Consumismo e superendividamento: pressuposto e consequência da sociedade de consumo

AutorGean Carlos Balduíno Júnior
Páginas53-93
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Capítulo 2
CONSUMISMO E SUPERENDIVIDAMENTO: PRESSUPOSTO
E CONSEQUÊNCIA DA SOCIEDADE DE CONSUMO
Como já se introduziu em linhas anteriores, a partir da análise da
sociedade de consumidores, ao menos em regra geral, o pobre ou o
despossuído de patrimônio tem um não-lugar, ou seja, não contribui em
nada para que se constitua uma sociedade que se acredite ser livre e feliz.
Assim, como “jogadores impotentes, indolentes, devem ficar fora do
jogo”110, assertiva que representa a perspectiva excludente que se
desenvolve na modernidade líquida ou na hipermodernidade sempre a
depender daquilo que se tem a dar como oferenda ao deus-mercado.
Sendo, pois, uma sociedade fundamentada no consumo (e no
consumo especificamente de massas), o consumidor falho, o indivíduo
que não atende àquilo que o próprio mercado desperta, ou que a grande
massa deseja, é visto como detentor de fracasso pessoal. Por isso, a busca
da felicidade, como um paradigma permanente na hipermodernidade,
passa sempre pelo ato de consumir ou de escolher os produtos nas
vitrines à disposição de todos: é necessário sempre mais, numa
insaciedade sem fim111, mesmo que bem-estar material não seja sinônimo,
necessariamente, de uma vida feliz112.
Para a maioria de nós, apesar dos desejos de
dinheiro que cada vez mais ouvimos exprimir, não é
tanto a aquisição de coisas, mas principalmente a
nossa relação co m nós próprios e com os outros que
condiciona as nossas maio res alegrias e tristezas.
São os outros, muito mais do que as coisas, que
suscitam as paixões mais imoderadas, o
110 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em
mercadoria. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 167.
111 LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. A cultura-mundo: resposta a uma sociedade
desorientada. Lisboa: Edições 70, 2017. p. 75-76.
112 LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade do
hiperconsumo. Lisboa: Edições 70, 2007. p. 12.
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contentamento e também o sofrimento mais
intensos. [...]113
Bem por isso, partindo dessa ótica em que o consumo se
apresenta como um ideal de pertencimento ou completude114,
circunstância que se alia ao fato de que, devido à efemeridade das
relações sociais, pensa-se apenas no agora e quase nunca no depois,
fomentando o uso abusivo do crédito para o consumo. Existem fortes
demonstrações que o endividamento da população brasileira tem
alcançado patamares excessivos. Seja por meio de atos conscientes, seja
mediante a aquisição compulsiva (e talvez inconsciente) de bens postos à
venda no mercado, boa parcela dos consumidores tem se visto submersa
em dívidas que impossibilitam o pleno exercício de uma vida digna, em
razão especialmente do comprometimento de patamares elevados de sua
renda. Para se discorrer sobre as nuances e as interconexões existentes
entre consumismo e superendividamento, é necessário depreender qual o
perfil de consumo e de comprometimento da renda dos brasileiros.
Diversas têm sido as pesquisas115 que buscam identificar aspectos
113 LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade do
hiperconsumo. Lisboa: Edições 70, 2007. p. 161.
114 BAUMAN, Zygmunt. A riqueza de poucos beneficia todos nós? Rio de Janeiro:
Zahar, 2015. p. 67.
115 BORGES, João Paulo Resende. O superendividamento no Brasil: um estudo sob a
ótica da análise econômica do direito. Revista da Procuradoria-Geral do Banco
Central, Brasília, v. 12, n. 2, p. 95-109, jul./dez. 2018. Disponível em:
https://revistapgbc.bcb.gov.br/index.php/revista/issue/view/29/A6%20V.12%20-%20N.2.
Acesso em: 20 jul. 2021; CARVALHO, Sandro Sacchet et al. O consumo das famílias
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Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6779/1/TD_2209.pdf.
Acesso em: 20 jul. 2021; GALVÃO, Maria Cristina; ALMEIDA, Alexandre Nunes. O
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Públicas. Brasília, n. 50, p. 13-46, jan./jun. 2018. Disponível em:
https://www.ipea.gov.br/ppp/index.php/PPP/article/view/705/460. Acesso em: 20 jul.
2021; SILVEIRA, Fernando Gaiger et al (org.). Gasto e consumo das famílias
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https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/livros/livros/160104_gasto_e_consu
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Gaiger et al (org.). Gasto e consumo das famílias brasileiras contemporâneas. Brasília:
IPEA, 2017. v. 2. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/li
vros/Livro_completo2.pdf. Acesso em: 20 jul. 2021.
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relevantes do consumo pelas famílias, já que sua análise também implica
compreender a qualidade de vida da população. Para a finalidade desta
pesquisa, foram utilizados dados do Banco Central do Brasil, a partir do
Relatório de Estabilidade Financeira publicado em abril de 2019116 e em
abril de 2021117. O primeiro documento foi escolhido por se posicionar
antes da propagação da crise sanitária decorrente da COVID-19, para que
o fenômeno não fosse utilizado como argumento para a perturbação do
mercado financeiro.
Conforme consta do primeiro relatório utilizado nesta pesquisa,
2019 foi o período que apresentou maior crescimento, se comparado aos
quatro anos anteriores, em grande parte devido ao impulsionamento do
crédito de consumo às famílias brasileiras. Esse contexto propício ao
aumento da carteira de crédito às famílias se deveu pela melhora de sua
renda, estabilidade das taxas de inflação e juros em patamares baixos,
além de fomento, pelas instituições financeiras, de uma oferta mais
intensa de crédito no mercado de consumo. A previsão do próprio
relatório era no sentido de ser mantido o crescimento do crédito às
pessoas físicas, que já vinha em franca ascensão nos últimos anos tanto
é assim que, se comparado aos anos desde 2013, foi no período analisado
no relatório de abril de 2019 que as concessões anuais por meio do cartão
de crédito e do crédito consignado alcançaram seus maiores volumes.
O relatório publicado em abril de 2019 também foi enfático ao
pontuar ter havido um crescimento nas compras à vista pelas famílias,
além de os percentuais de inadimplência da fatura de cartão de crédito
terem se reduzido, fenômeno que é justificado no próprio documento
como consequência da melhora do poder aquisitivo das pessoas físicas e
da proibição de permanência de saldos no rotativo por mais de 30 dias
(conforme normativa adotada pelo Banco Central do Brasil a partir de
2017). Por outro lado, depois da instalação da pandemia do novo
coronavírus em todo o mundo, a mesma publicação semestral apresentou
116 BANCO CENTRAL DO BRASIL. Relatório de estabilidade financeira, v. 18, n . 1,
abr. 2019. Disponível em: https://www.bcb.gov.br/content/publicacoes/ref/201904/RELE
STAB201904-refPub.pdf. Acesso em: 20 jul. 2021.
117 BANCO CENTRAL DO BRASIL. Relatório de estabilidade financeira, v. 20, n . 1,
abr. 2021. Disponível em: https://www.bcb.gov.br/content/publicacoes/ref/202104/RELE
STAB202104-refPub.pdf. Acesso em: 20 jul. 2021.

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