Pactos comissório e marciano em perspectiva dinâmica: projeções no sistema de garantias

AutorCarlos Edison do Rêgo Monteiro Filho
Páginas131-210
Pactos comissório e marciano em perspectiva dinâmicaCapítulo III: Pactos comissório e marciano em perspectiva dinâmica
Capítulo III
Pactos comissório e marciano em perspectiva
dinâmica: projeções no sistema de garantias
3.1. Projeção nas garantias reais típicas
Uma vez esclarecidas estrutura e funções do pacto marciano,
inicia-se a pesquisa de sua aplicação no âmbito das garantias reais
previstas no ordenamento brasileiro. Neste ponto, pretende-se
avaliar o cabimento da cláusula marciana, em contraposição à veda-
ção ao pacto comissório, no penhor, na hipoteca, na anticrese e na
alienação fiduciária em garantia.
Acessórios ao direito que visam a assegurar, os direitos reais de
garantia evidenciam a vinculação de determinado bem do devedor
ao pagamento da dívida.290 Cria-se, assim, privilégio em benefício
do credor, que ostentará direito de prelação no concurso creditó-
rio. Costuma-se afirmar em doutrina que “a garantia real consiste
na realização do valor da coisa”.291 Isto é, o credor detém o direito
de obter certa soma em dinheiro mediante a alienação do bem gra-
vado com a garantia, em valor equivalente ao total de seu crédito.
Trata-se do poder de excutir a coisa dada em garantia, na hipótese
de inadimplemento absoluto.292
Questiona-se, e este é o objeto específico deste tópico, se à
execução das garantias reais se deve necessariamente proceder por
via judicial, mediante excussão do bem, ou se, como visto, o pacto
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290 “Considerámos serem direitos reais de garantia aqueles que se destinem, global-
mente, a assegurar a garantia de direitos de crédito” (CORDEIRO, António Menezes.
Direitos reais. Lisboa: Lex Lições Jurídicas, 1993, p. 739).
291 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. vol. IV. Atualizado
por Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 278.
292 Trata-se do direito concedido ao credor com garantia real sobre bem do devedor
de promover a venda da coisa dada em garantia em hasta pública, por meio de execu-
ção judicial, nos casos de inadimplemento do devedor.
marciano poderia ensejar o afastamento do procedimento judicial
para que o credor satisfaça seu crédito pela aquisição da proprieda-
de plena do bem ofertado mediante restituição do superfluum, aca-
so existente. A partir desse momento, portanto, procede-se à aná-
li se da c láu su la m ar cia na no b ojo das modalidades de garantias reais
típicas.
3.1.1. No penhor
Por definição, penhor é o direito real de garantia que traduz a
afetação jurídica de coisa móvel, suscetível de alienação, mediante
tradição, com o fim de satisfazer determinado direito de crédito.293
No direito brasileiro, o conceito se extrai do artigo 1.431 do Códi-
go Civil, que dispõe: “constitui-se o penhor pela transferência efe-
tiva da posse que, em garantia do débito ao credor ou a quem o rep-
resente, faz o devedor, ou alguém por ele, de uma coisa móvel, sus-
cetível de alienação”. Pode-se garantir, por tal modalidade, qual-
quer espécie de obrigação (dar, fazer ou não fazer), não importan-
do se a prestação se configura presente, futura ou eventual294. Inci-
de, como se nota, sobre coisa móvel, o que facilita a posse do cre-
dor pignoratício sobre a coisa empenhada, considerando-se o desa-
possamento, ao menos na modalidade comum, elemento substan-
cial do instituto.295
Diante dos objetivos definidos em sua proposta central, esta
tese se concentrará nos pontos que se mostram indispensáveis ao
desenvolvimento do assunto objeto do presente tópico: a licitude
da cláusula marciana no penhor comum.296
Pacto comissório e pacto marciano no sistema brasileiro de garantias
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293 V., por todos, a definição de penhor apresentada por PEREIRA, Caio Mário da
Silva. Instituições de direito civil. vol. IV. Atualizado por Carlos Edison do Rêgo Mon-
teiro Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 278. V. tb. RENTERIA, Pablo. Penhor e
autonomia privada. São Paulo: Atlas, 2016, p. 177.
294 CARVALHO SANTOS, J.M. de. Código civil brasileiro interpretado. vol. X. Rio
de Janeiro: Freitas Bastos, 1989, p. 104.
295 BEVILAQUA, Clovis. Direito das coisas. vol. I. Rio de Janeiro: Freitas Bastos,
1941, p. 456.
296 Sobre o penhor especial, v. DANTAS, San Tiago. Programa de direito civil. vol.
III. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1979, p. 411; GOMES, Orlando. Direitos reais. Atua-
lizadapor Luiz EdsonFachin. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 369; PEREIRA, Caio
Mário da Silva. Instituições de direito civil. vol. IV. Atualizado por Carlos Edison do
Inicialmente, afirme-se que, de todos os elementos apontados,
a transferência da posse da coisa empenhada, na modalidade co-
mum, delineia, para efeitos deste estudo, o principal traço distinti-
vo deste em relação às outras garantias reais típicas. A partir desta
característica, percebe-se a situação de vulnerabilidade em que se
insere o devedor. Imagine-se, por exemplo, hipótese em que o ban-
co “B” exige, para a aprovação de financiamento no valor de 500
mil reais, a constituição de penhor comum sobre objeto de proprie-
dade do devedor “A”, avaliado em 1 milhão de reais. Nesta situa-
ção, ou o devedor transfere a posse da coisa, ou não logrará atingir
o numerário de que tanto necessita. Em situações tais, afigura-se
perceptível a situação delicada na qual se insere o contratante.297
Seguindo-se no exemplo, vencida e não paga a obrigação, surgi-
rá para o mutuante o direito de promover a execução do bem em-
penhado. Ordinariamente, poderá o credor, possuidor da coisa,
“promover a execução judicial, ou a venda amigável” do bem “se
lhe permitir expressamente o contrato, ou lhe autorizar o devedor
mediante procuração” (Art. 1.433, IV, CC). Após, com o produto
da alienação, quitará a dívida contraída, devolvendo o excedente,
se houver, ao devedor.298
Capítulo III: Pactos comissório e marciano em perspectiva dinâmica
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Rêgo Monteiro Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 296-300; BEVILÁQUA, Cló-
vis. Direito das coisas. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003, p. 85;
CARVALHO SANTOS, J.M. de. Código Civil brasileiro interpretado. vol. X. Rio de
Janeiro: Freitas Bastos, 1950, p. 170-179; WALD, Arnoldo. Direito civil. vol. VI. São
Paulo: Saraiva, 2009, p. 332-340.
297 “Em reflexão no âmbito do Direito português, Menezes Cordeiro afirma que
“como o penhor só recai sobre coisas móveis não registráveis, essa publicidade tem de
ser assegurada através da posse da coisa por parte do credor” (CORDEIRO, António
Menezes. Direitos reais. Lex Lições Jurídicas: Lisboa, 1993, p. 750). No mesmo sen-
tido, v. MATOS, Isabel Andrade de. O pacto comissório: contributo para o estudo do
âmbito da sua proibição. Coimbra: Almedina, 2006, p. 116: “tal desapossamento visa
assegurar a publicidade do penhor e a consequente salvaguarda dos direitos do credor
pignoratício e dos direitos de terceiro. Para o credor pignoratício, tal entrega do bem
representa a forma mais eficaz de evitar que o bem empenhado seja transacionado ou
apreendido judicialmente como se de um bem livre se tratasse. Para os terceiros, a en-
trega do bem ao credor pignoratício constitui a melhor forma de se assegurarem que
não estão a adquirir como um bem livre um bem que, afinal, se encontra onerado”.
298 Alerte-se que, caso o bem conte valor menor do que a prestação devida, continua-
rá o mutuário obrigado perante a quantia restante. Nos termos do artigo 876, § 4º, II,
CPC/2015, “Se o valor do crédito for: II — superior ao dos bens, a execução prosse-
guirá pelo saldo remanescente”.

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