Os desafios da regulação nos marcos do Estado Democrático de Direito

AutorOthon de Azevedo Lopes
Páginas209-244
Capítulo 5
Os desafios da regulação nos marcos do
Estado Democrático de Direito
5.1. A regulação e a técnica
O conceito de racionalidade foi introduzido por Max Weber
para explicar o capitalismo, o direito privado burguês e a domina-
ção burocrática393. Trata-se da ação racional dirigida a fins, com a
seleção dos meios e a escolha de alternativas. A racionalização pro-
gressiva da sociedade, marcada pela ampliação das esferas sociais
submetidas à decisão racional e pela industrialização do trabalho,
depende da institucionalização do progresso científico e técnico394.
Subjacente a essa concepção de razão tecnológica está a de do-
minação metódica, científica e calculadora, dado que a racionaliza-
ção das relações sociais, segundo critérios de seleção correta de es-
tratégias, de adequação tecnológica e de pertinente instauração de
sistemas sociais equivale à institucionalização política da domina-
ção. Tanto é assim que determinados fins e interesses não são ou-
torgados posteriormente à técnica, inserindo-se na construção do
aparato técnico e projetando os interesses dominantes da própria
sociedade.
Aliás, no capitalismo avançado, a dominação desloca seu cará-
ter explorador e opressor, tornando-se racional. A legitimação des-
sa dominação assume um novo caráter com a crescente produtivi-
dade e o controle da natureza, que proporcionam aos indivíduos
uma vida mais confortável.
A sociedade racionalizada se apresenta como uma organização
tecnicamente necessária. A racionalidade não é apenas uma crítica
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393 WEBER, Max. Economia e sociedade. Trad. Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbo-
sa. V. 2. Brasília: Editora UnB, 1999, p. 187 e seg.
394 HABERMAS, Jürgen. Técnica e ciência como ‘ideologia’. Lisboa, Edições 70,
2001, p. 45.
à legitimação vigente, mas sim a própria legitimação. O poder polí-
tico busca legitimidade pela adoção racional da tecnologia, anco-
rando-se em soluções técnicas e na própria burocracia.
Nessa ordem de ideias, a ciência moderna e seu desdobramen-
to em tecnologia trazem consigo a dominação pela redução da esfe-
ra de escolha dos indivíduos e pela ampliação das possibilidades do
poder político. É a natureza, entendida e controlada pela ciência,
que possibilita produtivistamente a melhoria das condições de vida
dos indivíduos, submetendo-os aos imperativos sistêmicos, em que
se destacam quatro impulsos de autoritarismo: 1) a fragmentação
de racionalidades sociais, como desenvolvimento de lógicas indios-
sincráticas de âmbitos parciais da sociedade, que não raro entram
em conflito; 2) dominância do cálculo instrumental; 3) substitui-
ção da coordenação informal por organização burocrática; 4) orga-
nização formal da ação, com ampla orientação reguladora do indi-
víduo395.
O capitalismo, que se baseia num crescimento contínuo e de
longo prazo, institucionaliza a inovação, garantindo uma extensão
permanente dos subsistemas da ação racional teleológica”396, colo-
cando em xeque a legitimação tradicional. No capitalismo, a legiti-
mação surge da base do trabalho social, inserindo-se a força de tra-
balho como mercadoria, com a promessa de equivalência nas rela-
ções de troca. A dominação se justifica não mais com mito ou reli-
giões, mas com relações legítimas de produção. “O marco institu-
cional da sociedade é só mediatamente político e imediatamente
econômico”397.
A racionalização da sociedade ocorre a partir de baixo, com a
formação de mercados de bens e de trabalho, de um lado, e de ou-
tro, com a empresa capitalista, promovendo em conjunto uma ex-
pansão horizontal dos subsistemas de ação racional teleológica.
Como acentua Habermas:
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395 SCUILLI, David. The critical potential of the common law tradition: theory of
societal constitutionalism: foundations of a non-marxist cirtical theory. In: Columbia
Law Review 94,1994, p. 1.076/1.123.
396 HABERMAS, Jürgen. Técnica e ciência como ‘ideologia’. Lisboa, Edições 70,
2001, p. 64.
397 Idem. Ibidem, p. 65.
Por este meio, as formas tradicionais sujeitam-se cada vez mais às
condições de racionalidade instrumental ou estratégica: a organização
do trabalho e do tráfico econômico, a rede de transportes, de notícias
e da comunicação, as instituições do direito privado e, partindo da
Administração das finanças, a burocracia estatal. Ele apodera-se,
pouco a pouco, de todas as esferas vitais: da defesa, do sistema esco-
lar, da saúde e até da família; impõe tanto na cidade como no campo
uma urbanização da forma de vida [...]
A par dessa pressão por racionalização, que vem a partir de bai-
xo, há uma coação que vem a partir de cima, com a substituição das
legitimações tradicionais de dominação pela pretensão de veracida-
de das ciências modernas.
O último quarto do século XIX viu surgirem duas novas ten-
dências evolutivas398: 1ª) um incremento na atividade intervencio-
nista do Estado e 2ª) uma crescente interdependência da investiga-
ção técnica, colocando as ciências como primeira força produtiva.
Essas tendências solapam o marco institucional típico de Estado Li-
beral.
O capitalismo não poderia estar abandonado a si mesmo, ca-
bendo ao Estado intervir e regular a longo prazo o processo econô-
mico e seu simbiótico vínculo com a produção tecnológico-cientí-
fica. A atividade estatal visa ao crescimento econômico, assumindo
a política um caráter negativo, já que as instituições públicas são re-
gidas crescentemente por uma orientação tecnológica e burocráti-
ca, que objetiva principalmente prevenir riscos que possam amea-
çar os sistemas sociais, especialmente o econômico.
A política não mais trata de problemas práticos da moral e da
ética, mas de questões técnicas que excluem a participação da
grande massa da população. A discussão é deslocada para aparatos
burocráticos, tais como as agências reguladoras.
Outra marca do capitalismo é a cientificação da técnica. Nesse
modo de produção sempre houve pressão para intensificar a produ-
tividade do trabalho com novas técnicas. Com a pesquisa industrial
de ponta, a ciência, a técnica e a revalorização do capital confluem
para um único sistema. A própria evolução do sistema social parece
ditada pelo progresso técnico-científico.
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398 Idem. Ibidem, p. 68.

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