A lesão pelo inadimplemento

AutorRaquel Bellini de Oliveira Salles
Ocupação do AutorMestre e Doutora em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Especialista em Direito Civil pela Università degli Studi di Camerino - Itália. Professora de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora. Advogada
Páginas103-162
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CAPÍTULO 2
A LESÃO PELO INADIMPLEMENTO
2.1 A releitura da obrigação sob uma perspectiva funcional: o contexto da
lesão pelo inadimplemento
É notório que a dinâmica e complexidade das relações na sociedade
pós-moderna vêm conduzindo a um progressivo agravamento dos riscos
contratuais, entre eles o inadimplemento. Tal realidade impõe à teoria
contratual e ao direito a tarefa de desenvolver em favor do contratante lesado
mecanismos aptos a reforçar a confiança negocial ameaçada, viabilizando a
tutela efetiva de interesses protegidos pelo ordenamento. E, num contexto
econômico-social em que se clama cada vez mais pela efetividade e eficiência
das soluções jurídicas, já não se pode desprezar a utilidade e mesmo a
necessidade de se revigorar e expandir os instrumentos de autotutela para a
prevenção ou reação ao inadimplemento. Justamente por ser o fato gerador de
lesões com maior frequência no âmbito contratual, será empreendida uma
análise desta que é a patologia contratual mais temida, com foco nas
transformações experimentadas pelo direito das obrigações, a fim de que
possam ser melhor contextualizados e compreendidos os respectivos
instrumentos de autotutela na contemporaneidade.
Realizada a transição do Estado Liberal ao Estado Social, rompida a
rígida dicotomia público/privado211, assentada a força normativa dos princípios
211 GIORGIANNI, Michele, O direito privado e suas atuais fronteiras, Revista dos Tribunais,
São Paulo, n. 747, jan. 1988, p. 39.
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constitucionais como garantia da unidade do ordenamento212 e, enfim,
reconhecida a necessidade de se investigar não apenas a estrutura dos institutos
jurídicos, mas sobretudo a sua função213, já não se questiona a
insustentabilidade de um direito obrigacional hermético em seus próprios
dogmas, apartado da realidade social e neutro aos imperativos éticos. Mesmo
este secular ramo do direito, erigido a “santuário”214, não pôde resistir à ação do
tempo e historicizou-se, propondo a obrigação como uma categoria dinâmica,
com valor histórico-relativo215 e atenta à constante dialética entre o social e o
jurídico.216
A conscientização da historicidade do direito obrigacional não significa,
contudo, a sua plena concretização. As transformações vêm sendo pouco a
pouco assimiladas pela doutrina e jurisprudência brasileiras, revelando-se ainda
atual em nossa realidade a advertência de Genaro Carrió, que, em 1966, assim
manifestara sua preocupação:
A teoria geral do direito deve rever urgentemente o próprio
aparato conceitual e também as suas pretensões. Ao invés
de se fechar em um recinto hermético de pré-conceitos (ou
de pré-juízos), os teóricos gerais do direito devem descer à
arena onde os juristas [...] são dia a dia tomados pelos mais
difíceis problemas da nossa sociedade.217
212 TEPEDINO, Gustavo, Normas constitucionais e direito civil na construção unitária do
ordenamento, in SOUZA NETO, Cláudio Pereira de et al. (coord.), A constitucionalização do
direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2007, p.
309.
213 BOBBIO, Norberto, Dalla struttura alla funzione, Roma-Bari, Laterza, 2007.
214 PERLINGIERI, Pietro, Normas constitucionais nas relações privadas, Revista da Faculdade
de Direito da UERJ, Rio de Janeiro, n. 6/7, 1998/1999, p. 67.
215 PERLINGIERI, Pietro, Recenti prospettive nel diritto delle obbligazioni. Le obbligazioni tra
vecchi e nuovi dogmi, Napoli, ESI, 1990, p. 53.
216 VILLELA, João Baptista Villela, Por uma nova teoria dos contratos, Revista Forense, Rio de
Janeiro, vol. 74, jan./mar. 1978, p. 34.
217 CARRIÓ, Genaro, Sul concetto di obbligo giuridico, in Rivista di filosofia, 1966, apud
LOSANO, Mario G., in Prefácio à obra de Norberto BOBBIO, Dalla struttura alla funzione,
cit., p. VII. Tradução livre.
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Centrando-se o foco de análise no conceito de obrigação, o desafio é
sedimentar na prática o que até então já se (re)construiu em teoria, a partir da
concepção de relação obrigacional complexa. Com efeito, se o direito das
obrigações sofre os influxos da sociedade, também a relação obrigacional
sujeita-se às condicionantes e vicissitudes de cada caso concreto, cujo
ordenamento específico deve ser a resultante dos fatos envolvidos e das fontes
normativas incidentes, unificadas pela Constituição.218
Nessa perspectiva, uma releitura da obrigação sob a perspectiva
funcional importa a sua compreensão como relação jurídica. Essa relação,
contudo, não deve ser reduzida à fórmula simplista de mera contraposição entre
a situação jurídica ativa, constituída por poderes, e a passiva, integrada por
deveres e sujeições.219 Tal fórmula relega a segundo plano a função da relação,
atendo-se exclusivamente ao aspecto estrutural, que compreende os sujeitos
(ativo e passivo), o vínculo jurídico e o objeto.220 A relação obrigacional é,
pois, complexa, por também abranger, junto à prestação, deveres de conduta,
direitos potestativos e situações de sujeição, caracterizada assim por vários
vínculos obrigacionais interligados numa unidade funcional.221 Essa unidade é
dada pelo fim que justifica a relação, ao qual se dirige uma série dinâmica de
atos ligados entre si com interdependência, como expressão dos variados
poderes e deveres de ambas as partes, desempenhados em direção ao
adimplemento.222 Em suma, a relação obrigacional pode ser conceituada como
218 TEPEDINO, Gustavo, Normas constitucionais e direito civil na construção unitária do
ordenamento, cit., p. 319.
219 Segundo VARELA, João de Matos Antunes, Das obrigações em geral, vol. I, 10. ed.,
Coimbra, Almedina, 2005, p. 64, “a relação jurídica em geral diz-se una ou simples, quando
compreende o direito subjectivo atribuído a uma pessoa e o dever jurídico ou estado de
sujeição correspondente, que recai sobre a outra.”
220 Como sintetiza TERRA, Aline de Miranda Valverde, Inadimplemento anterior ao termo, Rio
de Janeiro, Renovar, 2009, p. 19, “Sujeito ativo é o credor da prestação principal. Chama-se
sujeito passivo aquele que se obriga a realizar a prestação. Vínculo jurídico é a concreção da
norma jurídica no âmbito da relação estabelecida entre sujeito ativo e sujeito passivo. E o
objeto encerra o elemento em razão do qual a relação se constitui, e sobre o qual recai tanto a
exigência do credor quanto a obrigação do devedor.”
221 LARENZ, Karl, Derecho de obligaciones, Tradução Jaime Santos Briz, t. 1, Madrid,
Editorial Revista de Derecho Privado, 1958, p. 37.
222 COUTO E SILVA, Clóvis do, A obrigação como processo, Rio de Janeiro, Editora FGV,
2006, p. 17.

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