Fundamento e admissibilidade da autotutela contratual no ordenamento brasileiro

AutorRaquel Bellini de Oliveira Salles
Ocupação do AutorMestre e Doutora em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Especialista em Direito Civil pela Università degli Studi di Camerino - Itália. Professora de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora. Advogada
Páginas27-101
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CAPÍTULO 1
FUNDAMENTO E ADMISSIBILIDADE DA
AUTOTUTELA CONTRATUAL NO ORDENAMENTO
BRASILEIRO
1.1 A “pós-modernidade” e o movimento de desjudicialização: qual é o
espaço da autonomia privada para a solução dos conflitos contratuais?
A liberdade e a independência eram os pressupostos apriorísticos da
ordem jurídica na concepção constitucional clássica, que permitia a separação
entre o Estado e a sociedade. Na lógica do Estado liberal, tal separação era o
garante da liberdade dos cidadãos, verificando-se um mínimo de intervenção do
poder público na vida privada.
No entanto, as ocorrências históricas marcadas pela industrialização e
pelos movimentos sociais do século XIX e início do século XX, intensificados
pela eclosão da Primeira Guerra Mundial, determinaram profundas alterações
no modelo liberal, revelando a emergência do social na política e levando ao
consequente intervencionismo do Estado, cuja atuação passou a ser vista como
conformadora da sociedade, para atenuar ou corrigir os seus desequilíbrios.
Afirma-se que “o Estado Social acrescentou à dimensão política do Estado
Liberal, calcada na limitação e controle dos poderes políticos e garantias aos
direitos individuais, a dimensão econômica e social, através da limitação e
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controle dos poderes econômicos e sociais privados e a tutela dos mais
fracos”.4
Na esfera privada, logo após a promulgação do Código Civil de 1916, o
Estado legislador primeiramente movimentou-se através de leis
extracodificadas excepcionais para atender às demandas de emergência, sem
abalar os alicerces da dogmática civilística. Posteriormente, passou a atuar
através de leis especiais, paralelas ao direito codificado, destinadas a
disciplinar, sem qualquer caráter emergencial, os novos institutos que surgiam.
Por meio dessa legislação especial instaurou-se um longo período de
intervenção assistencialista, expressão da política legislativa do Welfare State
que se corporificou a partir dos anos 30, com assento na Constituição de 1934,
e que constituiu, no campo obrigacional, o fenômeno do dirigismo contratual.
Enfim, a intensificação do processo intervencionista subtraiu do Código Civil
setores inteiros da atividade privada, disciplinando-os integralmente. Este
movimento veio a ser consagrado pela Constituição de 1988, que inaugurou a
“era dos estatutos”, após o que o Código Civil perdeu definitivamente o seu
papel de eixo central do direito privado, tendo sido deslocada para a
Constituição a tarefa de conferir unidade sistemática e coerência axiológica a
todo o ordenamento.5
Paralelamente ao intervencionismo legislativo operado desde a década
de 20, o Estado juiz veio aumentando progressivamente o seu controle sobre a
autonomia privada e comumente desempenhando o papel de prover soluções
jurídicas para a conservação, extinção ou revisão de contratos, muitas vezes até
para corrigir abusos e tutelar direitos de contratantes vulneráveis.
Ocorre que, concomitantente ao movimento progressivo de intervenção
estatal nas relações privadas, especialmente pelas vias legislativa e judicial, a
partir da década de 80 do século XX começa-se a falar em “crise” do Estado
Social6, a ponto de se conceber a ideia de um Estado “Pós-Social”7, ante as
4 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da, Função social no direito civil, São Paulo, Atlas,
2007, p. 75.
5 TEPEDINO, Gustavo, Premissas metodológicas para a constitucionalização do direito civil, in
Temas de direito civil, Rio de Janeiro, Renovar, 2004, p. 4 e ss.
6 De fato, como observaram GOMES, Orlando e VARELA, Antunes, Direito econômico, São
Paulo, Saraiva, 1977, p. 164, “tanto se ampliaram e diversificaram as tarefas do Estado
moderno que já se indaga se não temos Estado em demasia, em excesso, em sobejidão.”
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notórias limitações do Estado do Bem-Estar ou Estado-Providência para
responder às demandas deflagradas pela complexidade sócio-cultural, pela
dinâmica do mercado, pela celeridade das transações, pela globalização e pela
internacionalização, informatização e massificação das relações, que
caracterizam o contexto da “pós-modernidade”8, no sentido assim sintetizado
por Cláudia Lima Marques:
(Pós modernidade) é uma tentativa de descrever o grande
ceticismo, o fim do racionalismo, o vazio teórico, a
insegurança jurídica que se observam efetivamente na
sociedade, no modelo de Estado, nas formas de economia,
na ciência, nos princípios e nos valores de nossos povos nos
dias atuais. Os pensadores europeus estão a denominar este
momento de rompimento (Umbruch), de fim de uma era e de
início de algo novo, ainda não identificado.9
Sob a ótica política e econômica, a apontada descrença no Estado
depreende-se das três fases pelas quais atravessou no curso do século passado,
como descreve Luís Roberto Barroso:
7 ARNAUD, André Jean, O direito entre modernidade e globalização, Trad. Patrice Charles
Wuillaume, Rio de Janeiro, Renovar, 1999. Expressando opinião contrária, afirma Paulo Luiz
Netto LÔBO, Princípios contratuais, in LÔBO, Paulo Luiz Netto et al. (Coord.), A teoria do
contrato e o novo código civil, Recife, Nossa Livraria, 2003, p. 13: “não há, rigorosamente,
Estado pós-social, ao menos sob o ponto de vista jurídico. A crise do Estado social foi aguçada
pela constatação dos limites das receitas públicas para atendime nto das demandas sociais, cada
vez mais crescentes. Portanto, a crise situa-se na dimensão da ordem social insatisfeita
(garantia universal de saúde, educação, segurança, previdência social, assistência aos
desamparados, sobretudo), ou do Estado providência. No que respeita à ordem econômica,
todavia, a crise é muito mais ideológica do que real, pois dirige-se à redução do Estado
empreendedor ou empresário e do garantismo legal. Mas, na medida que o Estado substitui seu
papel de empreendedor para o de regulador da atividade econômica, permanece intacta a
natureza intervencionista da ordem econômica constitucional, ou a ‘mão visível’ do Estado.”
8 O presente trabalho não se propõe enfrentar as controvérsias em torno do termo “pós-
modernidade”, aludido no sentido mencionado por Cláudia Lima Marques com o intuito de
descrever um contexto.
9 MARQUES, Cláudia Lima, A crise científica do direito na pós-modernidade e seus ref lexos na
pesquisa, Revista Cidadania e Justiça, Ano 03, n. 6, Rio de Janeiro, AMB, 1º semestre de
1999, p. 237-248.

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