A Dupla Função dos Direitos Fundamentais dos Trabalhadores

AutorArion Sayão Romita
Ocupação do AutorAcademia Nacional do Direito do Trabalho
Páginas457-467

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O Direito do Trabalho da sociedade pós-industrial gira em torno do eixo do respeito aos direitos fundamentais dos trabalhadores, com a finalidade de implantar o império da dignidade do trabalhador como pessoa humana, como ser que produz em benefício da sociedade. No desempenho dessa tarefa, os direitos fundamentais exercem dupla função: limitam o exercício do poder do empregador no curso da relação de emprego e representam barreira oposta à flexibilização das condições de trabalho mediante negociação coletiva.

Uma vez que o contrato de trabalho implica a subordinação e, portanto, a sujeição inevitável da pessoa do trabalhador, poder-se-ia imaginar uma oposição entre o direito do trabalho e os direitos fundamentais do trabalhador. Estes excluiriam a subordinação e, em consequência, aniquilariam o direito do trabalho. Não há, porém, tal oposição irredutível. A aplicação dos direitos fundamentais à relação individual de trabalho pode compatibilizar-se com a subordinação, desde que eles sejam entendidos pelo prisma da limitação dos poderes do empregador. Os direitos fundamentais - como diz Adalberto Perulli - formam a cabeça de capítulo do discurso sobre o controle do poder patronal1. No tocante às relações coletivas de trabalho, os direitos fundamentais exercem função relevante na limitação da liberdade negocial, quando se cogita de flexibilizar os direitos dos trabalhadores mediante negociação coletiva.

O reconhecimento do exercício dessa dupla função atribuída aos direitos fundamentais no desenvolvimento das relações de trabalho gera duas consequências irrecusáveis: a superação da ideia do suposto caráter protecionista do direito do trabalho e o afastamento da noção de irrenunciabilidade dos direitos outorgados por lei ao trabalhador.

5. 1 Limitação aos poderes do empregador

A observação atenta dos fatos coetâneos ao surgimento da legislação do trabalho permite afirmar que não era a proteção da classe dos trabalhadores que inspirava a promulgação das leis mais tarde ditas protecionistas.

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A formação histórica do corpo de leis cujo objeto é a regulação das relações de trabalho subordinado não responde a um reclamo de proteção formulado pelas classes trabalhadoras. O direito do trabalho não é um direito de classe. As primeiras leis promulgadas na Europa industrializada dos princípios do século XIX tinham por conteúdo a defesa da incolumidade física e moral, da liberdade e da personalidade física e moral do trabalhador considerado pessoa humana2.

Em toda parte, no início dessa formação histórica, o legislador leva em conta que os maquinismos criam riscos de acidentes do trabalho e edita normas sobre restrições ao trabalho das crianças e das mulheres, além de normas relativas à duração da jornada e à saúde e segurança do trabalho3. Em aula magna proferida na Universidade de Palermo em 1890, Salvioli acentuou: "Este novo direito que se forma, reconhecendo as exigências das classes operárias, não surge em benefício delas nem tende a constituir um direito particularista, porque naquelas exigências que aludem à segurança pessoal a uma vida mais digna refletem-se os fins mais universais do homem"4.

A legislação do trabalho não tinha por finalidade, inicialmente, regular as relações entre empregados e empregadores, mas sim disciplinar a organização geral do trabalho, regulando a atividade industrial do empresário em nome do poder de polícia, compondo um verdadeiro direito administrativo do trabalho (normas político-administrativas), porque aplicáveis às relações entre o Estado, como poder público, e os empresários, versando matéria de interesse público. Trata-se, portanto, de normas de direito público, que não se confundem com as normas reguladoras do contrato de trabalho, estas de direito privado5. Estas normas representam a primeira expressão do ramo do direito que tem por núcleo essencial o contrato de trabalho, constituindo a "cabeça de ponte" mais tarde absorvida pelo exército superveniente.

Sem necessidade de consagrar um suposto (e inexistente) princípio "de proteção"6, mais vale assinalar a tendência geral revelada pelo direito do trabalho a garantir integralmente a esfera pessoal do indivíduo que trabalha, como quer Smuraglia7. Com apoio na lição de Aldo Cessari, cumpre afastar

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o "princípio tuitivo", reconhecendo como superada a exigência de proteção de um sujeito do contrato em face do outro. A função essencial do direito do trabalho é a regulação da relação de trabalho, o que, por força da desigual-dade social e econômica entre os dois sujeitos, só pode tornar-se jurídica e politicamente aceitável mediante a afirmação de uma função corretiva do contrato individual para instituir um equilíbrio que o critério da abstrata igual-dade formal dos contratantes não permite realizar8. Esta nova formulação, que considera superada a proteção do contratante mais débil, conduz à ideia de que o ordenamento jurídico estimula o pleno desenvolvimento da pessoa do trabalhador, mediante o reconhecimento de seus direitos fundamentais.

No que diz respeito à excogitada irrenunciabilidade dos direitos outorgados por lei aos trabalhadores, uma digressão prévia torna-se indispensável.

O Direito do Trabalho clássico, adequado a uma era de prosperidade econômica, fundava-se em verdades absolutas e apostava em certezas inabaláveis. Acreditava-se constituído por institutos eternos e imutáveis, imunes à ação do tempo e invulneráveis aos reclamos da realidade econômica. Era um direito vocacionado à proteção do hipossuficiente econômico e, portanto, estava sempre in fieri, em constante expansão, quer no tocante à ampliação do número de sujeitos protegidos quer na infalível criação de novos benefícios em favor dos empregados quer no incremento das vantagens existentes. Negava-se a possibilidade do retrocesso ou mesmo de paralisia social: mais, sempre mais, cada vez mais, era o lema que o caracterizava, o que inviabiliza a estipulação in peius, ou seja, aquela pela qual o trabalhador aceita redução salarial ou supressão de vantagens.

Naquela fase histórica, o Direito do Trabalho pressupunha a existência de princípios eternamente válidos no tempo e dotados de eficácia universal. Deles, destacava-se o celebrado "princípio protetor" (rectius: princípio de proteção, pois o princípio pode inspirar mas não dispensa diretamente a proteção)9. Era um direito integrado por normas coercitivamente impostas pelo Estado à vontade dos particulares. Tais normas se caracterizavam pela imperatividade: cogentes, impunham-se mesmo contra a vontade do trabalhador, tido por incapaz de manifestar validamente sua vontade, ante o estado de inferioridade econômica e social que o estigmatizava. Nem sequer se cogitava da possibilidade de contrabalançar a debilidade individual pela força cobrada mediante mobilização sindical. A negociação coletiva era desconhecida, ou menoscabada, pois em ambiente político de coloração autoritária (eram numerosos os regimes políticos dessa natureza no período

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anterior à Segunda Guerra Mundial) a atuação reivindicatória dos sindicatos era reprimida, como produto de ideologias de extrema esquerda.

À luz dessa concepção, fácil é compreender que os direitos assegurados ao trabalhador pelas leis imperativas ditas de proteção ao trabalho fossem tidos por irrenunciáveis, indisponíveis, insuscetíveis de transação, inidôneos a constituírem objeto de negociação (individual) entre empregado e empregador. A possibilidade de negociação coletiva só mais tarde foi admitida, por força da crise econômica: sob o acicate da perda do emprego, os sindicatos foram compelidos a negociar a permanência no trabalho a troco de concessões econômicas de menor porte, como redução salarial e supressão de certo benefícios pecuniários.

Falava-se de "direitos inderrogáveis"10, mas com evidente desacerto, porque inderrogável é a norma que assegura o direito, não o próprio direito. Este será irrenunciável, intransacionável, mas não "inderrogável".

Inicialmente, quer no exterior quer no Brasil, a doutrina era acorde em asseverar que a irrenunciabilidade do direito deriva da inderrogabilidade da norma concessiva. A norma inderrogável priva o titular do ius disponendi. Paolo Greco, por exemplo, sustenta que o fato de ser a relação de trabalho regulada por normas de ordem pública e, por isso, inderrogáveis pela vontade privada, acarreta a irrenunciabilidade por parte do sujeito a que são atribuídos...

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