Juridificação e Paradigmas de Estado

AutorOthon de Azevedo Lopes
Páginas69-118
Capítulo 2
Juridificação e Paradigmas de Estado
A regulação como processo de produção artificial de normas
por entidades autônomas incrustadas no Estado deve sua existên-
cia a uma concepção moderna de direito e instituições políticas.
Esse fenômeno de deslocamento de poder normativo ocorre a par-
tir de alguns pressupostos: 1) a consolidação de um sistema políti-
co-burocrático, 2) a constituição de um sistema econômico, 3) a
positivação do direito como sua produção artificial em regras for-
mais com hipóteses de incidência e sanções que visavam a regular
comportamentos, 4) instituições jurídicas e políticas concebidas
funcionalmente para a consecução de utilidades sociais, como, por
exemplo, o estabelecimento da paz, do bem-estar social, da vida
mais agradável possível, e 5) o estabelecimento de aplicações téc-
nico-científicas como meio para consecução dessas finalidades so-
ciais.
Essa produção de regras por entes autônomos emergiu de dis-
putas sociais que levaram a diferentes configurações de Estado e de
instituições jurídicas. Não se pode esquecer que a ênfase regulató-
ria é um grande problema para o Estado Democrático de Direito e
que seu cenário é o do conflito de classes amortecido por diretrizes
compensatórias típicas do Estado de Bem-estar Social. Daí a im-
portância de uma reconstrução das diferentes fases de juridificação
e dos paradigmas do Estado a partir da Modernidade.
Com as grandes codificações do século XVIII o direito materia-
lizou-se na forma de textos. O câmbio estrutural da sociedade re-
meteu a uma mudança no próprio direito, por meio da cultura ju-
rídica. Surgiu um sistema jurídico e seu entorno social do qual
emergirem os juristas. Com isso, iniciou-se um processo de juridi-
ficação. Essa compreensão histórica do direito e da sociedade apa-
receu como noção polêmica no debate sobre o direito do trabalho
na República de Weimar, tendo Kirchheimer o utilizado para criti-
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car a formalização jurídicas das relações de trabalho137 que levaria
à sua petrificação, com riscos para o movimento obreiro, em razão
da neutralização do conflito de classes. Seria um processo de desa-
propriação dos conflitos, sua despolitização e de fluxo de normas.
Há desapropriação dos conflitos no momento em que eles são
arrancados de seu contexto com a sua desnaturação pela formaliza-
ção jurídica. Ocorre, em verdade, uma alienação dos conflitos sem
exatamente a sua solução, em razão da lentidão da justiça, dos cus-
tos dos procedimentos, da desigualdade nas chances de sucesso e
também das barreiras de acesso e compreensão da Justiça.
A despolitização, como característica da juridicização, dá-se
pelo tratamento jurídico e técnico dos conflitos que, ao mesmo
tempo que protege interesses, restringe as possibilidades políticas
de ação, colocando os indivíduos numa posição colaborativa. É
exemplo o direito do trabalho, no Estado de Bem-estar Social, em
que a salvaguarda interesses do classe trabalhadoras restringiu o
âmbito de ação política dos sindicatos, inserindo-os numa posição
de cooperação com as instituições jurídicas e estatais.
A juridicização também reflete um fluxo crescente de normas,
especialmente no mundo empresarial e do trabalho, como um pro-
blema típico do avultamento da dinâmica intervencionista. Há dois
movimentos na juridificação: a expansão do direito com a regula-
ção formal de, até então, situações sociais informalmente regradas;
e a densificação que é a depuração de regramentos sociais em con-
ceitos e definições especializados típicos do sistema jurídico. A mi-
séria singular e progressiva do direito escrito e positivo contempo-
râneo reside no aumento da massa de leis e normas que vão tornan-
do o direito progressivamente incoerente, dificultando compila-
ções de normas e elaboração de material intelectual adequado para
o seu enfrentamento. A doutrina no seu trabalho de controle da
consistência do material normativo e decisional e de elaboração sis-
temática do conhecimento vai progressivamente cedendo espaço a
um positivismo jurisprudencial.
Esse processo de juridicização reflete uma cadente destruição
do ambiente do mundo da vida, por meio da poluição jurídica e de
sua burocratização. O direito, como meio regulação do Estado de
Bem-estar social e mesmo do Estado Regulador, funciona a partir
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137 TEUBNER, Gunther. Droit et réflexivité. Paris: L.G.D.J., 1996, p. 57.
de critérios de racionalidade e formas de organização que não são
apropriadas ao mundo da vida, com o seu assujeitamento à lógica
sistêmica138. É um processo já explicado de colonização do mundo
da vida, com um alto nível de generalização, em que: 1) há o des-
mantelamento das formas tradicionais de vida, em que os compo-
nentes do mundo da vida (cultura, sociedade e personalidade), em
grande extensão, acabam diferenciados; 2) as relações de troca en-
tre os subsistemas e o mundo da vida passam a ser reguladas por
papéis sociais específicos (empregado, consumidor, cliente, etc.);
3) a disponibilização do trabalho e a participação política pelo voto
são mobilizadas por verdadeiras abstrações que encerram uma tro-
ca tolerada por recompensas e compensações sistêmicas; 4) as
compensações são financiadas pelo crescimento capitalista confor-
mando-se padrões de bem-estar, canalizados pelos papéis sociais
específicos de consumidor e cliente, sobrepondo-se a desejos de
autorrealização, no mundo do trabalho, e autodeterminação, na es-
fera pública139.
Esse fenômeno é o resultado da implantação de um bem-suce-
dido programa de Estado de Bem-Estar Social e sua evolução como
Estado Regulador, com efeitos patológicos na reprodução cultural,
na integração social e na socialização, que acabam assimiladas por
um processo formalizador por parte do direito moderno, havendo
o deslocamento da integração social, como entendimento no âmbi-
to da vida, para integração sistêmica, como uma dependência de
prestações materiais fornecidas pelo sistema político-burocrático e
pelo sistema econômico.
De outro lado, as jornadas de juridificação caracterizam-se por
novas instituições legais que se refletem na formação da consciên-
cia jurídica cotidiana. A primeira jornada marcou-se por ser garan-
tidora de liberdades ao estender o direito civil burguês e a domina-
ção burocrática exercidos legalmente, significando ao menos
emancipação em relação ao poder e a relações de dependência pré-
modernos. As três subsequentes jornadas de juridificação garanti-
ram um incremento de liberdade, ao procurar domar a dinâmica
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138 TEUBNER, Gunther. Droit et réflexivité. Paris: L.G.D.J., 1996, p. 51.
139 HABERMAS, Jürgen. Law as Medium and Law as Institution. In: TEUBNER,
Gunther. Dilemmas of Law in the Welfare State. Berlim/Nova Iorque: Walter de
Gruyter, 1988, p. 203.

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