A questão da regulação, da legalidade e dos princípios e de seus fundamentos teóricos

AutorOthon de Azevedo Lopes
Páginas13-68
Capítulo 1
A questão da regulação, da legalidade e
dos princípios e de seus fundamentos teóricos
O ideal de saber que se afirmou na Modernidade substitui um
mundo consideravelmente aproximativo, fluido, incompleto, por
um que busca ser exato, inteiramente determinado1. Foi a partir
desse contexto que o direito da sociedade contemporânea organi-
zou-se, assumindo o paradigma instrumental teórico das ciências
modernas, que têm caminhado passo a passo com sua aplicação
tecnológica.
No entanto, essa conformação epistêmica em que se valoriza o
conhecimento preciso sobre um objeto delimitado artificializa e
controla âmbitos de vivência social, dando lugar a um fenômeno
denominado por pensadores como geometrização do mundo da
vida (Edmund Husserl2) ou colonização/tecnicização do mundo da
vida3 (Jürgen Habermas4). Isso aliado à crescente demanda das ati-
vidades técnicas por produção normativa de padrões pelo direito
na criação de marcos regulatórios assinala que o direito e a política
defrontam-se com uma necessidade de produção formal de deci-
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1 GANDT, François. Husserl et Galilée – sur la crise des ciences européenens. Paris:
Vrin, 2004, p. 13.
2 HUSSERL, Edmund. La crise des sciences européennes et la phénoménologie
transcendantale. Paris: Gallimard, 2004.
3 Uma noção do que é o mundo da vida para Habermas pode ser extraída do seguin-
te trecho (HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa, II. Madri: Taurus,
2001, p. 194): “No meu entender, a análise da forma dos enunciados narrativos, um
dos quais pioneiros foi A. C. Danto, e a análise da forma dos textos narrativos, consti-
tuem um ponto de partida metodologicamente fecundo para a clarificação desse con-
ceito “profano” de mundo da vida que se refere à totalidade dos fatos socioculturais e
que oferece, portanto, um ponto de abordagem para a teoria da sociedade.” Tradução
livre, como em todas as citações na presente tese.
4 HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa, II. Madri: Taurus, 2001,
p. 395 e seg.
são e normalização que não raramente fortalece o sequestro que os
sistemas especializados exercem sobre âmbitos de vivência regidos
pela linguagem natural, como, por exemplo, relações de família ou
de cidadania.
Ao lado da produção de regras, normas dotadas de estrutura
com hipóteses e consequências, dentre outras características, o di-
reito formou-se e se reproduz a partir de princípios jurídicos mar-
cados pela abertura, pela plasticidade, pela comunicabilidade e
pela indução de consenso em razão de sua pretensão de universali-
zação.
Se a linguagem especializada da ciência e da técnica jurídica
distancia os cidadãos do direito, principalmente vinculada a um sis-
tema de regras, os princípios jurídicos, pela sua proximidade da lin-
guagem natural e do mundo da vida, possibilitam estabelecer uma
conexão entre o saber técnico-científico e cada um dos indivíduos,
bem como protegê-los contra abusos oriundos da técnica e da ciên-
cia. Na regulação, os princípios criam acessos que suavizam o tec-
nicismo e os excessos burocráticos da pletória normativa de cada
setor fiscalizado e controlado por entes estatais. Embora ainda seja
precoce uma definição de regulação no presente trabalho, é possí-
vel compará-la a um nó em que se identificam ao menos cinco cor-
dões:
1) padrões de comportamentos que deveriam ser adotados por
atividades especializadas. Em inglês, esse sentido já era obser-
vado desde a Idade Média para os profissionais liberais5;
2) atividade estatal que visa a suprir falhas de mercado6, senti-
do forte desde o séc. XIX;
3) conjunto de medidas legislativas, administrativas e conven-
cionais de que se vale o Estado para delimitar a livre iniciativa
e garantir a concorrência para consecução de direitos sociais7;
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5 MOTTA, Paulo Roberto Ferreira. A regulação como instituto jurídico. In: Revista
de Direito Público da Economia. Belo Horizonte: Fórum, nº 4, pp. 183 e seg., out/dez,
2003.
6 JUSTEN FILHO, Marçal. O direito das agências reguladoras independentes. São
Paulo: Dialética, 2002, p. 31.
7 ARAGÃO, Alexandre. As concessões e autorizações e o poder normativo da ANP.
Revista de Direito Administrativo, n.º 282. Rio de Janeiro: Renovar, p.262.
4) oferta de um bem ou serviço de interesse público (public uti-
lities) que, em geral, exige capital e tecnologia intensivos.
5) intervenção do Estado sobre decisões que são de iniciativa
privada para conformá-las ao interesse público.
O vocábulo regulação traz dentro de si uma tensão entre esses
sentidos que remetem a uma relação entre sistema político-burocrá-
tico, economia, direito, ciência e técnica. A atividade regulatória é,
portanto, um ponto sensível na relação do direito com essas outras
esferas. Dado isso, o objeto do trabalho será a exposição de uma pro-
posta de solidificação de um canal de princípios jurídicos como for-
ma de evitar o excessivo fechamento da regulação em torno de re-
gras que favorecem a tecnização/colonização do mundo da vida.
O cenário de reflexão do presente trabalho, porém, é de crise e
de conflito entre paradigmas. Por isso, a abordagem do tema terá
como foco inicial, após a exposição de pressupostos teóricos, a expo-
sição das raízes dessa crise e também a formulação de uma crítica aos
elementos e acontecimentos subjacentes à regulação como proble-
ma da sociedade complexa e do Estado Democrático de Direito.
1.1. A crise das ciências e da técnica
No começo do século XX, especialmente nas décadas de 20 e
30, ganhou força na Alemanha um movimento de forte crítica à
modernidade, especialmente ao industrialismo, ao cientifismo, ao
positivismo e ao tecnicismo8. Dois dos principais filósofos do pe-
ríodo, Husserl e Heidegger, dedicaram várias obras ao tema9.
Husserl criticou a ciência moderna pela sua autonomização e,
por conseguinte, seu desligamento da unidade do saber. As suces-
15
8 É esse o contexto exposto por Michael E. ZIMMERMAN. Confronto de Heideg-
ger com a modernidade. Lisboa: Instituto Piaget, 1990.
9 Entre as obras de Husserl podem-se citar Meditações cartesianas (HUSERL, Ed-
mund. Meditações cartesianas. Trad. Frank de Oliveira. São Paulo: Madras, 2001) e A
Crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental (HUSSERL, Edmund.
La crise des sciences européenes et la phenomenology transcendantale. Paris: Gallimard,
2004). De Heidegger: A questão da técnica (In HEIDEGGER, Martin. Ensaios e con-
ferências. Petrópolis: Vozes, 2002).

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