Pacto Marciano

AutorCarlos Edison do Rêgo Monteiro Filho
Páginas71-130
Pacto MarcianoCapítulo II: Pacto Marciano
Capítulo II
Pacto Marciano
2.1. O pacto marciano: trajetória e mecanismos de atuação
Retratado, no capítulo anterior, o pacto comissório e os funda-
mentos de sua vedação, faz-se mister proceder ao estudo da cláu-
sula marciana, a fim de que, aprofundadas as noções, se aponte o
panorama global de seus contrastes e convergências no estado atual
do Direito, a permitir o desenvolvimento da trajetória ulterior des-
ta tese. Este segundo capítulo dedica-se, então, à análise da estru-
tura e da função do pacto marciano; e, para início desta empreita-
da, importa demonstrar suas engrenagens e funcionamento.
A convenção opera da seguinte maneira: figure-se exemplo em
que A, carente do numerário de 500 mil reais, celebra com B con-
trato de mútuo, oferecendo em garantia bem imóvel de valor de
mercado de 1 milhão de reais. As partes preveem ainda cláusula
marciana, de modo que, caso A descumpra o contrato, B poderá se
tornar proprietário da coisa mediante justo preço. Havendo o ina-
dimplemento absoluto, promover-se-á a avaliação do imóvel, de-
vendo B restituir a A a parcela que exceder o montante da dívida.
Delineados os contornos de sua atuação, e antes de se proceder
ao enfrentamento do conceito e dos elementos constitutivos do
pacto marciano, permita-se sumária contextualização histórica,
que, no particular, se revela indispensável à identificação dos cho-
ques e cruzamentos de rumo entre comissório e marciano, bem
como seus respectivos fundamentos ao longo do tempo, na esteira
das considerações tecidas no capítulo primeiro.
A cláusula marciana mostrou-se objeto de controvérsias já no
Direito Romano, em que se discutia se constituiria também lex co-
missoria, de modo a ser considerada nula a partir do édito de Cons-
tantino (v. Capítulo I supra), ou se a circunstância de se assegurar
a execução do bem por seu preço justo permitiria considerá-la vá-
lida.154
71
Procurando marcar linha de oposição à congênere, a origem da
admissibilidade da cláusula marciana deu-se em momento cronolo-
gicamente posterior à proibição da comissória. O reconhecimento
da validade daquela pelo jurisconsulto clássico Marciano155 inseriu-
se em contexto no qual o direito romano, imbuído de casuísmo,
voltou-se para a busca da justiça por meio do exame de casos con-
cretos.156Dessa forma, surge a prática de se aconselharem o pretor
e as próprias partes da opinião de juristas cuja ativa produção lite-
rária se dirigia à solução de problemas reais ou hipotéticos.
A utilização de um pacto que, em termos, aproximava-se da
avença vedada por Constantino deu origem à consulta formulada
ao jurisconsulto Marciano, que firmou entendimento que viria a se
tornar fragmento do Digesto 20, 1, 16, 9:
Pode assim fazer-se a entrega do penhor ou da hipoteca, de sorte que,
se, dentro de determinado tempo, não for pago o dinheiro, por direi-
to do comprador, tome posse da coisa, que deve ser então avaliada
pelo justo preço; neste caso a venda parece ser de certo modo condi-
cional, e assim decidiram por escrito os divinos Severo e Antonino.157
Com o fim do Império Romano e início do medievo, houve,
como apontado no Capítulo I, grandiosa influência do Direito Ca-
Pacto comissório e pacto marciano no sistema brasileiro de garantias
72
154 MATOS, Isabel Andrade de. O pacto comissório: contributo para o estudo do âm-
bito da sua proibição. Coimbra: Almedina, 2006, p. 84.
155 Marciano foi um dos sete jurisconsultos romanos clássicos, ao lado de Iavolenus,
Iulianus, Africanus, Pomponius, Cervidius Scaevola e Marcelus (CRUZ, Sebastião.
Direito romano: lições. vol. I. Coimbra: Almedina, 1969, p. 458).
156 “O direito ganha, desta forma, um caráter casuístico que incentiva uma averigua-
ção muito fina da justiça de cada caso concreto. Para além disso, o momento da reso-
lução dos casos é muito criativo, pois a lei não amarra, de modo nenhum, a inventiva
do magistrado, que fica bastante livre para imaginar soluções específicas para cada si-
tuação. Isto explica, porventura, o desenvolvimento de uma enorme produção literária
de juristas, treinados na prática de aconselhar as partes e o próprio pretor, que averi-
guam e discutem a solução mais adequada para resolver casos reais ou hipotéticos”.
(HESPANHA, António Manuel. Cultura jurídica europeia: síntese de um milênio.
Lisboa: Almedina, 2012, pp. 118-119).
157 No original: “potest ita fieri pignoris datio hypotecaeve, ut, si intra certum tem-
pus non sit soluta pecúnia, uire emptoris possideat rem iusto pretio tunc aestiman-
dam: hon enim casu videtur quodammodo condicionalis esse venditio, et ita divus Se-
verus et Antoninus rescriperunt”.
nônico — repressivo a práticas usurárias — nas relações priva-
das,158 a ponto de por ele se orientar o chamado direito dos reinos.
Nesse contexto, editaram-se as Siete Partidas, corpo normativo re-
digido no Reino de Castela, durante o reinado de Afonso X (1252-
1284), que condenavam o pacto comissório enquanto admitiam o
pacto marciano (Lei 41, Título V, Partida V159 e Lei 12, Título
XIII, Partida V160). No primeiro documento, entende-se161 previs-
ta a licitude do pacto marciano pelo seguinte trecho:
Capítulo II: Pacto Marciano
73
158 Sobre a relação entre o Direito Canônico e o Direito Civil, v., por todos, HESPA-
NHA, António Manuel. “Num plano superior, está o direito canônico que, como direi-
to diretamente ligado à autoridade religiosa, pretende um papel de critério último de
validação das outras ordens jurídicas, em obediência ao princípio da subordinação do
governo terreno aos fins sobrenaturais de salvação individual. Assim, em princípio o
direito canônico deveria prevalecer em assuntos relacionados com a ordem sobrenatu-
ral, deixando ao direito civil as matérias de natureza temporal. Porém, como já vimos,
esta regra não era geral nem automática, pois, mesmo em matérias temporais, podia
acontecer que devesse vigorar o direito canônico, desde que a solução do direito civil
contrariasse gravemente princípios de conveniência impostos pela ordem religiosa”
(Cultura jurídica europeia: síntese de um milênio. Lisboa: Almedina, 2012, p. 153).
159 Para proibição do pacto comissório, previa-se na referida Lei 41: “de la postura
que es puesta sobre el peño; si non fuere quito a día cierto, que fusse comprada del que
la tiene a peños; si deve valer, o non. Empeñado un ome a otro alguna cosa, a tal pleyto,
que si la no quitasse a dia cierto, que fuesse suya comprada, de aquel a que la rescebio
a peños: dando o pagando sobre aquello que auia dado quando la tomo a peños tanto
quanto podria valer la cosa segund alvedrio de omnes Buenos: tal pleyto como este
deve valer. Mas si la comprasse de otra quisa, diziendo assi: que fazia tal pleyto con ele,
que si ta non quitasse adia senãnalado, que fuesse suya, por aquello que dava sobre ella
a peños; entonce non valdria el pleyto, nin la vendida. E por esta razon non tenemos
por bien que vala tal pleyto, porque los que emprestan dineros a otros sobre peños,
non lo quarrian fazer de otra guise. E los omnes quando estoviessen muy cuytados con
muy grando mengua que oviessen, farina tal pleyto como este, maguer entendiessen
seria a su daño”. Tradução livre: Da questão que é posta sobre o penhor; se não for
quitado ao dia certo, que fosse comprada a coisa daquele que a empenhou; se deve
valer ou não. Empenhando um homem a outro alguma coisa, convencionando-se que,
se não a quitasse ao dia certo, fosse comprada a coisa daquele que a empenhou: dando
ou pagando aquilo que dava sobre ela a penhor; então não valeria o pacto nem a venda.
Mas, se, de modo diverso, comprasse dizendo assim: que faz tal pacto com ele, e se não
quitado ao dia avençado, que a coisa se tornasse sua, então não valeria o pacto nem a
venda. E por essa razão não temos por bem que valha tal pacto, porque os que empres-
tam dinheiro a outros sobre penhor não fariam de outra forma. E os homens, quando
estivessem muito necessitados, fariam pactos como esse.
160 Em razão de proibir o pacto comissório, previa a Lei 12, Título XIII, Partida V:
“Quales pleytos pueden ser puestos por razon de los peños e quales non. Todo pleyto,

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT