Introdução

PáginasXXI-XXIV
INTRODUÇÃO
Os dados contam histórias sobre nós: indivíduos, grupos e sociedades.
Quanto mais dados pessoais são tratados e tecnologias sosticadas empregadas,
mais pers são criados e análises e predições realizadas. A partir de informações
pessoais é possível conhecer hábitos, comportamentos, gostos, preferências,
ascendência, estado de saúde e crenças de uma pessoa natural. Ao longo do
tempo, a qualidade e a precisão das análises vêm sendo aperfeiçoadas, havendo,
inclusive, a utilização de complexas estruturas de inteligência articial por agentes
públicos e privados.
Na era da informação, o corpo não se resume ao aspecto físico e material-
mente visível, mas abrange também o conjunto de dados pessoais sobre o indiví-
duo, formando o que foi denominado por Stefano Rodotà1 de “corpo eletrônico”.
Ao desenvolver o referido conceito, o jurista italiano realçou a importância da
proteção de dados pessoais para o exercício da cidadania e como instrumento
contra a expansão do monitoramento estatal e o uso indiscriminado de dados
por instituições de diversos segmentos.
Dados pessoais são continuamente tratados nas mais variadas relações, seja
em compras em farmácias, na manutenção de pers em mídias sociais, na abertura
de contas em bancos ou por meio de ferramentas de vigilância e reconhecimento
facial. Traços de cada um de nós restam armazenados em inúmeros bancos de
dados, onde nossa identidade é dissecada e desmembrada, onde aparecemos ora
como consumidores, ora como eleitores, devedores, trabalhadores ou usuários
de serviços.2
Daniel Solove3 aponta que as pessoas costumam armar que valorizam
a privacidade, porém as próprias, por vezes, fornecem informações pessoais,
inclusive sensíveis, para obterem pequenos descontos, benefícios e facilidades
em bens e serviços. Os indivíduos expressam preocupação com a privacidade e
a proteção de dados, mas algumas vezes falham em tomar medidas simples e não
1. Cf. RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância – a privacidade hoje. Coord. Maria Celina
Bodin de Moraes. Trad. Danilo Doneda e Luciana Cabral Doneda. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
2. RODOTÀ, Stefano. Salviamo il corpo. Trecho de discurso proferido em conferência sobre “Transfor-
mações do corpo e dignidade da pessoa”, Roma, 04 de maio de 2005. Disponível em:
privacy.it/archivio/rodo20050504.html> Acesso em: 02.02.21
3. SOLOVE, Daniel J. e Myth of the Privacy Paradox. George Washington Law Review 1, 89, jan. 2021.
Disponível em: Acesso em: 02.02.21.
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custosas para protegê-las. Esse fenômeno, segundo o autor, é conhecido como o
“paradoxo da privacidade” e impacta profundamente a tutela dos dados pessoais.
Em atividades do cotidiano, muitas vezes, ocorre o fornecimento voluntário ou
a pedido de terceiros de informações pessoais, sem que um efetivo questiona-
mento sobre o porquê da solicitação, a nalidade do tratamento e a política de
tratamento desenvolvida seja realizado.
Conforme o grau de sensibilidade da informação aumenta, maiores são as
possibilidades de seu titular sofrer interferências indevidas em sua liberdade e
tratamentos discriminatórios ilícitos ou abusivos. Por tal razão, além da criação
de uma categoria especial para tutelar determinadas informações pessoais – os
dados sensíveis –, mostrou-se necessário regular de forma mais restrita seu tra-
tamento e instituir instrumentos amplos para a sua proteção.
Nesse sentido, no capítulo 1, busca-se realizar uma análise profunda da
categoria dos dados sensíveis, levando em conta sua relevância, dinamicidade
e função, bem como compreender seus fundamentos. Para tanto, em primeiro
lugar, será analisada a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e os cenários
social e tecnológico que promoveram a sua criação e desenvolvimento. Em
seguida, passa-se para os principais fundamentos para a elaboração de uma
categoria especial de dados pessoais: o livre desenvolvimento da personalidade
e o princípio da não discriminação. Após esse estudo, chega-se à denição, à
qualicação e aos contornos dos dados sensíveis, havendo a análise de tais in-
formações tanto no contexto brasileiro quanto no europeu. No nal do capítulo,
é desenvolvida proposta de proteção ampliada para determinados tratamen-
tos de dados sensíveis, levando-se em conta questões como: características
e vulnerabilidades de seus titulares, conteúdo envolvido e possibilidades de
discriminação ilícita ou abusiva.
No capítulo 2, busca-se desenvolver contribuição acerca das espécies de
dados pessoais sensíveis, analisando-se seus conceitos, conteúdos e quais infor-
mações protegem. Em alguns casos, entender quais dados são, de fato, sensíveis
pode ser uma atividade complexa e depender de questões bastante especícas
acerca do tratamento realizado e da nalidade dos agentes. Análise que se alinha
com o primeiro tema abordado no capítulo: a natureza do rol dos dados sensíveis,
se exemplicativo ou taxativo. Em seguida, passa-se para a análise crítica das es-
pécies de dados sensíveis positivadas no Art. 5º, inciso II, da LGPD, quais sejam:
dados pessoais sensíveis sobre origem étnica ou racial; dados pessoais sensíveis
acerca de crenças e liações, o que inclui informações sobre convicções e opini-
ões políticas, de proteção fundamental especialmente em cenários eleitorais e
de larga polarização política; dados pessoais sensíveis corporais, que englobam
dados genéticos, biométricos e referentes à saúde, havendo especial destaque
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INTRODuÇÃO
para o tratamento dessas informações no cenário de pandemia de COVID-19; e
dados referentes à vida sexual. Por m, serão analisados dados potencialmente
sensíveis, que não foram mencionados expressamente na LGPD como sensíveis,
mas que por sua natureza e possibilidades de uso e inferências merecem especial
atenção e salvaguardas ampliadas.
Após desenvolver a categoria dos dados sensíveis, realçar a sua importância
para o livre desenvolvimento e expressão da pessoa humana e discutir o seu con-
teúdo, no capítulo 03 serão analisadas normas relativas ao tratamento dos dados
pessoais sensíveis e às bases legais aplicáveis a eles. Para tanto, inicialmente, será
realizado estudo acerca das hipóteses de tratamento de dados pessoais na LGPD
e da estrutura de aplicação da referida lei. Em seguida, a atenção será dirigida
ao Artigo 11 da LGPD, que traz o rol de bases legais para o tratamento de dados
pessoais sensíveis. Posteriormente, será aprofundado estudo a respeito do trata-
mento de dados sensíveis de crianças e adolescentes, levando-se em consideração
a sua especial condição de pessoa em desenvolvimento, que deve ser tutelada de
forma integral e com base em seu melhor interesse.
No capítulo 04, busca-se nalizar o estudo funcional dos dados sensíveis, por
meio da análise de questões práticas relativas à segurança, aos cuidados especí-
cos e às boas práticas no tratamento de tais informações. Será oferecida especial
ênfase à lógica do privacy by design em to do o ciclo de tratamento de dados e ao
relatório de impacto à proteção de dados pessoais, documento relevante, e por
vezes fundamental, em determinados tratamentos realizados por sujeitos públicos
e privados que envolverem dados sensíveis. No tema da gestão de riscos, serão
abordadas algumas questões de ordem técnica – ainda que a presente tese se pro-
ponha a ser um texto integralmente jurídico –, diante da compreensão de que a
temática necessita de uma aplicação de recursos multidisciplinares. Após, serão
desenvolvidas algumas orientações com base em guias da Autoridade Nacional
de Proteção de Dados (ANPD) para a mitigação de incidentes de segurança,
especialmente envolvendo dados sensíveis. Ao nal, o estudo será dirigido aos
artigos da LGPD referentes ao término do tratamento de dados e à conservação
de informações pessoais sensíveis.
O livro foi estruturado, portanto, em quatro capítulos, além da introdução e
das considerações nais, e visa a representar um manual com abordagem teórica
e prática acerca da qualicação, do tratamento e das boas práticas aplicáveis aos
dados pessoais sensíveis. Para a pesquisa, foram utilizados como fontes legislações
nacionais, especialmente a LGPD, o Regulamento geral europeu de proteção de
dados e doutrinas nacional e estrangeira pertinentes à temática desenvolvida.
Julgados nacionais relevantes foram apresentados, quando adequados à discussão
em pauta. Em relação à metodologia empregada, utilizou-se como referencial o
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direito civil-constitucional,4 o qual preconiza que o intérprete deve permanen-
temente reler todo o sistema do Código e das leis especiais à luz da Constituição
Federal, de forma a obter a máxima realização dos valores constitucionais na
seara das relações privadas e, consequentemente, respostas mais adequadas às
escolhas de fundo da sociedade contemporânea.
4. PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

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