Diretrizes e parâmetros para o juízo de merecimento de tutela do pacto marciano à luz do princípio da solidariedade

AutorCarlos Edison do Rêgo Monteiro Filho
Páginas211-275
Diretrizes e parâmetros para o juízo de merecimento de tutela do pacto marcianoCapítulo IV: Diretrizes e parâmetros para o juízo de merecimento de tutela dopacto marciano
Capítulo IV
Diretrizes e parâmetros para o juízo de
merecimento de tutela do pacto marciano
à luz do princípio da solidariedade
A respeito do merecimento de tutela do pacto marciano, no es-
tudo aqui empreendido, tomam-se como diretrizes (i) a superação
da subsunção como método interpretativo-aplicativo e (ii) a proje-
ção dos princípios da função social, boa-fé objetiva e equilíbrio eco-
nômico ao direito comum das relações patrimoniais. Assentadas
tais guias, o exame do merecimento de tutela será concretizado,
particularmente, por meio da síntese conclusiva, à luz da tábua
axiológica constitucional, entre o parâmetro, dito objetivo, de
equilíbrio trilateral funcional e o parâmetro, nomeado subjetivo,
de análise concreta das vulnerabilidades.
4.1. A insuficiência do método subsuntivo para o deslinde do
problema do pacto marciano
O método subsuntivo se afigura de todo insuficiente à análise
que se pretenda adequada do pacto marciano, seja porque descon-
sidera o perfil funcional da cláusula, seja porque a literalidade do
dado legislativo omitiu-se quanto ao tema. A verificação científica
de todo e qualquer instituto jurídico deve tomar em consideração
que a Constituição de 1988 inaugurou, como consabido, nova or-
dem jurídica orientada à tutela privilegiada das situações exis-
tenciais.447 Em seu art. 1º, III448, a Carta erigiu a dignidade da pes-
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447 “É necessário reconstruir o Direito Civil não com uma redução ou um aumento
de tutela das situações patrimoniais, mas com uma tutela qualitativamente diversa.
Desse modo, evitar-se-á comprimir o livre e digno desenvolvimento da pessoa median-
te esquemas inadequados e superados. O Direito Civil retoma, em renovadas formas,
a sua originária vocação de ius civile, destinado a exercer a tutela dos direitos civis em
soa humana em fundamento de todo o sistema. No que toca ao ob-
jeto deste estudo, pode-se dizer que a axiologia constitucional rep-
resentou (rectius, determinou) a pavimentação de uma estrada de
mão dupla, interligando a Constituição aos operadores do direito.
Se por um ângulo sobressai a consagrada unificação do ordenamen-
to, por irradiação da axiologia constitucional, que não mais com-
porta separação estanque em diferentes microssistemas (v.g., reais
X obrigacionais), por outro impõe-se distinta incumbência aos ope-
radores de concretizar os comandos constitucionais irradiados
(v.g., o princípio da solidariedade — CR, art. 3º, I449) nas múltiplas
possibilidades de atuação da força criativa da autonomia privada.
Produto de tempos de hipercomplexidade, a multiplicação de
novos centros de interesse merecedores de tutela à luz da tábua
axiológica traçada pelo constituinte dardejou as pretensões de neu-
tralidade, abstração e universalidade em que se ancorava o Direito.
Situações não previstas (e não previsíveis) se avolumaram, como na
inesgotável criatividade dos advogados em conceber mecanismos
que reforcem a posição de credores que pretendem ver assegurado
o retorno do capital emprestado, tornando essencialmente exposta
a incapacidade da ciência jurídica de se pretender definitiva. Ao
contrário, mostrou-se cada vez mais evidente a permanente muta-
bilidade da ordem jurídica, a um só tempo condicionada e condi-
cionante da sociedade. Em síntese, parece correto afirmar que a
realidade molda o Direito assim como é por ele conformada.450 A
Pacto comissório e pacto marciano no sistema brasileiro de garantias
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uma nova síntese — cuja consciência normativa tem importância histórica (...) entre
as relações civis e aquelas econômicas e políticas” (PERLINGIERI, Pietro. O direito
civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 121-122).
448 Art. 1º. “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos
Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de
Direito e tem como fundamentos: III — a dignidade da pessoa humana”.
449 Art. 3º. “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I
— construir uma sociedade livre, justa e solidária”.
450 Na l ição de Can aris : “A ab ertu ra do s istema jurídico não contradita a aplicabilida-
de do pensamento sistemático na Ciência do Direito. Ela partilha a abertura do siste-
ma científico com todas as outras Ciências, pois enquanto no domínio respectivo ainda
for possível um progresso no conhecimento, e, portanto, o trabalho científico fizer
sentido, nenhum desses sistemas pode ser mais do que um projecto transitório. A
abertura do sistema objectivo é, pelo contrário, possivelmente, uma especialidade da
Ciência do Direito, pois ela resulta logo do seu objecto, designadamente, da essência
factualidade, segundo Pietro Perlingieri, afigura-se assim “absolu-
tamente ineliminável do momento cognoscitivo do direito que,
como ciência prática, caracteriza-se por moventes não historiográ-
ficos ou filosóficos, mas aplicativos”, de modo a privilegiar o intér-
prete com o papel fundamental de suprir as insuficiências da codi-
ficação,451 como se dá com a invalidade da cláusula comissória e as
possibilidades da marciana.
Em conseguinte, a hermenêutica remodela-se por completo. A
unidade na complexidade do sistema passa a impor ao intérprete
papel construtivo na elucidação do ordenamento do caso concre-
to.452 Em cada decisão, o operador deverá realizar a ponderação dos
diversos vetores incidentes na espécie, aplicando não o dispositivo
de lei isoladamente, mas perquirindo o ordenamento jurídico em
sua inteireza, complexo, heterogêneo e unitário, a fim de indivi-
dualizar a solução jurídica compatível com a hierarquia de valores
constitucionalmente traçada.453
Capítulo IV: Diretrizes e parâmetros para o juízo de merecimento de tutela do pacto marciano
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do Direito, como um fenômeno situado no processo da História e, por isso, mutável”
(CANARIS, Claus-Wilhem. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência
do direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996, p. 281). A esse respeito,
Pietro Perlingieri ensina que “ciência e praxe, norma e fato, longe de se confundirem,
operam em planos distintos, mas convergentes, em uma contínua, indeclinável dialé-
tica que é vital para evidenciar — não a sua contraposição, mas — a sua complemen-
tariedade. O conhecimento jurídico não tende a descobrir a verdade e a solução abso-
luta, além do mais não verificável, mas aquela mais idônea às escolhas predetermina-
das, expressas em regras convencionais que, no seu fluxo histórico, constituem o filtro
da experiência geral em contínua verificação, em contato com os singulares fatos con-
cretos”. (PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil-
constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 82).
451 PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janei-
ro: Renovar, 2008, p. 132.
452 “O reconhecimento do papel criativo dos magistrados (...) não importa em deci-
sionismo, ou voluntarismo judiciário. A própria noção de segurança jurídica há de ser
reconstruída a partir do compromisso axiológico estabelecido pela Constituição da
República, com a elaboração de dogmática sólida, capaz de enfrentar a complexidade
dos novos fenômenos sociais e de suas mudanças. Nessa esteira, torna-se imperioso
fortalecer e difundir a teoria da argumentação, associada à interpretação unitária do
ordenamento, não já à valoração individual de cada juiz, a fim de legitimar o discurso
jurídico e a decisão judicial” (TEPEDINO, Gustavo. Itinerário para um imprescindí-
vel debate metodológico. Revista Trimestral de Direito Civil, vol. 35, Rio de Janeiro:
Padma, 2008, p. iv).
453 “A norma do caso concreto é definida pelas circunstâncias fáticas nas quais incide,
sendo extraída do complexo de textos normativos em que se constitui o ordenamento.

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