A culpa e as questões incidentais do divórcio

AutorPaulo Hermano Soares Ribeiro - Edson Pires da Fonseca
Ocupação do AutorProfessor de Direito Civil das Faculdades Pitágoras de Montes Claros, MG e da FADISA - MG. Tabelião de Notas. Advogado licenciado. - Professor de Direito Constitucional e Teoria do Direito na FADISA e na FAVAG - MG
Páginas221-232

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Concluímos que a exigência de prova da culpa ou de outro fundamento causal para a dissolução do casamento não foi recepcionada pela norma constitucional emergente da EC 66/2010. O exercício da autonomia privada de não permanecer casado, se realiza apenas pela vontade, daí dizermos que se trata de direito potestativo de cada um dos cônjuges.

Contudo, algumas questões incidentais consequentes da dissolução, mas com autonomia em relação ao rompimento, necessariamente

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não estão adstritas àquele raciocínio. Trata-se da possibilidade de averiguação de culpa em outras idiossincrasias do Direito de Família como responsabilidade civil, alimentos, manutenção do nome, e, recentemente, no pleito da usucapião punitiva.

É de se reiterar que o debate sobre a culpa como fundamento ou pressuposto para a possibilidade jurídica da dissolução não faz mais parte do sistema, por força da EC 66/2010. Porém, a mesma norma constitucional não possui a abrangência geral para eliminar de todas as questões relacionadas com o direito de família o debate sobre a culpa, em processos autônomos, para solução das controvérsias abaixo.

6. 1 Culpa e responsabilidade civil

O desencanto, a desilusão e a decepção com o rompimento unilateral da conjugalidade podem produzir dor e sofrimento para o cônjuge abandonado, e eventualmente, para ambos. Há, sem dúvida, a experimentação de um dano pelo cônjuge rejeitado, causado por aquele que rejeita. Contudo, deixar de amar não corresponde à conduta ilícita e seu resultado - o rompimento por si - é incapaz de sustentar a obrigação de indenizar, ainda que o dano seja explícito. E isso é cruelmente simples quando verificamos que desfazer o casamento é exercício regular de um direito: o de não permanecer casado. Se é direito, seu exercício não pode gerar punição.

Naturalmente que o abandono acompanhado de dolosa exposição do outro ao vexame público, ou a prejuízo material, é dano indenizável. Mas o será pelas circunstâncias que o cercam e não pelo ato em si.44

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Em tais circunstâncias, a despeito dos argumentos que eventualmente desaconselhem a ação de reparação, a EC 66/2010 em nada altera a possibilidade jurídica do pedido.

Como alerta José Fernando Simão, "não se trata de permitir irresponsabilidade do cônjuge":

Também não se pode afirmar que caso um dos cônjuges cause danos ao outro, a culpa não poderá ser debatida em ação indenizatória. Isto porque se houver ofensas físicas ou morais, agressão aos direitos de personalidade, o cônjuge culpado responderá civilmente.

O inocente, vítima do dano, terá assegurado seu direito à indenização cabal.45O debate sobre a culpa, porém, para fundamentar pleito reparatório não cabe na ação de divórcio: "a culpa será debatida no locus adequado em que surtirá efeitos: a ação autônoma de alimentos ou eventual ação de indenização promovida pelo cônjuge que sofreu danos morais, materiais ou estéticos"46.

6. 2 Culpa e alimentos

Em sentido comum, os alimentos compreendem os recursos necessários ao sustento e nutrição, o que vincula o conceito às necessidades vitais da pessoa, cuja satisfação resulta na sua manutenção física. O sentido jurídico amplia o conceito para compreender os recursos indispensáveis para atendimento de necessidades básicas da pessoa humana, tais como nutrição, vestuário, saúde, transporte habitação, e outras sem as quais resta prejudicada a dignidade da pessoa humana. Mas comporta ainda, em um sentido mais amplo, utilidades que exasperam os limites da necessidade básica para sobrevivência, como a

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manutenção de determinado padrão de vida, onde se incluem maior acesso a educação e cultura (teatro, cinema, literatura), moradias de melhor padrão, viagens, veículos, ou seja, conforto e dignidade em nível médio, alto ou superlativo.

O princípio da solidariedade familiar é fundamento irrecusável do dever alimentar, embora, paradoxalmente, sua exigibilidade seja reflexo de imperativo legal de natureza cogente. Não obstante, "as razões que obrigam a sustentar os parentes e a dar assistência ao cônjuge transcendem as simples justificativas morais ou sentimentais, encontrando sua origem no próprio direito natural"47. Da Constituição Federal de 1988, emerge o dever de assistência48, e a possibilidade de prisão civil por dívida alimentar49. Também no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90), e no Estatuto do Idoso (Lei 10.741/03), constam dispositivos pertinentes.

A fixação dos alimentos gravita em torno da possibilidade de quem deve prestá-los e da necessidade de quem vai recebê-los, devendo equilibrar-se sobre o duplo fio destas circunstâncias.50Esse equilíbrio é fornecido pelo princípio da proporcionalidade, essencial e absolutamente irrecusável na fixação dos alimentos. Necessidade, possibilidade e proporcionalidade compõem o triplo alicerce onde se erguem e se estabilizam os alimentos.

A necessidade reporta ao que não se pode dispensar ou prescindir, por ser essencial. O traço da necessidade, portanto, descreve uma pessoa despojada de patrimônio ou renda, e sem meios de prover, pelo trabalho, a própria mantença, seja quanto ao mínimo para sua

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sobrevivência, seja para viver de modo compatível com a sua condição social. A possibilidade, por outro lado, compreende a situação de quem tem meios para seu próprio sustento, e meios para prover o sustento alheio, sem que, esta providência prejudique ou coloque em risco a própria mantença.51A harmonia destes pressupostos52pode variar em razão da dinâ-mica da vida econômica que altera a fortuna das pessoas. Fenômenos e fatores dos mais diversos podem deitar sobre a pessoa maior ou menor sucesso em seus empreendimentos, de forma a refletir diretamente em sua possibilidade e necessidade. Por tais razões, sempre que o equilíbrio ou proporção inicial entre possibilidade e necessidade for alterado, abre-se a via da revisão de alimentos.

O direito de pleitear alimentos e o dever de prestá-los está amparado pelo vínculo existente entre credor e devedor, cujo conteúdo deve ser fixado na proporção das necessidades do reclamante e dos recursos da pessoa obrigada. O vínculo pode ser legal, obrigacional ou voluntário.

O vínculo legal pressupõe liame familiar ou parental, este último consanguíneo, civil ou afetivo.

Nos termos da legislação civil, o direito de pleitear alimentos persiste a despeito da conduta do credor, mas o quantum da prestação pode variar se houver prova de culpa. Isso ocorre tanto no que se refere aos alimentos entre parentes (CC/2002, art. 1.694, § 2º)53quanto

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no que se refere aos alimentos entre cônjuges ou companheiros (CC/2002,art. 1.704, Parágrafo único)54. O credor culpado pela situação do depauperamento em que se encontra terá direito a...

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