Conteúdos potencialmente perigosos: perfis falsos, discurso de ódio e fake news

AutorJoão Victor Rozatti Longhi
Páginas93-159
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CONTEÚDOS POTENCIALMENTE
PERIGOSOS: PERFIS FALSOS, DISCURSO
DE ÓDIO E FAKE NEWS
Censura. Censura em qualquer lugar. Os fundamentalistas da Primeira Emenda gostam de invocar os
pais fundadores para justicar uma concepção cada vez maior de liberdade de expressão, mas muito
do que é considerado speech hoje seria, sem dúvida, um choque para os idealizadores da Primeira
Emenda: queima de bandeiras, dança exótica, saudações nazistas, pornograa infantil virtual, video-
games violentos, doações corporativas, sobretaxas de cartão de crédito, apenas para citar alguns. Muito
teria surpreendido até mesmo os americanos de apenas algumas gerações atrás. Os fundamentalistas
da Internet veem praticamente tudo na Rede como speech, seja pornograa de vingança, instruções
de fabricação de bombas, vídeos de recrutamento de terroristas, teorias da conspiração, registros mé-
dicos hackeados, fotos íntimas por debaixo de saias (upskirts), até mesmo spam e vírus de computador.
Alguns até argumentaram que a impressão tridimensional sem o, capaz de criar tudo, desde biquínis
até armas de fogo, deve ser considerada liberdade de expressão para ns da Primeira Emenda.
Mary Anne Franks1
A fala de Franks tem em conta o sistema norte-americano mas é uma chave para a
discussão acerca dos limites da liberdade de expressão, especialmente na Internet. Com
efeito, o tom é de crítica, sendo a autora uma das muitas vozes que problematiza acerca
da pertinência de uma visão mais permissiva a discursos extremos sob suposta guarida
do direito fundamental à liberdade de expressão – free speech – no formato da Primeira
Emenda à Constituição Americana.
Af‌inal, há quem veja que a liberdade de expressão não pode ser considerada em
absoluto, como se fosse o único valor a ser tutelado pelo sistema normativo que visa
proteger a dignidade humana na sociedade da informação. Nesse sentido, Rousiley C.
M. Maia e Gomes:
1. No original: “CENSORSHIP, CENSORSHIP EVERYWHERE. First Amendment fundamentalists are fond of invoking
the founding fathers to justify an ever-expanding conception of free speech, but much of what is considered speech today
would no doubt be a shock to the drafters of the First Amendment: f‌lag burning, exotic dancing, Nazi salutes, virtual
child pornography, violent video games, corporate donations, credit card surcharges, just to name a few. Much would
have surprised even Americans of only a few generations ago. Internet fundamentalists view virtually everything on
the Internet as speech, whether it is revenge porn, bomb-making instructions, terrorist recruitment videos, conspiracy
theories, hacked medical records, upskirt photos, even spam and computer viruses. Some have even argued that three-
-dimensional wireless printing, capable of creating everything from bikinis to f‌irearms, should be considered speech for
First Amendment purposes.” FRANKS, Mary Anne. The Cult of Constitution. Standford: Standfor Universy Press,
2019. p. 181-182.
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No momento da mais inamada retórica emancipatória da Internet, a rede era entendida como uma
reserva ambiental protegida por qualquer injunção de controle e ltro, e dedicada a cultivar a plena
liberdade de expressão. Liberdade que, automaticamente, deveria ser considerada automaticamente
como uma virtude democrática. O modelo de democracia liberal-individualista conhecido como
libertarianismo encontrava na forma do ciberlibertarianismo, a sua ponta-de-lança. Rapidamente se
descobriu, entretanto, que a equação segundo a qual a liberdade sempre está do lado da democracia
e controle do lado da tirania é só um artifício retórico do libertarianismo na sua forma mais extremada.
Há informação má, perigosa, criminosa, ofensiva à dignidade humana, injuriosa e antidemocrática, e
defender seu direito de existir não é o mesmo que lutar por direitos civis no ciberespaço. Ao contrário,
pode signicar o engajamento na proteção ao hate speech, ao racismo publicado, à discriminação
de minorias (Gomes, 2002). E se na Internet de fato oresce um espaço da liberdade de expressão e
de experiência democrática, ela igualmente se transformou no paraíso dos conservadores, da ultra-
direita, dos racistas e dos xenófobos, um refúgio que, aliás, tem-lhes sido mais seguro e próspero que
o mundo ofine.2
Como já salientado, restringindo-se à Internet, a sistemática que parte da inim-
putabilidade da rede como um princípio trata de maneira genérica toda e qualquer
espécie de provedor, não se atentando nem à robustez da empresa que desempenha,
nem da possibilidade técnica de controle que pode exercer por intermédio dos f‌iltros
que administra.
Eli Pariser, ao analisar a contradição existente entre o discurso dos programado-
res de software acerca da necessidade de proteção dos direitos individuais e da grande
aglutinação de poder que o controle dos meios tecnológicos proporciona, adverte: “Se o
código é a lei, como na famosa declaração de Larry Lessig, é importante entendermos o
que os novos legisladores têm em mente. Precisamos entender aquilo em que acreditam
os programadores do Google e do Facebook.”3 Em outro trecho, é enfático ao af‌irmar
quais acredita serem as reais intenções dos grandes intermediários ao preconizar uma
liberdade absoluta e irrestrita como base de suas condutas na Rede:
Com muita frequência, os executivos do Facebook, Google e outras empresas socialmente importantes
se fazem de bobos: são os revolucionários sociais quando lhes convêm e empresários amorais quando
não. E as duas posturas deixam muito a desejar.4
As asseverações do autor, ilustram o problema (e revelam a fragilidade) de uma
pré-ponderação de valores que dá posição prevalente à liberdade de expressão, em
abstrato e em prejuízo de outros valores do ordenamento igualmente relevantes que
podem prevalecer no caso concreto. Valores como a tutela de aspectos da personalidade
como honra, imagem atributo, privacidade, identidade, dentre outros não podem ser
simplesmente deixados de lado na Internet.5
2. GOMES, Wilson; MAIA, Rousiley C. M. Comunicação e democracia. Problemas & perspectivas. São Paulo: Paulus,
2008. p. 321-322.
3. PARISER, Eli. O f‌iltro invisível. O que a Internet está escondendo de você. Trad. Diego Alfaro. Rio de Janeiro: Zahar,
2012. p. 23.
4. Id. p. 156.
5. Colocando os valores constitucionais em pé de igualdade, Enunciado do CJF: ENUNCIADO 613 – Art. 12: A
liberdade de expressão não goza de posição preferencial em relação aos direitos da personalidade no ordenamento
jurídico brasileiro
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Criar um sistema de responsabilidade civil que parte do pressuposto da irrespon-
sabilidade por qualquer conteúdo, fazendo depender o dever de retirá-lo do ar de provi-
mento judicial específ‌ico sobre o exato local da informação, pode deixar sem proteção
alguma o elo mais fraco desta corrente: o usuário.
Utilizar como subterfúgio o caráter absoluto da liberdade de expressão para aco-
bertar modelos de negócio irresponsáveis parece ser a subversão completa dos valores
constitucionais, que sempre tiveram as situações subjetivas existenciais como corolário
do epicentro axiológico do ordenamento: a dignidade da pessoa humana em todos os seus
aspectos. Em outros termos, usar o direito fundamental à liberdade de expressão como
base da “inimputabilidade” de todo e qualquer intermediário da rede esconde a tutela
de um único direito fundamental em detrimento de todos os outros: a livre iniciativa.
Essa também é a conclusão de Daniel Solove. Para o autor, a Seção 230 do US.
Code, Communications Decency Act deveria ser reformada: “Além de falhar na proteção
adequada da privacidade, a lei superprotege a liberdade de expressão. Particularmente,
o CDA § 230 promove uma cultura de irresponsabilidade quando se trata da liberdade
de expressão online.”6
O dispositivo legal estrangeiro, curiosamente, é utilizado tanto como fundamen-
tação para a jurisprudência brasileira até então, como para justif‌icar a opção legislativa
a ser tomada pelo Marco Civil no artigo 19.7
Como se verá, a imunidade dos provedores criou ao longo de décadas uma situação
que incrementa riscos de discursos de ódio, desinformação, dentre outras situações
potencialmente perigosas às vítimas e à própria sociedade. Por essa razão, deve ser
repensada, sendo objeto de análise três das mais emblemáticas: os perf‌is falsos, o dis-
6. SOLOVE, Daniel. Speech, privacy and reputation on the Internet. in LEVMORE, Saul; NUSSBAUM, Martha. The
offensive Internet. Cambridge: Harvard University Press, 2010. p. 23. Tradução livre.
7. Ao mesmo passo que parte da doutrina norte-americana preconiza um repensar sobre o instituto no ordenamento
jurídico local, foi objeto de questionamento pelo Presidente Americano Donald Trump após ter posts seus no
twitter indicados como possíveis notícias falsas, fake news. Trump assinou uma ordem Executiva (Executive
Order) visando indicar a necessidade de alteração da Seção 230 do Communications Decency Act que, como visto,
é a base para o sistema de responsabilização dos provedores de aplicação – dentre eles as redes sociais – e se baseia
no chamado notice and takedown. Embora tenha se declarado ser “contra a censura”, na prática representou uma
vingança à rede social que, corretamente do ponto de vista jurídico, agiu para coibir a desinformação, a violência e
busca zelar por um ambiente informacional sadio, mitigando riscos trazidos por conteúdos impróprios. Sintetizan-
do as críticas da doutrina e pontua a contradição do Decreto Executivo Mary Anne Franks: “And this is perhaps the
most profound irony of the executive order: It criticizes the sweeping immunity provided to the tech industry by Section
230 of the Communications Decency Act, the controversial 1996 federal law that prohibits online intermediaries from
being treated as the publishers or speakers of content posted by internet users. But the order doesn’t address the core
problem with the law that scholars and advocates have highlighted for years—namely, how its immunity provision
not only fails to encourage online intermediaries to address harmful content but rewards them for indifference. Trump’s
order does not acknowledge the ways that this immunity has allowed online intermediaries to ignore, encourage, and
prof‌it from abuses—harassment, privacy invasion, deadly misinformation—directed at vulnerable groups, especially
women and people of color. It does not recognize, in other words, the similarities between Twitter and Trump.” THE
ATLANTIC. The Utter Incoherence of Trump’s Battle With Twitter: the president’s executive order is opportunistic
and Orwellian but that was the whole point. Mary Anne Franks. May 30, 2020. Disponível em: [https://www.
theatlantic.com/ideas/archive/2020/05/the-utter-incoherence-of-trumps-battle-with-twitter/612367/]. Acesso
em: 01 jun. 2020.
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