Dando um passo para trás: do litígio judicial para o conflito

AutorBruno Takahashi
Ocupação do AutorDoutor, Mestre e Bacharel em Direito pela USP
Páginas11-52
Capítulo 1
DANDO UM PASSO PARA TRÁS:
do litígio judicial para o conflito
“Do mesmo modo que o proce sso não consegue abarcar a complexid ade
envolvida em sit uações conflit ivas determinada s, também o direito ma-
terial não consegue dela d ar conta. Por essa razão surge a necessidade
de a análise jurí dica trabalhar sob uma perspectiva mais ab erta, consi-
derando não ape nas a realidade norm ativa, mas também aquel a políti-
ca, econômica e soc ial na qual ela está envolvi da, para além da perspec-
tiva exclusivame nte jurídica.”
Carlos Alberto de Sa lles19
O conflito costuma ser estudado pelo direito processual sob o
viés da controvérsia judiciali zada. Para Carnelutti, um conf lito de inte-
resses é caracteri zado por uma pretensão resistida e carrega elementos
extraprocessuais (vide item 1.1.1.2, infra). Contudo, mesmo que basea-
da na acepção ampla proposta pelo jurista ita liano, a noção de lide aca-
ba, ordinariamente, limitada à pretensão resistida deduzida em juízo.
Tanto que, no justificado anseio de retomar a ideia originária, alguns
falam em lide sociológica, o que, de certo modo, é uma redundância.
Para que tal enfoque seja alterado, é necessário dar um passo
atrás, deixando de olhar apenas para os casos judicializados e cami-
nhando em direção ao conflito. Para ta nto, cabe analisar o confl ito no
contexto em que inserido. Essa postura é cond izente com a instrumen-
talidade metodológica proposta por Carlos Alberto de Salles, segundo
a qual o processualista, em vez de tomar as regras do processo como
objeto primário de sua investig ação, deve partir da a nálise de um cam-
po específico da realidade jurídica e social para, então, determinar a
melhor resposta processual possível, não se tratando simplesmente de
19 Arbitra gem em Cont ratos Admin istrativo s, cit. p. 27.
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Em busca da solução adequada de conitos
estudar o direito material e, a partir dele, encontrar a ação correspon-
dente.20 Em suma, o que a instrumentalidade metodológica propõe é
partir dos problemas de cada campo específico do direito e da realida-
de fática para, só então, se chegar ao processo.21 Assim sendo, importa
analisa r o conflito em seu nascedouro e não apenas na forma de litíg io
judicializado.
1.1. Análise conceitual do conito
Ir além dos casos judicializados implica a necessidade de tratar
de certos aspectos conceituais do conf lito. Em especial, cabe explicita r
o que se entende por conflito e, em par ticular, por conflito de justiça e
confl ito intersubjetivo de justiça.
1.1.1. Da contraposição de interesses para a contraposição
de movimentos
Acredita-se que vem conquistando espaço no Brasil, ainda que
subliminarmente, a noção de conflito como contraposição de movi-
mentos. É possível que isso se deva à valorização dos meios alternati-
vos de disputas nos Estados Unidos, que ganhou forma nos anos 1970
e que, mais recentemente, exerceu grande inf luência no Brasil no con-
texto de institucionalização dos meios consensuais, sobretudo no âm-
bito do Poder Judiciário.22
20 Arbitrag em em Cont ratos Admini strativos, c it. p. 24.
21 Arbitra gem em Con tratos Admin istrativo s, cit. p. 18.
22 Trata-se do que, nos EUA, se denominou Alter native Dispute Resolution move-
ment ou ADR mov ement. A inf luência desse movimento no Br asil foi considerá-
vel. Basta lembrar a con stante associação dos cent ros judiciários de solução de
confl itos e cidadan ia (CEJUSCs) institu ídos pela Resolução CNJ n. 125/2010
com a imagem de tr ibunal multiportas atribuída a Frank Sander. Vide, por
exemplo, LAGRASTA, Valeria Fer ioli. Os Centros Judiciár ios de Solução Con-
sensual de Con flitos (CEJUSCS) e seu Caráter de Tribuna l Multi Portas. I n:
BACELLAR, Roberto Por tugal; LAGRAS TA, Valeria Ferioli (coord.). Concilia-
ção e Mediação: e nsino em constru ção. São Paulo: IPAM/ ENFAM, 2016, p. 95-118
(no qual a autora afi rma que os CEJUSCs foram cr iados com base nos parâme-
tros do gerencia mento do processo e do Fórum de Múltiplas Por tas ou Tribu-
nal Multipor tas do direito norte-amer icano).
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Dando um passo para trás
De fato, ao se retomarem as bases teóricas que deram sustenta-
ção ao ADR movem ent norte-americano, nota-se que o conceito de con-
flito não veio do Direito, mas de áreas como a Sociologia, a Psicologia
Social, o Serviço Social e a Admin istração, ganhando destaque nomes
como Georg Simmel, Lewis Coser, Morton Deutsch e Mary Parker
Follett.23 A inf luência dos EUA no desenvolvimento da política pública
de promoção dos meios consensuais no Brasil fez com que, ainda que
muitas vezes de modo superficial, essa mesma fundamentação inter-
disciplinar fosse utilizada. Em particular, passaram a ser conhecidos
os nomes de Follett e Deustch. A partir de uma rápida análise da obra
desses dois últimos autores, é possível perceber a fundamentação sub-
jacente à ideia de conflito como contraposição de movimentos.
1.1.1.1. Follett e Deutsch: o conito como contraposição
de movimentos
A inf luência de Mary Parker Follett no cenário brasileiro é qua-
se caricatural, encontrando-se praticamente reduzida à breve descri-
ção de sua biografia e ao uso constante em cursos de mediação e con-
ciliação do seu exemplo das janelas da biblioteca. Neste Follett se
coloca como personagem em conflito com outra pessoa numa da s me-
nores salas de uma biblioteca universitária. Follett queria a janela da
sala fechada, a outra pessoa gostaria da janela aberta. As duas acabam
por concordar em abrir a janela da sala ao lado, sem que nenhuma ti-
vesse que ceder, na medida em que Follett não se opunha à abertura de
uma janela, apenas não queria que o vento batesse direto nela; a outra
pessoa, por sua vez, desejava apenas que entrasse mais vento na sala,
independentemente de qual janela fosse aberta.24
23 MENKEL- MEADOW, Carrie. Mothers and Fathers of Invention: T he Intellectual
Founders of ADR. Ohio St ate Journal on Dis pute Resolution, Vol. 16, 2000, p. 4 e 6-10.
24 A sit uação é narrada em um a das palestras dad as por Follett entre janei ro e feve-
reiro de 1933 no então recém-cr iado departamento de Ad ministraç ão de Empre-
sas da London School of Economics. As palestras, por sua vez , foram derivadas de
apresentações anter iores feitas pela autora entre 1925 a 1932, e posteriormente
reunidas em l ivro. Essas i nformações são baseadas no prefácio esc rito por L.
Urwick a esse l ivro de textos de Follett: URWICK, L. Preface. In: FOLLETT,
Mary Parker. Freed om & Co-ordination: Lecture s in Business Organisation . Editado
por L. Urwick e t al. London: Management Publ ications Trust, 1949, p. vii-viii.
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