Estrutura, função e potencialidades expansivas dos instrumentos de autotutela contratual em face do inadimplemento

AutorRaquel Bellini de Oliveira Salles
Ocupação do AutorMestre e Doutora em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Especialista em Direito Civil pela Università degli Studi di Camerino - Itália. Professora de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora. Advogada
Páginas163-374
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CAPÍTULO 3
ESTRUTURA, FUNÇÃO E POTENCIALIDADES
EXPANSIVAS DOS INSTRUMENTOS DE
AUTOTUTELA CONTRATUAL EM FACE DO
INADIMPLEMENTO
Com o objetivo de compreender a operatividade, a vocação expansiva e
as condicionantes da autotutela constitucionalizada no âmbito contratual,
enquanto expressão da autonomia privada, e tomando-se como ponto de partida
a classificação dos instrumentos de autotutela segundo Lina Geri390, serão
primeiramente analisados, em sua estrutura e função, os “remédios” com
função conservativo-cautelar, especialmente as exceções de contrato não
cumprido e a retenção.
3.1 Autotutela contratual com função conservativo-cautelar
3.1.1 As exceções de contrato não cumprido entre antigos e novos contornos:
função, requisitos e amplitude
Não obstante sua formulação latina, a exceptio non adimpleti contractus
não teve origem no direito romano, onde a exceptio doli desempenhava função
similar, porém não restrita aos contratos sinalagmáticos. A figura foi
efetivamente criada pelos canonistas, por força das considerações morais que os
390 A respectiva sistematização dos instrumentos de autotutela, especialmente segundo a função,
foi exposta no primeiro capítulo. Neste trabalho, em lugar da expressão “função
repristinatória”, adota-se “função resolutiva”.
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inspiravam, e pelos pós-glosadores, que a conceberam como espécie de exceção
processual. Posteriormente, Domat e Pothier generalizaram a exceção em
matéria de contratos sinalagmáticos, apesar de não ter sido inserida no Code
uma norma geral a respeito.391 Coube à juriprudência francesa definir, a partir
de disposições esparsas, as condições e os efeitos da exceção. Diversamente, o
Código Civil alemão a estabeleceu em norma expressa, como ilustração do
princípio da boa-fé que deve presidir a execução dos contratos, e especialmente
a execução trato por trato (Erfülung Zug und Zug).392 Na mesma trilha, os
códigos civis italiano e português, seguidos pelo brasileiro, disciplinaram
expressamente a exceção como regra geral aplicável aos contratos bilaterais.
Sabe-se que o descumprimento de uma obrigação pactuada instaura
uma patologia na relação obrigacional, que pode ser enfrentada por meio de
diversos mecanismos, entre eles as garantias. Entre aquelas voltadas à proteção
do crédito, tem-se a garantia geral, representada pelo patrimônio do devedor, e
as garantias especiais, pessoais ou reais, que importam um reforço qualitativo
da massa patrimonial, caracterizadas pela adicionalidade. Ocorre que nenhuma
garantia elimina por completo o risco da inexecução. A exceção de contrato não
cumprido, todavia, ao impedir o sacrifício patrimonial do credor, acaba por
atuar a priori, ao passo que as garantias especiais somente atuam a posteriori,
já na recuperação do crédito.393
É justamente esse modo de atuar, neutralizando os efeitos do
descumprimento da obrigação, que permite atribuir à exceção uma função de
391 TERRÉ, François et al., Droit civil: les obligations, 9. ed., Paris, Dalloz, 2005, p. 624.
392Title 2 / Reciprocal contracts / Section 320 / Defence of unperformed contract
(1) A person who is a party to a reciprocal contract may refuse his part of the performance
until the other party renders consideration, unless he is obliged to perform in advance. If
performance is to be made to more than one person, an individual person may be refused the
part performance due to him until the complete consideration has been rendered. The
provision of section 273 (3) does not apply.
2) If one party has performed in part, consideration may not be refused to the extent that
refusal, in the circumstances, in particular because the part in arrears is relatively trivial,
would be bad faith.” Disponível em:
<http://www.gesetze-im-internet.de/englisch_bgb/englisch_bgb.html#p0686>, acesso em: 07
set. 2018.
393 KHOURI, Paulo R. Roque A., A exceção de contrato não cumprido e a sua relação com a
garantia das obrigações no direito brasileiro, Revista AJURIS, Porto Alegre, vol. 31, n. 94, p.
203-317, jun./2004, p. 305.
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garantia, mas não de uma garantia especial em sentido técnico, por faltar-lhe as
características da adicionalidade e da acessoriedade, mas de uma garantia
indireta, em sentido amplo.394 Além da referida função, a exceção também
desempenha outra, que é a de estimular o “cumprimento integral do
contrato”395, o que significa dizer que, antes de ser um meio de extinção dos
contratos, conclusão a que seu enquadramento sistemático no Capítulo II,
Título V, Livro I do Código Civil poderia equivocadamente levar a crer, a
exceção é instrumento diretamente destinado a defender o credor (o que
justifica o seu enquadramento entre os remédios de autotutela com função
conservativo-cautelar) e, apenas indiretamente, a compelir o devedor a adimplir
a prestação devida. Noutros termos, a exceção consubstancia verdadeiro
“direito a não cumprir” que, muitas vezes, pode ser mais eficaz para o
excipiente e menos prejudicial para o excepto396, revelando-se uma alternativa
aos remédios da execução específica, da resolução e da indenização.
Esta segunda função não é, entretanto, função inarredável da exceção,
pelo que se entende, divergindo de posições em sentido contrário397, que o
remédio é aplicável tanto nas hipóteses de inadimplemento absoluto quanto de
mora. No primeiro caso, a exceção desempenha estritamente a função de defesa
e garantia do credor, com propósito eminentemente conservativo-cautelar, a
394 É a posição de CALVÃO DA SILVA, João, Cumprimento e sanção pecuniária compulsória,
Coimbra, Almedina, 1996, p. 336, de GOMES, Orlando, Obrigações, 11. ed., cit., p. 227, e de
KHOURI, Paulo R. Roque A., A exceção de contrato não cumprido e a sua relação com a
garantia das obrigações no direito brasileiro, cit., p. 306.
395 ABRANTES, João José, A excepção de não cumprimento do contrato no direito civil
português, Coimbra, Almedina, 1986, p. 199.
396 A constatação é de Vitor BUTRUCE, A exceção de contrato não cumprido no direito civil
brasileiro: funções, pressupostos e limites de um “direito a não cumprir”, Dissertação
(Mestrado), Faculdade de Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
p. 213.
397 Nesse sentido, cf. ABRANTES, João José, A excepção de não cumprimento do contrato no
direito civil português, cit., p. 86. Segundo o autor, “para que a exceptio possa actuar,
necessário é que esse incumprimento não seja definitivo, isto é, no molde a impossibilitar a
posterior execução (por a prestação se ter tornado material ou juridicamente impossível ou ter
perdido o interesse para o credor), mas que seja apenas um incumprimento que, atento ao
interesse do credor, não impeça a futura realização da prestação prometid a, porque esta é ainda
possível e o credor continua a ter interesse nela. A excepção apenas pode ser invocada perante
uma situação de incumprimento não definitivo.”

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