Pacto Comissório

AutorCarlos Edison do Rêgo Monteiro Filho
Páginas5-69
Pacto ComissórioCapítulo I: Pacto Comissório
Capítulo I
Pacto Comissório
1.1. O pacto comissório: etiologia e delineamentos iniciais
Dedica-se a primeira etapa do trabalho ao pacto comissório
para que se possa, a partir da apresentação de sua estrutura e fun-
ção, delimitar fronteiras com o pacto marciano e, bem assim, avan-
çar a caminho dos objetivos centrais desta obra. O propósito de dis-
tinguir institutos cujas semelhanças, à primeira vista, embaralham
a compreensão, efetiva-se por meio da tentativa de destrinchar as
finalidades e as bases de um e de outro. Imbuída desse desafio, a
empreitada consistirá em apresentar o conceito do pacto comissó-
rio, desenvolvido em doutrina e nas diferentes previsões legislati-
vas, o estado da arte do tema no ordenamento brasileiro e, ao final
do capítulo, os fundamentos de sua vedação. Concluída a primeira
etapa, ter-se-á, aos olhos do leitor, instrumento hábil a permitir a
distinção que se espera sólida entre a cláusula comissória e a mar-
ciana. E, assim, o fôlego necessário para arrematar, ao final da tra-
vessia, o merecimento de tutela do pacto marciano no ordenamen-
to brasileiro, ponto central da presente tese.1
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1 “Para evitar os perigos de um estruturalismo árido, de maneira a subtrair-se ao
fascínio de doutos questionamentos sobre o consentimento, sobre a troca sem diálogo
e sem acordo, é necessário deslocar a atenção para os aspectos teleológicos e axiológi-
cos dos atos de autonomia negocial, para o seu merecimento de tutela segundo o orde-
namento jurídico. Isto representa o sinal de uma forte mutação no enfoque hermenêu-
tico e qualificador do ato e, sobretudo, de um modo mais moderno de considerar a
relação entre a lei e a autonomia negocial, configurada unitariamente; de maneira que
a hierarquia dos valores, com base na qual exprimir o juízo de valor é preestabelecida
nas fontes normativas hierarquicamente superiores, enquanto a iniciativa e as modali-
dades de suas realizações concretas são mais do que antes reivindicadas, em uma espé-
cie de subsidiariedade, à liberdade das partes interessadas” (PERLINGIERI, Pietro. O
direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 358-359).
De início, então, cite-se a lição de Caio Mário da Silva Pereira,
para quem a cláusula2 comissória “consiste em pactuar, no ato
constitutivo da garantia real, a faculdade de apropriar-se o credor
do seu objeto em caso de não ser cumprida a obrigação garantida”.3
Carvalho Santos, nos comentários ao Código Civil de 1916, ensina
que o pacto comissório é “a estipulação pela qual uma das partes, o
credor, pode ficar com o bem dado em garantia, se o devedor não
paga a dívida no vencimento”. Gladston Mamede, na mesma linha,
sustenta se tratar de “ajuste a autorizar, em face do inadimplemen-
to, a apropriação pelo credor do bem dado em garantia”.4 San Tiago
Dantas, por sua vez, a evidenciar a notória invalidade do pacto, de-
monstra que a cláusula comissória foi “severamente proibida em
todo o direito evoluído”.5
Pacto comissório e pacto marciano no sistema brasileiro de garantias
6
2 Esclareça-se que, nesta tese, os termos cláusula, pacto e lex serão utilizados indis-
tintamente, como sinônimos, por carregarem, no contexto, o mesmo significado. “O
termo lex, aplicado ao instituto, não era utilizado no sentido próprio e rigoroso de lex,
ou seja, de norma jurídica de caráter geral e abstrato, imposta por uma autoridade coa-
tora. Mais especificamente, consolidava-se como expressão da autonomia contratual
das partes, na forma de convenção acessória capaz de modificar a eficácia do negócio
principal. Daí porque entender que a designação aqui corresponderia à figura de um
pacto adjeto”. (REIS, Mayara de Lima. O pacto comissório no direito romano. São Pau-
lo: Universidade de São Paulo, 2014, p. 9).
3 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. vol. IV. Atualizado
por Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 290. Para
Clóvis Bevilaqua “a proibição tanto se refere ao ato constitutivo da garantia, quanto à
convenção posterior. Nem há razão para distinguir os dois momentos porque o funda-
mento da nulidade da cláusula comissória é de ordem moral: a proteção do fraco em
face da exploração gananciosa do argentário, que se utiliza desse meio para extorquir
o devedor, por preço irrisório, o bem que este lhe dá em garantia do pagamento” (BE-
VILAQUA, Clóvis. Direito das coisas, vol. II. Rio de Janeiro: Forense, 1956, p. 38).
4 MAMEDE, Gladston. Código Civil comentado: direitos das coisas. vol. XIV. São
Paulo: Atlas, 2003, p. 113.
5 “Sendo a garantia real, essencialmente, um direito ao valor, é óbvio que a finalida-
de deste direito é transformar a coisa no seu valor, para que deste se possa deduzir o
montante da obrigação. É a isso que se chama ius distrahendi do titular do direito real
de garantia. Ele tem a faculdade de promover a venda da coisa obrigada, da res obliga-
ta, e obtendo, assim, o seu valor, pode deduzir dele o montante do crédito. Não pode,
entretanto, convencionar que, se a dívida não for paga, a coisa passará à sua proprieda-
de. Isso era o que os antigos chamavam de Lex Comissoria, severamente proibido em
todo o direito evoluído. Quando acontece que a venda da coisa engendra um preço su-
perior ao valor da obrigação, o excedente restitui-se ao proprietário. Quando é o con-
trário, quando o preço obtido é insuficiente, então o credor continua a ser credor do
Ainda, segundo Affonso Fraga, a cláusula comissória se mani-
festa em, ao menos, três hipóteses: “a) quando se auctoriza o cre-
dor a ficar com o bem pela divida ou a vende-lo por qualquer preço
a quem o queira comprar; b) quando no acto de se constituir a se-
gurança real se auctoriza o credor a ficar com o bem por um preço
ajustado; c) quando ao tempo da formação do contracto se confere
o direito o credor de ficar com a coisa pelo valor que estimar”.6 Do
mesmo modo, Lafayette Pereira afirma que não é lícito acordo no
qual se estipule “que se a dívida não for paga no prazo ajustado fi-
que a cousa vendida de pleno direito ao credor ou pelo preço da
dívida”.7 Pontes de Miranda, por fim, salienta que a proibição do
pacto pode incidir sobre o “penhor, caução, hipoteca ou anticrese,
ou no acordo de constituição ou em pacto separado”.8 Pires de
Lima e Antunes Varela aduzem que o pacto comissório consiste no
acordo “segundo o qual o credor faria sua a coisa onerada, no caso
de o devedor não cumprir” com a obrigação avençada.9
Trata-se, portanto, de cláusula que autoriza a apropriação pelo
credor do bem dado em garantia diante do inadimplemento da dí-
vida, sem que haja avaliação da coisa10, ou por meio de avaliação
realizada pelo próprio credor, que tomará para si eventual diferen-
ça entre o valor do objeto da garantia e o valor da dívida, caso aque-
le seja maior do que este.
Capítulo I: Pacto Comissório
7
saldo, mas com relação a esse saldo, é um credor comum que entra no concurso com
os demais quirografários” (DANTAS, San Tiago. Programa de direito civil. vol. III.
Rio de Janeiro: Rio, 1984, p. 389).
6 FRAGA, Affonso José Gonçalves. Direitos reaes de garantia: penhor, antichrese
e hypotheca. São Paulo: Saraiva, 1933, p. 121.
7 PEREIRA, Lafayette. Direito das cousas. Rio de Janeiro: Livraria do Globo, 1922,
p. 349.
8 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalvanti. Tratado de direito privado. vol.
XX. Rio de Janeiro, Borsoi, 1958, p. 29.
9 VARELA, Antunes; DE LIMA, Pires. Código civil anotado. vol. I. Coimbra: Edi-
tora Coimbra, 2011, p. 717.
10 Não constitui objeto desta tese o aprofundamento do acirrado debate doutrinário
acerca da distinção entre as noções de “bem” e “coisa”. Para o aprofundamento da dis-
cussão v. TEPEDINO, Gustavo. Multipropriedade imobiliária. São Paulo: Saraiva,
1993, p. 92 e PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. vol. I. Atua-
lizado por Maria Celina Bodin de Moraes. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 401.

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