A tecnologia regulatória

AutorOthon de Azevedo Lopes
Páginas155-208
Capítulo 4
A tecnologia regulatória
4.1. A irrupção da regulação
A regulação é um conceito existente há bastante tempo, mas
não era objeto de apropriação por parte da doutrina brasileira de
direito administrativo. Nos Estados Unidos, a palavra regulação e
seus cognatos (regulate, regulatory, regulation) estão relacionados
à gênese do Estado, aludindo à generalidade de poderes que ele
tem em relação aos indivíduos. Dentro da experiência norte-ame-
ricana, com marcas mais profundas do liberalismo do que a brasi-
leira, a regulação significa uma maior intervenção do Estado nas ati-
vidades privadas306.
Foi no âmbito de uma economia liberal que a regulação tomou
seu primeiro impulso. Nos Estados Unidos, na década de 1870,
dois eventos chaves se apresentaram. O primeiro deles foi uma de-
cisão da Suprema Corte. O segundo foi uma forte turbulência no
mercado de transportes ferroviários.
No caso Munn v. Illinois (1877), a Suprema Corte estabeleceu
que o estado de Illinois poderia regular preços de silos e armazéns,
especialmente o preço do leite. Nessa decisão ficou assentado
que307:
A propriedade deve ser conjugada com o interesse público quando
utilizada para produzir efeitos coletivos, afetando largamente a co-
munidade. Quando, portanto, alguém dedica a sua propriedade para
155
306 ALMEIDA, Fernando Dias Menezes. Teoria da regulação. In: CARDOZO, José
Eduardo Martins et alii. Curso de direito administrativo econômico. São Paulo: Ma-
lheiros, 2006, p. 126.
307 Apud VISCUSI, W. Kip, HARRINGTON, Joseph E. Jr. & VERNON, John M.
Economics of regulation and antitrust. 4ª ed. Boston: Massachusetts Institute of Tech-
nology, 2005, p. 362.
um uso em que há interesse público, ele, na verdade, abre margem
para que haja interesse público nesse uso e deve ser controlado pelo
público para o bem comum.
Esse caso forneceu suporte para que a regulação firmasse suas
bases, abrindo margem para que o sistema econômico sofresse in-
fluxos do Estado, impulsionado pela necessidade de prover bens
materiais como uma nova forma de legitimação, não baseada ape-
nas na participação e no voto universal. No período da referida de-
cisão da Suprema Corte, a exploração das estradas de ferro alter-
nou momentos de forte competição nos preços e relativa estabili-
dade. Surgiu espaço para discriminação de consumidores e cobran-
ças de elevadas tarifas. Tanto empresas do setor, querendo a esta-
bilização de preços, como consumidores clamaram por intervenção
do Estado. O resultado de tais forças foi a edição do Interstate
Commerce Act (de 1887) e a criação da Interstate Commerce Co-
mission (ICC) para regular preços do transporte ferroviário.
A emergência da regulação, nos Estados Unidos, deu-se num
contexto de mutação do paradigma liberal de Estado, em face da
necessidade de intervenção de Estado na economia, com vistas a
ordenar as decisões econômicas privadas para compatibilizá-las
com o interesse público. Assim, ainda antes do New Deal, surgiram
algumas agências reguladoras como a Interstate Commerce Com-
mission (1887), a Federal Trade Commission (1914), a Commodi-
ties Exchange Autority (1930), a Federal Radio Commission
(1927) e a Federal Power Commission (1930)
Todavia, a emergência da regulação como fenômeno social e
econômico deu-se fundamentalmente como parte da reforma
constitucional do New Deal, que pode ser entendido como a as-
sunção de alguns princípios de Welfare State nos Estados Unidos.
Também judicialmente se ampliou o âmbito da regulação, que dei-
xou de estar restrita às publics utilities, passando a abranger outros
produtos de interesse social. A configuração anterior era extrema-
mente tímida, e com o New Deal reconfiguram-se os princípios do
laissez-faire que estavam assentes no common law308, surgindo um
156
308 SUNSTEIN, Cass R. After the rights revolutions – reconceiving the Regulatory
State. Cambridge: Harvard University Press,1993, p. 19.
segundo Bill of Rights orientado para proteger direitos de habita-
ção, emprego, bem-estar e alimentação309.
Como reguladoras da economia, as instituições estatais e os tri-
bunais federais dos Estados Unidos eram manifestamente inade-
quados. Era nítido o seu descasamento e a insuficiência do seu ins-
trumental para coordenar e atender às necessidades públicas num
ambiente democrático. Novas entidades foram necessárias310. As
agências criadas não raro combinavam as funções de legislar, julgar
e executar, com amplos poderes de fixação de políticas públicas311.
Após o New Deal, houve um outro período de expansão da ati-
vidade regulatória nas décadas de 60 e 70 do século XX312. O Presi-
dente e o Congresso, respaldando-se no discurso dos Civil Rights,
regularam temas como trabalho, pobreza, consumo, discriminação
e especialmente o gerenciamento de riscos sociais como meio am-
biente, águas, ar etc.
O espraiamento da regulação no Brasil foi marcado por peculia-
ridades. Na doutrina brasileira, já na década de 1960, Themístocles
Cavalcanti concluía pela caracterização da regulação como a retirada
do Estado da interferência operacional na economia, remetendo à
legislação a definição de standards a serem regulamentados por ór-
gão técnico especializado313. Todavia, a regulação adquiriu, com as
privatizações da década de 1990, maior espaço na reflexão jurídica
157
309 Idem. Ibidem, p. 21.
310 Dentre elas (Idem. Ibidem, p. 25): Federal Communications Commission (1936),
Soil Conservation Service (1935), Social Security Administration (1935), Federal Po-
wer Commission (1935), Securities and Exchange Commission (1934), National La-
bor Relations Board (1934), Federal Housing Administration (1934), Public Works
Administration (1933), Tennesse Valley Authority (1933), Civil Works Administra-
tion (1933), Civilian Conservation (1933), Federal Deposit Insurance Corporation
(1933), Federal Home Loan Board (1932).
311 Idem. Ibidem, p. 23.
312 Pode-se citar (Idem. Ibidem): Department of Energy (1977), Office of Surface
Mining (1977), Nuclear Regulatory Commission (1975), Materials Transportation
Board (1975), Mine Safety and Health Administration (1973), Occupational Safety
and Health Administratuion (1973), Consumer Product Safety Commission (1972),
National Highway Traffic Safetty Administration (1970), Environmental Protection
Agency (1970), Equal Employment Opportunity Commission (1964), United States
Commission on Civil Rights (1957, 1960).
313 CAVALCANTI, Themistocles Brandão. Tratado de direito administrativo. Vol.
II, 5ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1964, p. 496-499.

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