. 594–620, out. 2011, p. 604.
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PROFILING NA LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS • Pedro Bastos LoBo Martins
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Neste capítulo, exploraremos como a ideia de identidade como construção
narrativa intersubjetiva se relaciona com os conceitos de livre desenvolvimento da
personalidade e autodeterminação informativa, trabalhados no capítulo anterior, a
partir do direito à privacidade e da proteção de dados pessoais.
2.1 IDENTIDADE COMO NARRATIVA INTERSUBJETIVA
A teoria da identidade narrativa entende pessoas como entidades diacrônicas,
ou seja, que existem ao longo de determinado tempo, desenvolvendo-se e passando
por mudanças ao longo desse período.4 A partir dessa teoria, compreende-se que
a vida de uma pessoa é formada por meio de uma história que unif‌ica os aconteci-
mentos por ela vivenciados em uma narrativa única e coesa. Essa narrativa amarra
acontecimentos pretéritos com planos futuros e ações no presente, formando,
assim, uma narrativa constitutiva de sua identidade.5 Dessa maneira, o que torna
uma ação atribuível a uma pessoa é a incorporação dessa ação na narrativa de vida
dessa pessoa.
É possível traçar paralelos entre a concepção de pessoa defendida no capítulo
anterior, muito ligada à ideia de devir,6 e os desenvolvimentos da teoria narrativa da
identidade. A agência de uma pessoa a partir dessa teoria é caracterizada não apenas
pelas características ou condições que ela possui em um determinado momento de
sua ação, mas também pelas ações passadas e planos futuros que ela carrega consigo.
Contudo a teoria narrativa encontrava limitações ao lidar com pessoas que
não são capazes de formar uma narrativa (como bebês, ou pessoas com def‌iciências
cognitivas graves). A incapacidade de criar uma narrativa própria para a sua vida
poderia ser um parâmetro muito elevado, que exclui dessa condição agentes que
deveriam ser caracterizados como pessoa.
Além disso, a autonarrativa pode cair em uma armadilha de isolar a análise da
pessoa do meio social, implicando uma identidade construída por um sujeito intei-
ramente autossuf‌iciente. O desenvolvimento das próprias capacidades cognitivas
necessárias para a formação dessa autonarrativa possui uma relação de dependência
mútua com as condições de interação social.7
Marya Schechtman expande essa a teoria narrativa clássica adicionando a ela
dois novos elementos: o reconhecimento de terceiros sobre a narrativa do sujeito
4. SCHECHTMAN, Marya. Staying Alive: Personal Identity, Practical Concerns and the Unity of a Life. Oxford:
Oxford University Press, 2014.
5. SCHECHTMAN, Marya. Staying Alive: Personal Identity, Practical Concerns and the Unity of a Life. Oxford:
Oxford University Press, 2014.
6. STANCIOLI, Brunello. Renúncia ao exercício dos direitos da personalidade ou como alguém se torna o que
quiser. Belo Horizonte: Del Rey, 2011.
7. SCHECHTMAN, Marya. Staying Alive: Personal Identity, Practical Concerns and the Unity of a Life. Oxford:
Oxford University Press, 2014.
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