Espécies de dados sensíveis: uma definição dinâmica e contextual

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ESPÉCIES DE DADOS SENSÍVEIS:
UMA DEFINIÇÃO DINÂMICA
E CONTEXTUAL
No presente capítulo, busca-se desenvolver contribuição acerca das diversas
espécies de dados pessoais considerados sensíveis, analisando-se seus conceitos,
conteúdos e quais informações tutelam. Em alguns casos, entender quais dados
são, de fato, sensíveis pode ser uma atividade complexa e depender de questões
bastante especícas acerca do tratamento e da nalidade dos agentes. Análise
essa que se alinha com o primeiro tema abordado no capítulo: a natureza do rol
de dados sensíveis, se exemplicativa ou taxativa. Denir tal ponto mostra-se
substancialmente importante em qualquer processo de adequação à LGPD e
implica, em aspectos práticos, trabalhar em detalhe: gestão de riscos, bases legais
aplicáveis para o tratamento de dados, o desenvolvimento de relatórios de im-
pacto e o incremento de mecanismos de proteção ampliada para dados sensíveis.
Em seguida, passa-se para a análise crítica das espécies de dados sensíveis
positivadas no Art. 5º, II, da LGPD, quais sejam: dados pessoais sensíveis sobre ori-
gem étnica ou racial; dados pessoais sensíveis acerca de crenças e liações; dados
pessoais sensíveis corporais, que englobam dados genéticos, dados biométricos
e dados referentes à saúde, havendo especia l destaque para o tratamento dessas
informações no cenário de pandemia de COVID-19; e dados referentes à vida
sexual. Por m, serão analisados dados potencialmente sensíveis, que não foram
mencionados diretamente na LGPD como sensíveis, mas que por sua natureza e
possibilidades de uso merecem especial atenção, como dados nanceiros, dados
sobre origem social e dados relativos a antecedentes e condenações criminais.
Portanto, no capítulo 2, visa-se a discutir três relevantes perguntas: o rol
de dados sensíveis é exemplicativo ou exaustivo? Quais informações devem
ser efetivamente tuteladas como sensíveis, a partir de uma leitura que arme a
metodologia civil-constitucional na interpretação e aplicação da Lei Geral de
Proteção de Dados Pessoais? Além das espécies positivadas na LGPD como dados
sensíveis, quais outros dados – mesmo que apenas em determinados contextos
– devem assim ser tutelados e por qual razão?
DADOS PESSOAIS SENSÍVEIS • Chiara SpadaCCini de Teffé
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2.1 O ROL DE DADOS SENSÍVEIS NA LGPD: POR UMA TUTELA
AMPLIADA DAS INFORMAÇÕES PESSOAIS
A LGPD em seu Art. 5º, inciso II, trouxe espécies de dados pessoais consi-
derados sensíveis: “dado pessoal sobre origem racial ou étnica, convicção reli-
giosa, opinião política, liação a sindicato ou a organização de caráter religioso,
losóco ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou
biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural”. Todavia, não esclareceu
o que seriam dados sensíveis em termos conceituais, não deniu suas espécies
nem se posicionou quanto à qualidade de seu rol: se taxativoouexemplicativo.
No Direito, quando se arma que um rol é taxativo (exaustivo ou numerus
clausus), isso signica dizer que a lista de situações ou direitos estabelecida é
determinada e fechada, não dando margem a interpretaçõesextensivas. Além
da técnica legislativa empregada em cada caso, mostra-se relevante obser var a
natureza dos direitos envolvidos, se existenciais ou patrimoniais, e a relação da
tutela oferecida com a promoção do princípio da dignidade da pessoa humana.
Como exemplos de róis taxativos, vale mencionar : o Art. 1º da Lei nº 8.072/90
(Lei dos Crimes Hediondos) e o Art. 102, I, d, da Constituição Federal de 1988.
Por outro lado, o rol exemplicativo (numerus apertus) apresenta, de forma não
exaustiva, itens de uma categoria ou lista.1 Eleencontra-se abertopara que outros casos
e direitos sejam ali inseridos. Como exemplos, é possível mencionar: os direitos da
personalidade2; o Art. 7º da Lei nº 11.340/06 (Lei Maria da Penha, que estabelece as
1. Por vezes, os róis exemplicativos trazem expressões como: “entre outros”, “demais hipóteses previstas
em lei”, “em especial”, “a lei poderá” etc
2. Acerca dos direitos da personalidade, a concepção pluralista preconiza a existência de distintos direitos
que se reuniriam em razão das características e elementos em comum. Defende-se que os direitos da
personalidade constituem uma categoria composta por direitos autônomos e distintos, que gozam de uma
regulamentação própria, e não um mero desdobramento de um direito geral. Para Gomes, a teoria dos
direitos de personalidade apenas se liberta de imprecisões quando a sua construção se apoia no direito
positivo e é reconhecido o pluralismo desses direitos, em virtude da diversidade dos bens jurídicos em
que recaem. (GOMES, Orlando. Direitos da personalidade e responsabilidade civil. Revista de direito
comparado luso-brasileiro. Rio de Janeiro, ano II, n. 2, 1983.) Dentro da concepção pluralista, salienta
Perlingieri que há teorias que sustentam a existência de uma série aberta de direitos da personalidade
(atipicidade) e outras que sustentam que o rol desses direitos deveria ser fechado (tipicidade), sendo tal
contraposição essencialmente ligada a opções ideológicas e culturais. Para o autor, a lógica baseada na
tipicidade exauriria a relevância de tais direitos no aspecto patrimonial do ressarcimento de danos e não
levaria em conta que poderiam existir outros interesses da pessoa mais decisivos e qualicantes, ainda
que não presentes no Código Civil, mas sim em alguma lei especial. (PERLINGIERI, Pietro. O direito
civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 762.) Analisando o artigo 2º da Cons-
tituição italiana, Perlingieri arma que essa seria uma norma diretamente aplicável e que exprimiria um
princípio fundamental de tutela da pessoa humana. O conteúdo dessa norma não se limitaria a resumir
os direitos tipicamente previstos por outros dispositivos da Carta, mas per mitiria estender a tutela às
situações atípicas. (PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro:
Renovar, 2008. p. 763.) O autor conclui que a personalidade não seria um direito, mas sim um valor o
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2 • ESPÉCIES DE DADOS SENSÍVEIS: umA DEFINIÇÃO DINÂmICA E CONTEXTuAL
hipóteses de atos que conguram violência contra a mulher); e as cláusulas abusivas
Conforme analisado no capítulo 1, diante dos fundamentos da categoria
dos dados sensíveis, da proteção de dados pessoais ser considerada um direito da
personalidade e de sua natureza relacionada diretamente a aspectos existenciais
da pessoa humana, entende-se que o rol de dados sensíveis na LGPD deve ser
considerado exemplicativo3, sendo tutelado de forma ampla e contextualizada.
Na referida lei, não há previsão expressa que estabeleça o rol do Art. 5º, II, como
exaustivo. Ao contrário, a lei dispõe que se aplica o disposto no Art. 11 a qualquer
tratamento de dados pessoais que revele dados pessoais sensíveis e que possa
causar dano ao titular, ressalvado o disposto em legislação especíca.4
Como direito da personalidade, a proteção de dados pessoais é essencial
à pessoa humana, necessária, irrenunciável e inalienável. A elasticidade do rol
valor fundamental do ordenamento , que estaria na base de “uma série aberta de situações subjetivas
existenciais, nas quais se traduz a sua incessantemente mutável exigência de tutela.” (PERLINGIERI,
Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 764.) Não haveria uma
série fechada de situações tuteladas: tutelado seria o valor da pessoa, com exceção dos limites impostos
em razão de seu interesse e de outras pessoas. De acordo com o autor, o juiz “não poderá negar tutela
a quem pedir garantia de um aspecto de sua própria existência que não tenha previsão especíca, pois
aquele interesse já tem uma relevância no ordenamento, e, portanto, uma tutela também em via judi-
cial.” (PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
p.765.) No Brasil, a concepção pluralista foi adotada pelo legislador e encontra ampla adesão na doutrina.
Entende-se, assim, que o rol de direitos da personalidade não é taxativo, de forma que o intérprete não
deve se restringir aos direitos positivados na Constituição Federal e no Código Civil, mas garantir as
diversas manifestações existenciais da pessoa, uma vez que elas, a princípio, já gozariam de relevância no
ordenamento. Dispõe o enunciado 274 do Conselho da Justiça Federal que: “Os direitos da personalidade,
regulados de maneira não-exaustiva pelo Código Civil, são expressões da cláusula geral de tutela da pessoa
humana, contida no art. 1º, III, da Constituição (princípio da dignidade da pessoa humana).” (TEFFÉ,
Chiara Antonia Spadaccini de. A tutela da imagem da pessoa humana na internet: da identicação do
dano à sua compensação. 2016. 226 f. Dissertação (Mestrado em Direito Civil) – Faculdade de Direito,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016. p. 22-23)
3. KONDER, Carlos Nelson. O tratamento de dados sensíveis à luz da Lei 13.709/2018. In: FRAZÃO,
Ana; TEPEDINO, Gustavo; OLIVA, Milena Donato (Org.). A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais
e Suas Repercussões no Direito Brasileiro. Revista dos Tribunais: São Paulo, 2019, p. 455.
4. “Com o propósito de evitar lesões a direitos fundamentais da pessoa humana, o § 1º do art. 11 da
LGPD dispõe que as regras relativas aos dados sensíveis devem ser aplicadas aos dados pessoais que,
quando tratados, possam vir a revelar informações sensíveis de seu titular, tornando-o suscetível a
danos. A característica comum a todos os dados sensíveis é a suscetibilidade de sua utilização para ns
discriminatórios, de modo que, em decorrência dos efeitos potencialmente lesivos de seu tratamento,
não é possível aceitar que exista um rol taxativo de dados sensíveis. A propósito, Stefano Rodotà ex-
plica que a formação de pers com base em dados pessoais pode ensejar discriminação em diferentes
situações:(i)há dados pessoais que, embora sejam aparentemente não sensíveis, podem, quando
tratados, se tornar sensíveis, viabilizando, inclusive, a identicação da pesso a e dos seus hábitos, rela-
cionamentos, preferências, convicções religiosas, políticas e losócas etc.; e(ii)quando o tratamento
de dados identica um grupo de pessoas ao qual são atribuídas conotações negativas. (RODRIGUES,
Marco Antonio dos Santos; HIBNER, Davi Amaral. Parâmetros para a proteção de dados pessoais em
tempos de pandemia. Revista de Direito e as Novas Tecnologias, vol. 8/2020, Jul – Set / 2020.)

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