Introdução
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INTRODUÇÃO
Os dados contam histórias sobre nós: indivíduos, grupos e sociedades.
Quanto mais dados pessoais são tratados e tecnologias sosticadas empregadas,
mais pers são criados e análises e predições realizadas. A partir de informações
pessoais é possível conhecer hábitos, comportamentos, gostos, preferências,
ascendência, estado de saúde e crenças de uma pessoa natural. Ao longo do
tempo, a qualidade e a precisão das análises vêm sendo aperfeiçoadas, havendo,
inclusive, a utilização de complexas estruturas de inteligência articial por agentes
públicos e privados.
Na era da informação, o corpo não se resume ao aspecto físico e material-
mente visível, mas abrange também o conjunto de dados pessoais sobre o indiví-
duo, formando o que foi denominado por Stefano Rodotà1 de “corpo eletrônico”.
Ao desenvolver o referido conceito, o jurista italiano realçou a importância da
proteção de dados pessoais para o exercício da cidadania e como instrumento
contra a expansão do monitoramento estatal e o uso indiscriminado de dados
por instituições de diversos segmentos.
Dados pessoais são continuamente tratados nas mais variadas relações, seja
em compras em farmácias, na manutenção de pers em mídias sociais, na abertura
de contas em bancos ou por meio de ferramentas de vigilância e reconhecimento
facial. Traços de cada um de nós restam armazenados em inúmeros bancos de
dados, onde nossa identidade é dissecada e desmembrada, onde aparecemos ora
como consumidores, ora como eleitores, devedores, trabalhadores ou usuários
de serviços.2
Daniel Solove3 aponta que as pessoas costumam armar que valorizam
a privacidade, porém as próprias, por vezes, fornecem informações pessoais,
inclusive sensíveis, para obterem pequenos descontos, benefícios e facilidades
em bens e serviços. Os indivíduos expressam preocupação com a privacidade e
a proteção de dados, mas algumas vezes falham em tomar medidas simples e não
1. Cf. RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância – a privacidade hoje. Coord. Maria Celina
Bodin de Moraes. Trad. Danilo Doneda e Luciana Cabral Doneda. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
2. RODOTÀ, Stefano. Salviamo il corpo. Trecho de discurso proferido em conferência sobre “Transfor-
mações do corpo e dignidade da pessoa”, Roma, 04 de maio de 2005. Disponível em:
privacy.it/archivio/rodo20050504.html> Acesso em: 02.02.21
3. SOLOVE, Daniel J. e Myth of the Privacy Paradox. George Washington Law Review 1, 89, jan. 2021.
Disponível em: Acesso em: 02.02.21.
DADOS PESSOAIS SENSÍVEIS • Chiara SpadaCCini de Teffé
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custosas para protegê-las. Esse fenômeno, segundo o autor, é conhecido como o
“paradoxo da privacidade” e impacta profundamente a tutela dos dados pessoais.
Em atividades do cotidiano, muitas vezes, ocorre o fornecimento voluntário ou
a pedido de terceiros de informações pessoais, sem que um efetivo questiona-
mento sobre o porquê da solicitação, a nalidade do tratamento e a política de
tratamento desenvolvida seja realizado.
Conforme o grau de sensibilidade da informação aumenta, maiores são as
possibilidades de seu titular sofrer interferências indevidas em sua liberdade e
tratamentos discriminatórios ilícitos ou abusivos. Por tal razão, além da criação
de uma categoria especial para tutelar determinadas informações pessoais – os
dados sensíveis –, mostrou-se necessário regular de forma mais restrita seu tra-
tamento e instituir instrumentos amplos para a sua proteção.
Nesse sentido, no capítulo 1, busca-se realizar uma análise profunda da
categoria dos dados sensíveis, levando em conta sua relevância, dinamicidade
e função, bem como compreender seus fundamentos. Para tanto, em primeiro
lugar, será analisada a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e os cenários
social e tecnológico que promoveram a sua criação e desenvolvimento. Em
seguida, passa-se para os principais fundamentos para a elaboração de uma
categoria especial de dados pessoais: o livre desenvolvimento da personalidade
e o princípio da não discriminação. Após esse estudo, chega-se à denição, à
qualicação e aos contornos dos dados sensíveis, havendo a análise de tais in-
formações tanto no contexto brasileiro quanto no europeu. No nal do capítulo,
é desenvolvida proposta de proteção ampliada para determinados tratamen-
tos de dados sensíveis, levando-se em conta questões como: características
e vulnerabilidades de seus titulares, conteúdo envolvido e possibilidades de
discriminação ilícita ou abusiva.
No capítulo 2, busca-se desenvolver contribuição acerca das espécies de
dados pessoais sensíveis, analisando-se seus conceitos, conteúdos e quais infor-
mações protegem. Em alguns casos, entender quais dados são, de fato, sensíveis
pode ser uma atividade complexa e depender de questões bastante especícas
acerca do tratamento realizado e da nalidade dos agentes. Análise que se alinha
com o primeiro tema abordado no capítulo: a natureza do rol dos dados sensíveis,
se exemplicativo ou taxativo. Em seguida, passa-se para a análise crítica das es-
pécies de dados sensíveis positivadas no Art. 5º, inciso II, da LGPD, quais sejam:
dados pessoais sensíveis sobre origem étnica ou racial; dados pessoais sensíveis
acerca de crenças e liações, o que inclui informações sobre convicções e opini-
ões políticas, de proteção fundamental especialmente em cenários eleitorais e
de larga polarização política; dados pessoais sensíveis corporais, que englobam
dados genéticos, biométricos e referentes à saúde, havendo especial destaque
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INTRODuÇÃO
para o tratamento dessas informações no cenário de pandemia de COVID-19; e
dados referentes à vida sexual. Por m, serão analisados dados potencialmente
sensíveis, que não foram mencionados expressamente na LGPD como sensíveis,
mas que por sua natureza e possibilidades de uso e inferências merecem especial
atenção e salvaguardas ampliadas.
Após desenvolver a categoria dos dados sensíveis, realçar a sua importância
para o livre desenvolvimento e expressão da pessoa humana e discutir o seu con-
teúdo, no capítulo 03 serão analisadas normas relativas ao tratamento dos dados
pessoais sensíveis e às bases legais aplicáveis a eles. Para tanto, inicialmente, será
realizado estudo acerca das hipóteses de tratamento de dados pessoais na LGPD
e da estrutura de aplicação da referida lei. Em seguida, a atenção será dirigida
ao Artigo 11 da LGPD, que traz o rol de bases legais para o tratamento de dados
pessoais sensíveis. Posteriormente, será aprofundado estudo a respeito do trata-
mento de dados sensíveis de crianças e adolescentes, levando-se em consideração
a sua especial condição de pessoa em desenvolvimento, que deve ser tutelada de
forma integral e com base em seu melhor interesse.
No capítulo 04, busca-se nalizar o estudo funcional dos dados sensíveis, por
meio da análise de questões práticas relativas à segurança, aos cuidados especí-
cos e às boas práticas no tratamento de tais informações. Será oferecida especial
ênfase à lógica do privacy by design em to do o ciclo de tratamento de dados e ao
relatório de impacto à proteção de dados pessoais, documento relevante, e por
vezes fundamental, em determinados tratamentos realizados por sujeitos públicos
e privados que envolverem dados sensíveis. No tema da gestão de riscos, serão
abordadas algumas questões de ordem técnica – ainda que a presente tese se pro-
ponha a ser um texto integralmente jurídico –, diante da compreensão de que a
temática necessita de uma aplicação de recursos multidisciplinares. Após, serão
desenvolvidas algumas orientações com base em guias da Autoridade Nacional
de Proteção de Dados (ANPD) para a mitigação de incidentes de segurança,
especialmente envolvendo dados sensíveis. Ao nal, o estudo será dirigido aos
artigos da LGPD referentes ao término do tratamento de dados e à conservação
de informações pessoais sensíveis.
O livro foi estruturado, portanto, em quatro capítulos, além da introdução e
das considerações nais, e visa a representar um manual com abordagem teórica
e prática acerca da qualicação, do tratamento e das boas práticas aplicáveis aos
dados pessoais sensíveis. Para a pesquisa, foram utilizados como fontes legislações
nacionais, especialmente a LGPD, o Regulamento geral europeu de proteção de
dados e doutrinas nacional e estrangeira pertinentes à temática desenvolvida.
Julgados nacionais relevantes foram apresentados, quando adequados à discussão
em pauta. Em relação à metodologia empregada, utilizou-se como referencial o
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direito civil-constitucional,4 o qual preconiza que o intérprete deve permanen-
temente reler todo o sistema do Código e das leis especiais à luz da Constituição
Federal, de forma a obter a máxima realização dos valores constitucionais na
seara das relações privadas e, consequentemente, respostas mais adequadas às
escolhas de fundo da sociedade contemporânea.
4. PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
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