Da conceituação à regulação do profiling

Páginas75-134
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DA CONCEITUAÇÃO À REGULAÇÃO
DO PROFILING
Ao longo dos três capítulos anteriores foi realizada uma análise panorâmica dos
impactos que atividades de tratamento de dados podem causar e os riscos gerados,
especialmente quando esse tratamento se dá de forma automatizada. Ideias funda-
mentais para a compreensão das premissas e das consequências desse tratamento
automatizado, como o behaviorismo de dados e a governamentalidade algorítmica,
foram mobilizadas em interface com a teoria da identidade narrativa para evidenciar
esses riscos e impactos.
Neste último capítulo do trabalho, utilizaremos a bagagem teórica desenvol-
vida anteriormente para analisarmos uma atividade de tratamento automatizado
específ‌ica, qual seja, o prof‌iling. Isso se justif‌ica na medida em que o prof‌iling reúne
os elementos supracitados e serviu como mobilizador da problemática abordada
até aqui. Ademais, embora já exista uma literatura internacional desenvolvida
sobre o tema, especialmente no cenário europeu, no cenário brasileiro o tema
ainda é incipiente e existem lacunas na regulação dessa atividade na Lei Geral de
Proteção de Dados.
Sendo assim, vislumbra-se que a proteção de dados, defendida enquanto regras
de procedimento que visam a assegurar que o f‌luxo informacional aconteça de forma
condizendo com os direitos e as liberdades fundamentais, deve estabelecer regras
mais claras para a atividade de prof‌iling.
Inicialmente, trabalharemos a def‌inição e a conceituação do prof‌iling, bem
como algumas de suas premissas e implicações imediatas. Em seguida, a análise feita
até aqui será expandida para buscar compreender como se apresentam riscos não
apenas de ordem individual, mas também de ordem coletiva, visto que o prof‌iling é
um fenômeno supraindividual. Por f‌im, no último tópico, serão analisadas algumas
salvaguardas e propostas concretas de regulação.
4.1 DEFINIÇÕES E ELEMENTOS CONCEITUAIS DO PROFILING
Embora a Lei Geral de Proteção de Dados traga, em seu art. 5º, uma robusta
lista de def‌inições, ela não apresenta em seu texto nenhuma def‌inição de prof‌iling
ou de alguma atividade similar. No entanto, em seus artigos 12, § 2º, e 20, caput,
essa atividade é mencionada:
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PROFILING NA LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS • Pedro Bastos LoBo Martins
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Art. 12. Os dados anonimizados não serão considerados dados pessoais para os ns desta Lei,
salvo quando o processo de anonimização ao qual foram submetidos for revertido, utilizando
exclusivamente meios próprios, ou quando, com esforços razoáveis, puder ser revertido.
§ 2º Poderão ser igualmente considerados como dados pessoais, para os ns desta Lei, aqueles
utilizados para formação do perl comportamental de determinada pessoa natural, se identicada.
[...]
Art. 20. O titular dos dados tem direito a solicitar a revisão de decisões tomadas unicamente
com base em tratamento automatizado de dados pessoais que afetem seus interesses, incluídas
as decisões destinadas a denir o seu perl pessoal, prossional, de consumo e de crédito ou os
aspectos de sua personalidade.1
Como se pode observar, a LGPD, ainda que de forma tímida e incipiente,
impõe uma regulação mais restritiva às atividades destinadas à formação do
perf‌il comportamental de um titular. De todo modo, a mera referência à forma-
ção de perf‌il comportamental ou à avaliação de aspectos da personalidade são
insuf‌icientes para compreender toda complexidade trazida pela atividade de
prof‌iling. Portanto, será necessário recorrer à literatura científ‌ica e à legislação
estrangeira, notadamente à GDPR, para buscar uma conceituação mais precisa
desse fenômeno.
Na literatura científ‌ica, uma proeminente def‌inição de prof‌iling é proposta por
Mireille Hildebrandt:
O processo de “descoberta” de correlações entre dados em bancos de dados que podem ser
usados para identicar e representar um sujeito humano ou não humano (indivíduo ou grupo) e
/ ou a aplicação de pers (conjuntos de dados correlacionados) para individuar e representar um
sujeito ou para identicar um sujeito como membro de um grupo ou categoria.2
O projeto de pesquisa europeu PROFILING apresentou como um dos resultados
da pesquisa a seguinte def‌inição para o fenômeno:
Proling é uma técnica de tratamento (parcialmente) automatizado de dados pessoais e / ou não
pessoais, com o objetivo de produzir conhecimento por meio de inferências de correlações de
dados na forma de pers que podem ser posteriormente aplicados como base para a tomada de
decisões.
Um perl é um conjunto de dados correlacionados que representa um sujeito (individual ou
coletivo).
Construir pers é o processo de descobrir padrões desconhecidos entre dados em grandes con-
juntos de dados que podem ser usados para criar pers.
1. BRASIL. Lei n. 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Brasília,
DF: Presidência da República [2021]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
2018/2018/lei/l13709.htm. Acesso em: 13 jul. 2021.
2. Tradução nossa. HILDEBRANDT, Mireille. Def‌ining Prof‌iling: A New Type of Knowledge? In: HILDEBRAN-
DT, Mireille; GUTWIRTH, Serge (Eds.). Prof‌iling the European Citizen: Cross-Disciplinary Perspectives.
Cham: Springer Science, 2008, p. 19.
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4 • DA CONCEITUAÇÃO À REGULAÇÃO DO PROFILING
A aplicação de pers é o processo de identicar e representar um determinado indivíduo ou grupo
como adequado a um perl e de tomar alguma forma de decisão com base nessa identicação
e representação.3
Observa-se, assim, que algumas premissas já exploradas nesta pesquisa, como
a lógica de correlações e a heteroidentif‌icação de pessoas ou de grupos de pessoas,
são reforçadas por essa def‌inição.
Já em relação a uma conceituação legal, a GDPR def‌ine prof‌iling em seu artigo
4º, item 4, com ênfase em seus usos para previsão comportamental e outras carac-
terísticas socialmente relevantes do sujeito:
‘proling’ means any form of automated processing of personal data consisting of the use of
personal data to evaluate certain personal aspects relating to a natural person, in particular to
analyse or predict aspects concerning that natural person’s performance at work, economic
situation, health, personal preferences, interests, reliability, behaviour, location or movements;4
Pode-se observar uma diferença imediata entre as def‌inições acadêmicas e a
legal. A def‌inição de Hildebrandt e do projeto PROFILING levam em consideração
a representação de grupos e a identif‌icação de um sujeito enquanto membro de
um grupo. Já na def‌inição da GDPR há um maior foco na avaliação de uma pessoa
individual, sem uma referência expressa à formação de grupos.
Ainda, a def‌inição da GDPR def‌ine a atividade a partir de seu resultado: o uso
de dados pessoais para avaliar aspectos pessoais de uma pessoa natural. Por outro
lado, Hildebrandt traz uma noção procedimental do prof‌iling, caracterizando-o a
partir de como esse processo ocorre para enf‌im chegar a seu objetivo – aplicar perf‌is
para identif‌icar e representar um sujeito.
Um último ponto importante a ser observado na está no fato de que, para ser
caracterizado como criação de perf‌il, algum processamento automatizado deve
ocorrer, conforme descrito na GDPR. No entanto, não se faz necessário que esse
processo seja feito de forma totalmente automatizada. Em outras palavras, a parti-
cipação humana no processo não descaracteriza a atividade.5
3. Tradução nossa. BOSCO, Francesca et al. Prof‌iling technologies and fundamental rights: an introduction.
In: CREEMERS, Niklas et al. Prof‌iling Technologies in Practice: Applications and Impact on Fundamental
Rights and Values. Oisterwijk: Wolf Legal Publishers, 2017, p. 9.
4. GDPR, art. 4 (4). Optou-se por manter a versão em inglês, sem tradução, do texto do Regulamento, uma
vez que existem controvérsias geradas pela tradução para o português de Portugal (EUROPEAN UNION.
[General Data Protection Regulation]. Regulation (EU) 2016/679 of the European Parliament and of the
Council of 27 April 2016. on the protection of natural persons with regard to the processing of personal
data and on the free movement of such data, and repealing Directive 95/46/EC. Bruxelas, 27 abr. 2016.
Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/eli/reg/2016/679/oj. Acesso em: 21 jul. 2021).
5. ARTICLE 29 DATA PROTECTION WORKING PARTY. Guidelines on automated individual decision-
-making and prof‌iling for the purposes of Regulation 2016/679. Disponível em: https://ec.europa.eu/
newsroom/article29/items/612053. Acesso em: 15 jul. 2021; BOSCO, Francesca et al. Prof‌iling technologies
and fundamental rights: an introduction. In: CREEMERS, Niklas et al. Prof‌iling Technologies in Practice:
Applications and Impact on Fundamental Rights and Values. Oisterwijk: Wolf Legal Publishers, 2017.
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