O FCPA como paradigma no combate à corrupção empresarial transnacional

AutorRenato Romero Polillo
Páginas95-145
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CAPÍTULO III
O FCPA COMO PARADIGMA
NO COMBATE À CORRUPÇÃO
EMPRESARIAL TRANSNACIONAL
O Foreign Corrupt Practices Act (FCPA) é uma lei americana pro-
mulgada em 1977 como uma das diversas medidas tomadas em respos-
ta ao caso Watergate, um dos maiores escândalos políticos dos Estados
Unidos da América (EUA) que culminou com a renúncia do então
Presidente Richard Nixon, do Partido Republicano.
As investigações conduzidas pelo Procurador especial do referido
caso sobre as contribuições ilegais por empresas e seus executivos para
a campanha de reeleição de Richard Nixon no ano de 1972 acabaram
por abrir uma verdadeira caixa de Pandora contendo diversos atos sus-
peitos – para dizer o mínimo – praticados por empresas americanas,
incluindo o pagamento de subornos para autoridades de governos es-
trangeiros visando à obtenção de contratos lucrativos.
Contudo, vale lembrar que, naquele momento, o pagamento de
subornos para autoridades públicas estrangeiras não era crime nos EUA
nem em outros países. Pelo contrário: algumas nações, como a Inglaterra
e a Alemanha, chegavam a permitir a dedução nas declarações de impos-
to de renda de subornos pagos no exterior a título de despesas legítimas.
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RENATO ROMERO POLILLO
Nesse contexto, o FCPA foi a primeira lei editada no mundo com
o objetivo de coibir o pagamento de subornos para autoridades de go-
vernos de outros países por empresas e, a despeito de algumas inconsis-
tências, ele ainda representa um inegável avanço no combate interna-
cional à corrupção.
Dada a relevância do FCPA para o presente estudo e o seu im-
pacto nas diversas leis de combate à corrupção editadas em outros países,
como o Brasil, neste capítulo abordaremos o contexto histórico no qual
o FCPA foi inserido no ordenamento jurídico estadunidense, além das
suas principais características e nuances, objetivos, definições, alcance
territorial e os mais recentes casos envolvendo multinacionais brasileiras.
3.1 O histórico legislativo do FCPA
As cortes americanas muitas vezes preferem fazer uso do histórico
legislativo como fonte de orientação do que a própria interpretação da
norma objeto de determinada controvérsia.108 Essa prática consolidada
no Poder Judiciário dos EUA também é adotada em demandas relacio-
nadas à aplicação das regras estipuladas no FCPA.109
Em observância à essa tradição jurídica dos EUA e considerando
que diversos termos e definições previstos no FCPA são vagos e
108 Nesse sentido, destaca-se a decisão proferida pela Suprema Corte dos EUA no caso
Flora v. U.S., 362 U.S. 145 (1960), pela qual a referida Corte afirmou que “[...]
frequentemente o histórico legislativo de uma lei é a mais frutífera fonte de orientação
do que a sua própria interpretação [...]”. Tradução livre para: “[…] frequently the
legislative history of a statute is the most fruitful source of instruction as to its proper
interpretation […].” Disponível em:
court/362/145.html>. Acesso em: 22.12.2018.
109 No caso U.S. v. McLean, 738 F.2d 655, o Tribunal de Apelação para o Quinto Circuito
dos EUA decidiu que: “A nossa tarefa ao interpretar o FCPA ‘é construir a linguagem
de forma a dar efeito à intenção do Congresso’. Dessa forma, nós analisamos primeiramente
a linguagem da legislação e, posteriormente, o seu histórico legislativo [...].” Tradução
livre para: “Our task in interpreting the FCPA ‘is to construe the language so as to give
effect the intent of Congress’. To do so, we look primarily to the language of the statute
and secondarily to its legislative history […].” Disponível em:
com/us-1st-circuit/1467728.html>. Acesso em: 22.12.2018.
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CAPÍTULO III - O FCPA COMO PARADIGMA NO COMBATE...
ambíguos,110 entendemos ser importante realizar uma análise preliminar
do histórico legislativo e da aplicação do FCPA antes de aprofundarmos
o estudo sobre os aspectos do referido estatuto.
Conforme exposto na introdução deste capítulo, o FCPA emergiu
no sistema jurídico estadunidense como reflexo do caso Watergate. Porém,
antes do advento deste escândalo ocorrido em 1972, o qual mudou a
percepção e o combate à corrupção nos EUA (e no mundo), o governo
americano já vinha investigando o pagamento de subornos por empresas
para autoridades de governos estrangeiros com o objetivo de conseguir
vantagens indevidas, tais como a assinatura e a manutenção de contratos.
Durante esse processo, que foi conduzido em conjunto pelo es-
critório do Procurador especial do caso Watergate, pela Securities and
Exchange Commission (SEC) e pelo Comitê do Senado sobre Relações
Internacionais liderado pelo Senador Frank Church (Comitê Church),
o governo permitiu que as companhias eventualmente envolvidas em
pagamento de subornos revelassem a prática de tais ilícitos isentando-as
de qualquer responsabilidade.111
O resultado dessa “consulta” foi extremamente preocupante: mais
de quinhentas empresas americanas, incluindo muitas ranqueadas na
prestigiosa publicação Fortune 500, admitiram ter feito pagamentos
questionáveis ou impróprios em valor superior a US$ 300.000.000,00
(trezentos milhões de dólares norte-americanos) para autoridades de
governos de outros países em troca de algum tipo de benefício.112
110 KHOELER, Mike. The FCPA as an ambiguous statute and the importance of
legislative history. FCPA Professor, 13 fev. 2013. Disponível em:
com/the-fcpa-as-an-ambiguous-statute-and-the-importance-of-legislative-history/>.
Acesso em: 22.12.2018.
111 WILSON, Natasha N. Pushing the limits of jurisdiction over foreign actors under
the Foreign Corrupt Practices Act. Washington University Law Review, vol. 91, n. 4, pp.
1065, 2014. Disponível em:
iss4/6>. Acesso em: 22.12.2018.
112 BIEGELMAN, Martin T.; BIEGELMAN, Daniel R. Foreign Corrupt Practices Act
Compliance Guidebook: protecting your organization from bribery and corruption.
Hoboken (EUA): Wiley, 2010, p. 10.
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RENATO ROMERO POLILLO
No curso da investigação, o Comitê Church também interrogou
representantes de algumas das maiores companhias dos EUA que haviam
admitido ter feito direta ou indiretamente pagamentos questionáveis
tanto para autoridades públicas quanto para partidos políticos de outros
países, a fim de mensurar a gravidade daquele cenário.
Dentre as empresas interrogadas, havia três das maiores multina-
cionais americanas: Gulf Oil, Northrop e Lockheed. A Gulf Oil, por
exemplo, confirmou ter contribuído financeiramente para a campanha
política do Presidente da Coreia do Sul; a Northrop, por sua vez, ad-
mitiu ter feito diversos pagamentos para um general saudita. Por fim, a
Lockheed afirmou ter feito pagamentos para o Primeiro-Ministro do
Japão, Sr. Kakuei Tanaka, para o príncipe holandês Bernhard zur Lippe-
Biesterfeld, que era o Inspetor-Geral das Forças Armadas da Holanda, e
para partidos políticos italianos.113
De modo geral, as empresas americanas tentavam justificar o pa-
gamento de subornos sob a alegação de que elas estariam em grande
desvantagem competitiva caso os pagamentos não fossem feitos, por-
quanto a aludida prática, naquele momento, estaria disseminada em todo
o mundo.
Entretanto, tal alegação não foi capaz de convencer o Congresso.
Nesse sentido, o relatório do Senado n. 94-1031 assinalou que a proi-
bição de pagamento de subornos para autoridades de governos estran-
geiros, na realidade, representaria uma vantagem competitiva para as
empresas americanas, já que as ajudaria a resistir aos pedidos de paga-
mento de propinas com fundamento na legislação, aumentando, em
contrapartida, a sua boa reputação no mercado internacional.114
RYZNAR, Margaret; KORKOR, Samer. “Anti-Bribery Legislation in the United States
and United Kingdom: A Comparative Analysis of Scope and Sentencing”. Missouri Law
Review, vol. 76, n. 2, p. 422, 2011. Disponível em:
edu/cgi/viewcontent.cgi?article=3922&context=mlr>. Acesso em: 22.12.2018.
113 KOEHLER, Mike. The Foreign Corrupt Practice Act in a New Era. Northampton
(EUA): Edward Elgar, 2014, p. 4.
114 EUA. Protecting the Ability of the United States to Trade Abroad: Hearings before the
Subcommittee on International Trade of the Committee on Finance, 94º Congresso, 1975.
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CAPÍTULO III - O FCPA COMO PARADIGMA NO COMBATE...
O mencionado relatório também observou que o pagamento de
subornos para influenciar decisões negociais corroía o sistema da livre ini-
ciativa, pois os negócios não eram direcionados para o fabricante/fornece-
dor mais eficiente, mas, sim, para os mais corruptos. Segundo o relatório,
tal fato acabava desviando recursos que poderiam ser destinados para outras
atividades, reduzindo, por consequência, a eficiência econômica.115
Após vários anos de investigações, o Congresso tomou conheci-
mento de que diversos pagamentos feitos por companhias americanas
eram destinados para uma enorme gama de autoridades públicas estran-
geiras pelas mais diferentes razões, as quais não se limitavam à obtenção
e/ou à manutenção de contratos lucrativos.
Por outro lado, o Congresso também reconheceu as dificuldades
e as complexas condições encontradas no mercado externo e, assim,
decidiu retomar a motivação inicial dos trabalhos, de modo que a legis-
lação focasse um conjunto mais estrito de pagamentos feitos pelas em-
presas dos EUA no exterior. Destarte, o FCPA acabou por ter duas
seções principais: uma que trata diretamente dos atos de corrupção e
pagamento de propinas para autoridades estrangeiras e outra que aborda
questões de contabilidade e registros contábeis.
p. 9. Robert Dorsey, então Presidente do Conselho de Administração da Gulf Corp.,
ao depor perante o Subcomitê de Comércio Internacional do Senado, assim afirmou:
“Vocês podem ajudar tanto a nós como muitas outras companhias multinacionais que
se deparam com esse problema ao editar uma lei que torna ilícita qualquer contribuição
feita por companhias americanas no exterior; Tal legislação tornaria mais fácil resistir
às intensas pressões que são colocadas sobre nós de tempos em tempos.” Tradução livre
para: “You can help us and many other multinational companies which ae confronted
with this problem by enacting legislation which would outlaw any foreign contributions
by an American company. Such a statute on our books would make it easier to resist
the very intense pressures which are place upon us from time to time.” .
115 Segundo dados recentes da Organização das Nações Unidas (ONU), US$ 1 trilhão
são pagos em subornos anualmente em todo o mundo, enquanto outros US$ 2,6 trilhões
são roubados por causa da corrupção. No último Dia Internacional Contra a Corrupção,
cuja data é 9 de dezembro, o secretário-geral da ONU, Sr. António Guterres, afirmou
que a corrupção rouba das sociedades “escolas, hospitais e outros serviços vitais, afasta
investimentos internacionais e tira das nações seus recursos naturais”. Disponível em:
. Acesso em: 22.12.2018.
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O FCPA foi finalmente sancionado em 19 de dezembro 1977
pelo então Presidente Jimmy Carter, que, ao assinar o FCPA, afirmou:
Eu compartilho da crença do Congresso de que suborno é eticamente
repugnante e competitivamente desnecessário. As práticas corruptas
entre corporações e oficiais públicos estrangeiros comprometem a
integridade e estabilidade dos governos e prejudicam nossas relações
com os outros países. As recentes revelações de pagamentos de
subornos no exterior de forma generalizada erodiram a confiança
pública nas nossas instituições básicas.116
3.1.1 O primeiro caso de FCPA da história
Dois anos após a promulgação do FCPA, a Kenny International
foi a primeira empresa americana a ser processada nos EUA por violação
às novas regras de combate ao suborno transnacional previstas no FC-
PA.117 A Kenny International fabricava, vendia e distribuía selos postais
em diversos países, incluindo as Ilhas Cook, um pequeno país compos-
to por um arquipélago de quinze ilhas localizado no Oceano Pacífico.
A despeito de a Ilhas Cook terem uma população relativamente peque-
na, a venda de selos postais para turistas e colecionadores era expressiva,
representando, naquela época, um faturamento no valor de US$ 1 milhão
de dólares norte-americanos, que era divido igualmente entre a Kenny
International e o governo local.
Um representante chamado Sir Albert Henry, então Primeiro-
-Ministro das Ilhas Cook, solicitou à Kenny International o pagamento
116 KHOELER, Mike. The FCPA turns 41. FCPA Professor, 19 dez. 2018. Disponível
em: . Acesso em: 22 dez. 2018.
Tradução livre para: “I share Congress’ belief that bribery is ethically repugnant and
competitively unnecessary. Corrupt practices between corporations and public officials
overseas undermine the integrity and stability of governments and harm our relations
with other countries. Recent revelations of widespread overseas bribery have eroded
public confidence in our basic institutions.”
117 As versões originais dos principais documentos do caso, incluindo a acusação
formulada pelo DOJ e o acordo firmado entre as partes, podem ser acessadas por meio
do site: .
Acesso em: 24.12.2018.
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CAPÍTULO III - O FCPA COMO PARADIGMA NO COMBATE...
de propina para assegurar a renovação do contrato de distribuição de
selos postais firmado entre a Kenny International e o governo das Ilhas
Cook, com o qual a mencionada empresa concordou. A propina acabou
sendo direcionada para o fretamento de uma aeronave para transportar
eleitores de Sir Albert Henry residentes na Nova Zelândia para as Ilhas
Cook, a fim de votarem a favor da reeleição do Primeiro-Ministro.
Em maio de 1978, a revelação do esquema foi feita pelo Superin-
tendente da Polícia das Ilhas Cook, que, ao tomar conhecimento do
pagamento feito pela Kenny International para Sir Albert Henry, entrou
em contato com o consulado norte-americano em Auckland, na Nova
Zelândia, a fim de denunciar o esquema. A informação foi repassada aos
procuradores federais dos EUA, que iniciaram as investigações.
Em 1979, a Kenny International e o seu então Presidente e con-
trolador, Finbar Kenny, foram criminalmente acusados pelo Departa-
mento de Justiça dos EUA (DOJ) por violação às regras de antissuborno
transnacional previstas no FCPA. A companhia declarou-se culpada e
concordou em pagar a quantia de US$ 50.000,00 (cinquenta mil dólares
norte-americanos) a título de multa. Finbar Kenny, por sua vez, con-
cordou em voluntariamente comparecer perante a Corte das Ilhas Cook
e reconhecer a sua culpa no esquema de suborno que resultou na ree-
leição de Sir Albert Henry como Primeiro-Ministro.
Embora Sir Albert Henry tenha sido reeleito, tão logo o esquema
de suborno foi descoberto, a Corte das Ilhas Cook anulou o resultado
da eleição e determinou a remoção do então Primeiro-Ministro do
cargo em razão dos votos ilegais obtidos por meio de suborno.118
3.1.2 A resistência inicial ao FCPA
Anos depois da sua promulgação, o FCPA ainda sofria resistência
das companhias e de setores do governo dos EUA, os quais entendiam
118 BIEGELMAN, Martin T.; BIEGELMAN, Daniel R. Foreign Corrupt Practices Act
Compliance Guidebook: protecting your organization from bribery and corruption.
Hoboken (EUA): Wiley, 2010, p. 17.
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RENATO ROMERO POLILLO
que as empresas americanas deixariam de ser competitivas no mercado
internacional, pois, naquele momento, diversos países aceitavam (para
não dizer que estimulavam) o pagamento de propinas para autoridades
estrangeiras visando à obtenção e manutenção de contratos.
Em 1981, a administração do governo do Presidente Ronald
Reagan assinalou a sua insatisfação em relação ao FCPA e deu início ao
debate acerca da possibilidade de alterar algumas de suas regras, a fim de
alavancar as exportações americanas e acabar com o receio dos empre-
sários de investir no mercado internacional.119
Em março daquele mesmo ano, o diretor de uma das divisões do
General Accounting Office (GAO),120 Donald L. Scantlebury, apresen-
tou ao Senado americano o resultado de um estudo intitulado The Impact
of the Foreign Corrupt Practices Act on U.S. Business,121 que destacava al-
gumas mudanças positivas em relação ao combate à corrupção interna-
cional decorrentes da implementação do FCPA, como a criação de
códigos de conduta pelas empresas e o treinamento de seus empregados.
Por outro lado, o mencionado estudo também indicava (i) a
existência de controvérsia e confusão sobre o que constituiria compliance
em decorrência da ambiguidade constante da redação da lei e (ii) que o
FCPA poderia acarretar a redução das exportações dos EUA, não obstante
119 BEATTY, Jonathan; BOLTE, Gisela; BYRON, Christopher. “Big Profits in Big
Bribery”. Time, 16 mar. 1981. Disponível em:
magazine/article/0,9171,922462,00.html>. Acesso em: 24.12.2018.
120 O General Accounting Office (GAO) foi criado em 1921 com o objetivo de funcionar
como um auditor independente das agências do governo norte-americano e das suas
atividades. Como o GAO se reporta diretamente para o Congresso, é comumente
chamado de “cão de guarda do Congresso” e seu “braço investigativo”. Em 2004, o
seu nome mudou para “Government Accountabilty Office”, contudo, a sua abreviação
“GAO” permaneceu a mesma. É possível afirmar que o GAO tem função similar ao
Tribunal de Contas da União (TCU) no Brasil.
121 EUA. SCANTLEBURY, Donald L. (Diretor de Divisão e Contador-Chefe da
Divisão de Contabilidade e Administração Financeira da GAO). The Impact of the Foreign
Corrupt Practices Act on U.S. Business. Estudo apresentado ao Senado dos EUA, May 20,
1981. Disponível em: . Acesso em:
24.12.2018.
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CAPÍTULO III - O FCPA COMO PARADIGMA NO COMBATE...
ser reconhecidamente o principal mecanismo responsável pela redução
no pagamento de suborno pelas companhias americanas.
Donald L. Scantlebury concluiu a sua apresentação ao Senado
afirmando que “sem um efetivo banimento internacional ao pagamen-
to de propinas, empresas não americanas poderiam se beneficiar de uma
vantagem competitiva injusta.”
Essa resistência ao FCPA acabou por se refletir em um reduzido
número de acusações e processos durante o governo de Ronald Reagan,
que deixou de repassar recursos suficientes para a SEC e para o DOJ
para que eles pudessem executar as provisões do FCPA de maneira
efetiva. Como assevera Rachel Brewster,122 esse posicionamento do
governo colocou as companhias em uma estranha situação: embora não
corressem um alto risco de serem punidas por eventual violação ao
FCPA, elas permaneciam sujeitas ao seu regime, incluindo a possibili-
dade de sofrerem com processos embaraçosos, que certamente afetariam
a sua reputação perante a opinião pública (isso sem mencionar o risco
de seus executivos passarem algum tempo na cadeia).
3.1.3 A mudança de postura dos EUA quanto à aplicação do
FCPA
Esse cenário fez com o que o Congresso americano modificasse
o FCPA em 1988 a fim de estender a jurisdição americana para empre-
sas estrangeiras que praticavam atos de corrupção nos EUA. Naquela
mesma oportunidade, os legisladores também pressionaram o Poder Exe-
cutivo a buscar um acordo multilateral de combate à corrupção interna-
cional, indicando a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Econômico (OCDE) como o fórum mais adequado para tanto.123
122 BREWSTER, Rachel. Enforcing the FCPA: International Resonance and Domestic
Strategy. Virginia Law Review, vol. 103, n. 8, p. 1629-1630, dez. 2017. Disponível em:
international-resonance-and-domestic-strategy.pdf>. Acesso em: 24.12.2018.
123 BREWSTER, Rachel. Enforcing the FCPA: International Resonance and Domestic
Strategy. Virginia Law Review, vol. 103, n. 8, p. 1637, dez. 2017. Disponível em:
104
RENATO ROMERO POLILLO
O Poder Executivo americano (sob a administração de Bill Clin-
ton) passou, então, a se esforçar para tornar o FCPA uma legislação de
alcance global e, como será exposto adiante, os escândalos de corrupção
nas principais economias do mundo acabaram por favorecer as pretensões
dos americanos.
No final da década de 1990, alguns países europeus, como Ale-
manha, Inglaterra e França, passaram a enfrentar sérios problemas de-
correntes de escândalos relacionados à prática de corrupção doméstica
e internacional. Tal fato culminou com uma grande pressão popular para
a criação de mecanismos capazes de combater a corrupção de forma
efetiva, o que, por consequência, abriu caminho para a negociação de
um acordo multilateral perante a OCDE, tal como desejado pelo go-
verno dos EUA.
Embora os governos da Alemanha, Inglaterra e França (assim como
outros) tenham inicialmente relutado em assinar um tratado que vedas-
se o pagamento de subornos a autoridades públicas de outros países em
razão do temor de que suas empresas pudessem perder importantes
contratos de infraestrutura assinados no exterior, a pressão exercida por
seus eleitores aliada ao lobby da Transparência Internacional e da Câma-
ra Internacional de Comércio, cujo líder era a gigante multinacional
americana GE, a Convenção sobre o Combate da Corrupção de Fun-
cionários Públicos Estrangeiros em Transações Internacionais (Conven-
ção da OCDE) acabou sendo assinada em dezembro de 1997 pelo EUA
e por cerca de trinta países, vindo a entrar em vigor no ano de 1999.
Na prática, a Convenção da OCDE acabou por exportar as res-
trições estabelecidas no FCPA para as maiores economias do mundo,
colocando todas em pé de igualdade em termos de competitividade no
mercado internacional.
Em decorrência da Convenção da OCDE, em 1998, o Congres-
so americano alterou pela segunda vez o FCPA visando implantar as
fcpa.stanford.edu/academic-articles/20171201-enforcing-the-fcpa-international-resonance-
and-domestic-strategy.pdf>. Acesso em: 24.12.2018.
105
CAPÍTULO III - O FCPA COMO PARADIGMA NO COMBATE...
novas regras estipuladas naquela Convenção. Tais ajustes resultaram em
uma ampliação da jurisdição dos EUA sobre qualquer ato de suborno
praticado por qualquer empresa estrangeira (fosse ela grande, média ou
pequena) que tivesse algum ponto de contato com o país.
Até a edição das emendas ao FCPA no ano de 1998, a jurisdição
federal nos EUA sobre empresas e indivíduos daquele país era, tradicio-
nalmente, fixada com fundamento no critério territorial, cujo princípio
básico é o uso dos correios ou de qualquer outro meio ou organismo
governamental de comércio interestadual para o pagamento de propina.124
O elemento interestadual previsto na lei é interpretado de forma ampla
pelas cortes,125 sendo facilmente satisfeito quando o ato for praticado
mediante a utilização de correio, e-mails, transmissões por computado-
res ou ligações telefônicas, por exemplo.
A partir de 1998, as emendas ao FCPA criaram uma jurisdição
alternativa com base no princípio da nacionalidade. Assim, as companhias
de capital aberto com valores mobiliários registrados na SEC (issuers) e
cidadãos e empresas dos EUA (domestic concerns), cujas definições serão
analisadas a seguir, passaram a sujeitar-se ao FCPA com fulcro nos prin-
cípios de territorialidade e nacionalidade.
Dessa forma, segundo o princípio da nacionalidade inserido no
FCPA em 1998, os pagamentos de subornos feitos por cidadãos e/ou
empresas dos EUA no exterior passaram a ser considerados atos ilícitos
passivos de serem investigados e processados em consonâncias com as
normas do FCPA mesmo sem a existência do elemento interestadual.
Essa importante mudança legislativa representou um grande avanço
no combate à corrupção tanto no âmbito doméstico quanto internacional.
124 EUA. Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), 15 U.S.C. § 78dd-1(a), -2(a). Há uma
versão em português do FCPA disponível no site do DOJ
sites/default/files/criminal-fraud/legacy/2012/11/14/fcpa-portuguese.pdf>. Acesso
em: 26.12.2018.
125 EUA. Suprema Corte dos EUA, caso Schmuck v. U.S., 489 U.S. 705 (1989).
Disponível em: .
Acesso em: 27.12.2018.
106
RENATO ROMERO POLILLO
Além disso, logo depois das emendas ao FCPA, o governo americano de-
cidiu aumentar os recursos destinados ao DOJ e à SEC para condução de
investigações e aplicação das normas de combate à corrupção transnacional.
O gráfico a seguir, elaborado pela Foreign Corrupt Practices Act Clea-
ringhouse (FCPAC) da Universidade Stanford,126 demonstra como a mudan-
ça de postura do governo americano a partir de 1999 passou a surtir efeito
em 2001127 com um aumento exponencial de investigações e processos
ajuizados pelo DOJ e pela SEC com base nas regras do FCPA. Confira-se:
GRÁFICO 1
Análise do número de medidas
126 Foreign Corrupt Practices Act Clearinghouse (FCPAC). Disponível em:
stanford.edu/statistics-analytics.html?tab=1>. Acesso em: 21.06.2020.
127 Conforme bem observa Rachel Brewster, levou algum tempo até que os resultados
das investigações sobre casos de subornos transnacionais pudessem aparecer, seja porque
os malfeitos são praticados no exterior, seja porque as evidências relacionadas a tais
delitos são difíceis de serem encontradas. Dessa forma, o número de processos
relacionados ao FCPA só apresentou um aumento considerável a partir de 2001 como
resultado das várias investigações iniciadas em 1999 tanto pelo DOJ quanto pela SEC
(BREWSTER, Rachel. Enforcing the FCPA: International Resonance and Domestic
Strategy. Virginia Law Review, vol. 103, n. 8, p. 1647-1648, Dec. 2017. Disponível em:
resonance-and-domestic-strategy.pdf>. Acesso em: 24.12.2018).
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CAPÍTULO III - O FCPA COMO PARADIGMA NO COMBATE...
O gráfico mostra que até 2001 o governo americano jamais havia
iniciado mais do que cinco procedimentos no mesmo ano com base no
FCPA. Conforme será demonstrado no decorrer deste capítulo, as in-
vestigações, os processos e, principalmente, os valores das sanções mo-
netárias impostas às companhias por força das violações do FCPA con-
tinuaram a crescer de forma consistente depois de 2001, tendo encon-
trado o seu auge no ano de 2016, quando um total de cinquenta e sete
processos foram iniciados pelo DOJ e pela SEC.
3.2 As hipóteses de incidência do FCPA
O FCPA foi promulgado pelos EUA em 1977 com duas seções
principais. A primeira delas trata de práticas antissuborno, a qual veda
pagamento de subornos a autoridades públicas estrangeiras, partidos
políticos de outros países ou candidatos a cargos governamentais no
exterior com o objetivo de obter ou manter negócios ou assegurar algum
tipo de vantagem indevida. A segunda seção cuida de controle interno
e manutenção de livros e registros contábeis, impondo às companhias
com valores mobiliários listados em bolsas de valores nos EUA a obri-
gação de manter uma escrituração que reflita com clareza e exatidão
todas as suas transações.
As proibições previstas nas seções descritas acima se aplicam a três
diferentes categorias de pessoas físicas ou jurídicas – issuers,128 domestic
concerns129 e foreign company or national130 – que tenham praticado qualquer
ação relacionada ao pagamento de suborno para as pessoas listadas no
parágrafo anterior.
Segundo as regras do FCPA, os issuers são as empresas de capital
aberto com valores mobiliários registrados perante a SEC (por exemplo,
empresas listadas na Bolsa de Valores de Nova Iorque) ou com a obrigação
de apresentar relatórios periódicos para a referida agência. Já domestic
128 EUA. FCPA, U.S.C. 15 § 78dd-1(a).
129 EUA. FCPA, U.S.C. 15 § 78dd-2(a).
130 EUA. FCPA, U.S.C. 15 § 78dd-3(a).
108
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concerns diz respeito a cidadãos, nacionais ou residentes dos EUA, e
qualquer empresa, parceria, associação ou sociedade cujo principal local
de negócios seja os EUA ou que seja organizada de acordo com a
legislação americana. Por fim, foreign company or national refere-se a
empresas estrangeiras ou americanas que praticam qualquer ato
relacionado a pagamento de suborno dentro do território americano,
independentemente se a pessoa (seja ela física ou jurídica) for residente
ou tenha negócios nos EUA.
Conforme exposto, uma das principais inovações introduzidas pe-
las emendas feitas ao FCPA em 1998 foi justamente a adoção do princípio
da nacionalidade, o qual permitiu a expansão da jurisdição dos EUA sobre
pagamentos de propinas feitos fora do seu território por indivíduos ame-
ricanos (pessoas físicas ou jurídicas) independentemente da existência do
elemento interestadual (uso de correios, e-mails, telefones, viagens etc.).
Assim, é possível que tanto as companhias americanas quanto
aquelas com valores mobiliários registrados perante a SEC possam ser
responsabilizadas por atos de corrupção praticados por seus empregados
ou agentes no exterior mesmo na hipótese de nenhuma quantia ter sido
transferida dos EUA e de nenhum cidadão americano ter participado do
pagamento do suborno em outro país.
Ademais, até o ano de 1998, pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras
não estavam sujeitas às regras antissuborno estipuladas no FCPA (com
exceção daquelas que se enquadravam nas categorias de issuers ou domestic
concerns). Contudo, as emendas ao FCPA realizadas naquele ano passaram
a permitir a investigação e o ajuizamento de ações contra qualquer indi-
víduo estrangeiro (pessoa física ou jurídica) que praticasse algum ato rela-
cionado ao pagamento de propina dentro do território americano.
3.3 Os elementos necessários para incidência das regras
antissuborno previstas no FCPA e os seus conceitos-chave
A violação das normas antissuborno previstas no FCPA por algu-
ma das três categorias de pessoas físicas ou jurídicas listadas acima devem,
em suma, conter os seguintes elementos:
109
CAPÍTULO III - O FCPA COMO PARADIGMA NO COMBATE...
a) o agente corruptor praticar o ato ilícito conscientemente e de
forma corrupta. Neste aspecto, vale destacar o entendimento do DOJ
e da SEC expresso no guia às regras do FCPA denominado Resour-
ce Guide to the FCPA131 pelo qual é desnecessária a prova da prática
pelo agente de um ato cometido conscientemente (willfully)132 e com
uma má intenção (bad purpose) para determinar a responsabilidade
civil e criminal de uma empresa, ao passo que a evidência da inten-
ção de corromper ainda deve ser demonstrada;133
b) a intenção ou a existência de pagamento, oferta, autorização ou
promessa de pagamento em dinheiro ou qualquer objeto de valor
diretamente ou por meio de terceiro;
c) o pagamento tenha sido feito para (i) autoridade estrangeira,
(ii) partido político ou oficial do partido no exterior, (iii) candi-
dato a cargo governamental em outro país, (iv) qualquer oficial
de uma organização pública internacional e (v) qualquer outra
131 O Resource Guide to the FCPA foi originalmente publicado em novembro de
2012, sendo atualizado pela primeira vez em julho de 2020. EUA. DOJ e SEC. A
Resource Guide to the U.S. Foreign Corrupt Practices Act, Second Edition, Jul. 2020, p.
13-14. Disponível em: < https://www.justice.gov/criminal-fraud/file/1292051/
download>. Acesso em: 13.07.2020.
132 O termo “willfully” é de difícil tradução para o português, porquanto o seu significado
se confunde com o termo “intent”, que significa “intenção”. Aparentemente a definição
da palavra “willfully” também não é simples no direito americano, tendo sido construída
pelas cortes ao longo dos anos. Conforme a Suprema Corte dos EUA explicou no caso
Bryan v. U.S., “[...] de forma geral, quando usado no contexto criminal, um ato
consciente (willful act) é aquele praticado com uma má intenção (bad purpose)”. EUA,
Suprema Corte dos EUA, Bryan v. United States, 524 U.S. 184, 191-92 (1998).
Disponível em: .
Acesso em: 27.12.2018.
133 Em 2003, o Tribunal de Apelação para o Segundo Circuito dos EUA, ao decidir o
caso Stichting Ter Behartiging Van de Belangen Van Oudaandeelhouders In Het Kapitaal Van
Saybolt Int’l B.V. v. Schreiber (“Stichting”), entendeu que o réu não é obrigado a ter
conhecimento sobre a violação do FCPA para ser condenado porque o FCPA é uma
lei de general intent. Disponível em:
circuit/1360133.html>. Acesso em: 27.12.2018.
Nos EUA, o termo general intent significa que o autor da ação criminal (no caso do
FCPA, o DOJ) deve provar tão somente que o réu praticou um ato proibido por lei,
sendo irrelevante se ele tinha como objetivo alcançar o resultado obtido por seu ato.
110
RENATO ROMERO POLILLO
pessoa que tenha ciência de que o pagamento da propina será
repassado para alguma das pessoas indicadas acima;
d) o pagamento do suborno tenha sido feito com o propósito de
(i) influenciar um ato praticado pelo agente público ou alguma
decisão por ele emanada, (ii) induzir ação ou omissão do agente
que viole o seu dever legal, (iii) induzir o agente a usar a sua in-
fluência para afetar ou influenciar algum ato ou decisão do gover-
no estrangeiro e (iv) assegurar algum tipo de vantagem indevida
para obter ou manter negócios ou direcionar negócios para qual-
quer outra pessoa.
Devido à ambiguidade de alguns termos previstos no FCPA, os seus
conceitos-chave foram sendo construídos ao longo dos anos, com destaque
para aqueles analisados a seguir.
3.3.1 Oferta, pagamento, promessa de pagar ou autorização
para pagamento e a importância da intenção do agente
corruptor
Não somente o pagamento de suborno torna a empresa ou a
pessoa física sujeita às penalidades estabelecidas no FCPA, mas também
a oferta, promessa ou autorização para o seu pagamento. Em outros
termos, o suborno poderá ser configurado mesmo nas hipóteses nas quais
o seu pagamento não for efetivamente realizado.
Além disso, a violação das provisões antissuborno do FCPA ocor-
re quando a oferta, a promessa ou o pagamento de suborno para uma
autoridade estrangeira é feito corruptamente (corruptly), ou seja, quando
houver a mera intenção do agente corruptor de obter alguma vantagem
indevida. Ao editar o FCPA, o Congresso americano justificou a adoção
do advérbio “corruptamente” para “deixar claro que a oferta, o paga-
mento, a promessa ou a doação deve ser feita com a intenção de induzir
o receptor a abusar de sua posição”.134
134 EUA. House Report n. 95-640, 27 Sept. 1977, p. 4. Disponível em:
justice.gov/sites/default/files/criminal-fraud/legacy/2010/04/11/houseprt-95-640.pdf>.
111
CAPÍTULO III - O FCPA COMO PARADIGMA NO COMBATE...
O Resource Guide to the FCPA reforça o entendimento de que o
legislador decidiu focar apenas na intenção do agente corruptor, pouco
importando o valor envolvido, a ocorrência do efetivo pagamento do
suborno ou a consecução do objetivo pretendido para que a infração ao
FCPA seja configurada.135
Outro caso importante que ajudou na construção do significado
de “corruptamente” previsto no FPCA foi o U.S. v. Liebo,136 pelo qual
o Tribunal de Apelação para o Oitavo Circuito dos EUA confirmou a
seguinte instrução dada ao júri acerca do conceito de “corruptamente”:
[…] a oferta, promessa de pagar, pagamento ou autorização de
pagamento deve ser feito com a intenção de induzir o receptor
a abusar da sua posição ou a influenciar alguém para assim o fazer,
e que um ato é corruptamente praticado se feito de forma vo-
luntária e intencionalmente, e com a má intenção de alcançar um
fim ou um resultado ilícito, ou um fim ou resultado lícito me-
diante o emprego de métodos ou meios ilícitos.137
Acesso em: 26.12.2018. Tradução livre para: “The word “corruptly” is used in order
to make clear that the offer, payment, promise, or gift, must be intended to induce the
recipient to misuse his official position”.
135 De acordo com o Resource Guide to the FCPA, “independentemente do tamanho,
para um presente ou outro pagamento que viole a lei, quem faz o pagamento deve ter
a intenção de corromper – isto é, a intenção de influenciar indevidamente o oficial do
governo” Tradução livre para: “Regardless of size, for a gift or other payment to violate
the statute, the payor must have corrupt intent—that is, the intent to improperly
influence the government official.” EUA. DOJ e SEC. A Resource Guide to the U.S.
Foreign Corrupt Practices Act, Second Edition, Jul. 2020. p. 14. Disponível em:
www.justice.gov/criminal-fraud/file/1292051/download>. Acesso em: 13.07.2020.
136 EUA. Tribunal de Apelação para o Oitavo Circuito dos EUA, U.S. v. Liebo, 923
F.2d 1308 (8th Cir.1991). Disponível em:
files/criminal-fraud/legacy/2012/06/22/1991-01-15-liebor-opinion-eighth-
circuit-%2889-5621%29.pdf>. Acesso em: 27.12.2018.
137 EUA. Tribunal de Apelação para o Oitavo Circuito dos EUA, U.S. v. Liebo, 923
F.2d 1308 (8th Cir.1991). Tradução live para: “[…] the offer, promise to pay, payment
or authorization of payment, must be intended to induce the recipient to misuse
his official position or to influence someone else to do so, and that an act is
‘corruptly’ done if done voluntarily [a]nd intentionally, and with a bad purpose of
112
RENATO ROMERO POLILLO
Dessa forma, a violação ao FCPA não se dá apenas quando hou-
ver a efetiva oferta, promessa de pagamento, pagamento ou autorização
para pagamento de suborno, mas também quando for demonstrada a
intenção do agente corruptor que, agindo de forma voluntária e inten-
cional, induz o receptor a abusar da sua posição a fim de que um resul-
tado ilícito seja alcançado.
3.3.2 A definição de autoridade pública estrangeira
O FCPA define autoridade pública estrangeira como
[...] qualquer dirigente ou funcionário oficial de um governo
estrangeiro ou de qualquer ministério, departamento, órgão ou
organismo governamental do mesmo, ou de uma organização
pública internacional, ou qualquer pessoa agindo em qualidade
oficial para um governo, ministério, departamento, órgão ou
organismo governamental ou em nome destes, ou ainda para uma
organização pública internacional ou em nome destas.138
Como se vê, a definição de autoridade pública estrangeira é am-
pla o suficiente de modo a abarcar funcionários de órgãos do Poder
Executivo, legisladores eleitos e funcionários de empresas estatais, o que
majora ainda mais o alcance do FCPA. Além disso, o DOJ e a SEC
entendem que consultores contratados por agências governamentais de
outros países visando auxiliar na execução de funções oficiais típicas
também devem ser considerados autoridades públicas estrangeiras para
fins de aplicação do FCPA. E os membros de famílias reais e líderes
tribais também se enquadram na referida categoria a depender dos fatos
e das circunstâncias.139
accomplishing either an unlawful end or result, or a lawful end or result by some
unlawful method or means”.
138 EUA. FCPA, U.S.C. 15 § 78dd-1(f)(1)(a).
139 MENDELSOHN, Mark F. Chapter 26: United States. In: MENDELSOHN, Mark
F. (Coord.). The anti-bribery and anti-corruption review. 6ª ed. London: The Law Reviews,
2017, p. 319.
113
CAPÍTULO III - O FCPA COMO PARADIGMA NO COMBATE...
O conceito de organização pública internacional também é pre-
visto no FCPA, que poderá ser qualquer entidade designada como tal
por meio de decreto presidencial, como a ONU ou o Banco Mundial.140
Com base em precedentes judiciais, o DOJ e a SEC141 enumeram
alguns fatores observados tanto pelas mencionadas agências quanto pelas
cortes americanas para definir se uma determinada entidade é um órgão
governamental, com a finalidade de decidir se os seus funcionários seriam
ou não considerados autoridades públicas estrangeiras para fins de apli-
cação do FCPA, como, por exemplo::
a) a designação formal do órgão pelo Estado estrangeiro;
b) o grau de controle do Estado estrangeiro sobre o órgão;
c) a capacidade do Estado estrangeiro de contratar e demitir dire-
tores do órgão;
d) se o lucro obtido pelo órgão é direcionado diretamente para as
contas do governo;
e) se o órgão detém o monopólio sobre a função por ele desem-
penhada as circunstâncias relacionadas à criação da entidade; e
f) a percepção geral de que a entidade está executando funções de
natureza pública.
Conforme será discutido adiante, a análise do conceito de
autoridade pública estrangeira, notadamente a questão relacionada
aos funcionários de empresas estatais, é essencial para a compreensão
das investigações conduzidas pelo DOJ e pela SEC sobre os atos
ilícitos praticados pela Petrobras (e por seus funcionários) e pelas
multinacionais brasileiras e estrangeiras implicadas na Operação Lava
Jato, que acabaram por culminar com sanções monetárias e acordos
milionários devido a violações ao FCPA.142
140 EUA. FCPA, U.S.C. 15 § 78dd-1(f)(1)(b)(i)(ii).
141 EUA. DOJ e SEC. A Resource Guide to the U.S. Foreign Corrupt Practices Act, Second
Edition, Jul. 2020. p. 20. Disponível em:
file/1292051/download>. Acesso em: 13.07.2020..
142 Conforme ranking elaborado pela FCPA da Universidade Stanford, a Petrobras lidera
114
RENATO ROMERO POLILLO
No caso U.S. v. Esquenazi,143 o Tribunal de Apelação para o
Décimo Primeiro Circuito dos EUA estabeleceu uma lista não
exaustiva de elementos que devem ser avaliados separadamente para
verificar se um governo controla uma entidade144 e se a entidade
executa alguma função que o governo trata como se dele fosse. No
mencionado caso, o DOJ alegou que executivos de uma empresa
com sede na Flórida usaram intermediários para fazer pagamento de
quase US$ 1.000.000,00 (um milhão de dólares norte-americanos)
para funcionários de uma empresa de telecomunicações no Haiti
chamada Teleco em troca de taxas mais baixas e outras vantagens
negociais. A corte entendeu que a Teleco seria um “instrumento”
do governo haitiano, na medida em que era “uma entidade contro-
lada pelo governo de um país estrangeiro que executa uma função
que o governo controlador trata como se dele fosse.”145
3.3.3 A definição de “coisa de valor” e a restrição a
presentes, viagens, refeições e entretenimento
O FCPA proíbe a oferta, o pagamento ou a promessa de paga-
mento de suborno em dinheiro ou mediante a entrega de qualquer
a lista dentre as maiores sanções financeiras impostas a uma companhia por violação ao
FCPA com o expressivo montante de US$ 1.104.113.797 (um bilhão, cento e quatro
milhões, cento e treze mil e setecentos e noventa e sete dólares norte-americanos). Disponível
em: . Acesso em: 26.12.2018.
143 EUA. Tribunal de Apelação para o Décimo Primeiro Circuito dos EUA, U.S. v.
Esquenazi, 752 F.3d 912 (2014). Disponível em:
11th-circuit/1666851.html>. Acesso em: 27.12. 2018.
144 EUA. Tribunal de Apelação para o Décimo Primeiro Circuito dos EUA, U.S. v. Esquenazi,
752 F.3d 912 (2014). “To decide if the government “controls” an entity, courts and juries
should look to the foreign government’s formal designation of that entity; whether the
government has a majority interest in the entity; the government’s ability to hire and fire
the entity’s principals; the extent to which the entity’s profits, if any, go directly into the
governmental fisc, and, by the same token, the extent to which the government funds the
entity if it fails to break even; and the length of time these indicia have existed.”
145 EUA, Tribunal de Apelação para o Décimo Primeiro Circuito dos EUA, U.S. v.
Esquenazi, 752 F.3d 912 (2014). Tradução livre para: “An instrumentality under section
78dd–2(h)(2)(A) of the FCPA is an entity controlled by the government of a foreign
country that performs a function the controlling government treats as its own.”
115
CAPÍTULO III - O FCPA COMO PARADIGMA NO COMBATE...
coisa de valor. A despeito de a lei não definir o que seria “coisa de valor”,
a jurisprudência consolidou o entendimento de que esta definição abran-
ge qualquer bem equivalente a dinheiro, assim como outras formas de
incentivo que tenham algum tipo de valor, tais como viagens, joias,
carros, entretenimento, contratação de parentes etc. Robert W. Tarun146
observa que as cortes americanas, ao decidirem ações relacionadas à
prática de corrupção doméstica, interpretam o termo “coisa de valor”
de forma ampla, englobando tanto bens tangíveis quanto intangíveis,
por exemplo, informação, depoimento de testemunha, bolsa de estudos
e equipamentos esportivos.
Outra questão relevante e atual diz respeito à entrega de presentes
e pagamentos de viagens, refeições e entretenimento para autoridades
públicas estrangeiras, na medida em que o FCPA não estabelece um
valor mínimo ou ao menos um padrão para despesas relacionadas a tais
itens. Dessa forma, o Resource Guide to the FCPA elaborado pelo DOJ e
pela SEC é um valioso instrumento para aferir se a entrega de presentes
ou o pagamento de viagens, refeições e entretenimento poderia confi-
gurar alguma infração ao FCPA.
Segundo o mencionado guia, a entrega de um presente simbólico
ou uma pequena lembrança é considerada uma forma apropriada de
demonstração de estima e gratidão dentro do meio empresarial. Algumas
características acerca de uma entrega adequada de presente por uma
empresa à autoridade estrangeira se verificam quando ele é dado de
forma aberta e transparente, com o objetivo de refletir estima e gratidão,
além de ser devidamente registrado nos livros da empresa e autorizado
pela lei do país ao qual a autoridade está vinculada.147
Além disso, é pouco provável que uma autoridade estrangeira seja
influenciada por itens de valor simbólico, como despesas com táxi,
146 TARUN, Robert W. The foreign corrupt practices act handbook: a practical guide for
multinational general counsel, transnational lawyers, and white-collar criminal
practitioners. Chicago (EUA): ABA Publishing, 2010, p. 10.
147 EUA. DOJ e SEC. A Resource Guide to the U.S. Foreign Corrupt Practices Act, Second
Edition, Jul. 2020. p. 14. Disponível em: < https://www.justice.gov/criminal-fraud/
file/1292051/download>. Acesso em: 13.07.2020..
116
RENATO ROMERO POLILLO
refeições e entretenimento dentro do padrão médio. Naturalmente,
presentes extravagantes, como carros, casacos de pele e outros itens de
luxo acabam por chamar a atenção das agências americanas, pois quan-
to mais caro o presente, maior a probabilidade de ele ter sido dado com
uma má intenção (bad purpose).
Nesse contexto, Mark F. Mendelsohn148 observa que, indepen-
dentemente do valor do presente dado pela companhia, o que é, de
fato, levado em consideração pelas agências americanas para aferir a
legalidade da entrega do presente é justamente a intenção por trás da
sua entrega pela companhia. Dessa forma, mesmo os presentes de
valor simbólico podem justificar a tomada de medidas pelo DOJ e
pela SEC com base no FCPA desde que tenham sido doados com a
intenção de influenciar a tomada de decisão da autoridade estrangei-
ra receptora.
Assim, é possível afirmar que a natureza, o valor e a transparência
de um presente são os elementos determinantes para as agências defini-
rem se a sua entrega teve uma motivação corrupta ou não. As companhias
sujeitas ao FCPA devem, portanto, considerar alguns fatores para avaliar
se um presente é adequado ou não segundo as regras da mencionada
legislação, tais como, (i) se o presente é apropriado dentro do meio
empresarial; (ii) se o receptor do presente se sentiria constrangido na
hipótese de o presente ser publicamente declarado; (iii) se o valor do
presente é excessivo, o que poderia ser interpretado como capaz de
influenciar a autoridade estrangeira; (iv) se o presente será entregue de
forma aberta e transparente à autoridade estrangeira etc.
No tocante ao pagamento de despesas relacionadas a viagens, hos-
pedagem e entretenimento para autoridades públicas estrangeiras, o FCPA
expressamente autoriza o seu pagamento desde que elas sejam (i) razoáveis,
autênticas e diretamente relacionadas com certas atividades de marketing
(por exemplo, promoção, demonstração ou explicação de produtos e
148 MENDELSOHN, Mark F. Chapter 26: United States. In: MENDELSOHN, Mark
F. (Coord.). The anti-bribery and anti-corruption review, 6ª ed. London: The Law Reviews,
2017, p. 320.
117
CAPÍTULO III - O FCPA COMO PARADIGMA NO COMBATE...
serviços) ou com a assinatura do contrato com o governo estrangeiro; e
(ii) consideradas legais no país de origem da autoridade estrangeira.149
3.3.4 O exame do business purpose
Uma das novidades introduzidas no FCPA por meio das emendas
editadas em 1998 refere-se aos pagamentos realizados por empresas para
autoridades estrangeiras com a intenção de assegurar “qualquer vantagem
indevida” na obtenção ou manutenção de algum negócio. Como essa
linguagem não é clara o suficiente para indicar qual conduta se enqua-
draria na hipótese descrita na lei, foi criado o business purpose test (“exa-
me do propósito negocial”) para avaliar a licitude do pagamento.
Esse exame é interpretado de maneira abrangente de modo a
incluir não somente subornos pagos por empresas para autoridades es-
trangeiras com o objetivo de obter ou manter contratos, mas também
aqueles pagos com o objetivo de ganhar alguma vantagem competitiva,
como tratamento tributário mais favorável, acesso a informações privi-
legiadas sobre licitações, influência em julgamentos judiciais etc.
O caso U.S. v. Kay,150 julgado pelo Tribunal de Apelação para o
Quinto Circuito dos EUA, tratou do tema relacionado ao business pur-
pose test em uma questão concernente ao pagamento de propina por um
empresário americano para um oficial haitiano para reduzir as exigências
aduaneiras e os impostos incidentes sobre o arroz por ele exportado ao
Haiti. A mencionada corte entendeu que o pagamento de propina para
autoridades estrangeiras não precisa estar diretamente relacionado com
a obtenção de um contrato, pois os pagamentos de suborno para fun-
cionários da aduana ou da fazenda podem, por exemplo, resultar em
uma vantagem desleal de uma empresa sobre outras com o objetivo de
manter negócios, o que caracteriza violação ao FCPA.
149 EUA. FCPA, U.S.C. 15 § 78dd-1(c)(1) e (2), § 78dd-2(c)(1) e (2) e § 78dd-3(c)
(1) e (2).
150 EUA. Tribunal de Apelação para o Quinto Circuito dos EUA, U.S. v. Kay, 513
F.3d 461, 2004. Disponível em:
html>. Acesso em: 28.12.2018.
118
RENATO ROMERO POLILLO
3.4 As defesas afirmativas previstas no FCPA
O direito processual americano prevê a chamada affirmative defen-
se (“defesa afirmativa”), que, segundo Toni M. Fine,151 “é qualquer base
de defesa em que os argumentos do reclamado prevalecem, mesmo que
as alegações apresentadas pelo reclamante tenham fundamento.” Na
prática, pode-se afirmar que a defesa afirmativa trata de uma exclusão
de culpabilidade.
No contexto do FCPA, a defesa afirmativa acarreta a inversão do
ônus da prova, pela qual é transferido ao réu o ônus de demonstrar a
licitude de eventuais pagamentos feitos à autoridade pública estrangeira
com base nas seguintes provas:
a) os pagamentos efetuados se referem a despesas razoáveis (em
termos de valor e de item) e autênticas, diretamente relacionadas
com promoções, demonstração ou explicação de produtos e ser-
viços ou à assinatura ou execução de um contrato com um go-
verno de outro país; ou
b) a legislação escrita do país ao qual a autoridade estrangeira está
vinculada expressamente permite que a autoridade receba paga-
mentos feitos por empresas.
Essas duas defesas afirmativas previstas no FCPA são alvo de crí-
tica pela doutrina, na medida em que limitam sobremaneira a produção
das provas pelo acusado de violação ao FCPA.
Conforme assinala Kyle P. Sheahen,152 a redação da lei não deixa
claro como o réu poderá provar que o pagamento das despesas indicados
no item (a) acima foi feito de boa-fé e sem a intenção de corromper o
oficial estrangeiro, tendo em vista que basta ao DOJ e à SEC alegar que
151 FINE, Toni M. Introdução ao sistema jurídico anglo-americano. São Paulo: Ed. WMF
Martins Fontes, 2011, p. 102.
152 SHEAHEN, Kyle P. I´m not going to Disneyland: illusory affirmative defenses under
the Foreign Corrupt Practices Act. Wisconsin International Law Journal, vol. 28, n. 3,
p. 478, 2010.
119
CAPÍTULO III - O FCPA COMO PARADIGMA NO COMBATE...
os pagamentos foram feitos “corruptamente” para a defesa afirmativa
cair por terra.
Em relação à obrigatoriedade de o acusado ter que provar que a
legislação escrita do país onde o pagamento foi realizado expressamente
autoriza o funcionário público estrangeiro a receber determinada quan-
tia, tanto a doutrina quanto o próprio governo americano153 entendem
que tal prova é praticamente impossível. Pode-se até afirmar que se
trata de verdadeira “prova diabólica”.
3.5 Os pagamentos de facilitação
O FCPA admite uma exceção à proibição de pagamento de su-
bornos para autoridades públicas estrangeiras desde que a quantia seja
pequena e tenha como objetivo a execução de ações governamentais
não discricionárias de rotina. Em outras palavras, as empresas poderão
fazer pagamentos para acelerar ações que o funcionário público já é
obrigado a executar rotineiramente e sem qualquer discricionariedade.
Esses tipos de pagamentos são denominados “pagamentos de facilitação”
(facilitating payments) e podem ser destinados para expedição de vistos e
licenças e prestação de serviços públicos, como água e energia. O paga-
mento não poderá influenciar qualquer tomada de decisão pela autori-
dade estrangeira, como a assinatura de um novo contrato ou a conti-
nuação de um negócio com o agente corruptor.
Essa exceção prevista no FCPA é interpretada de forma muito
restrita pelas agências americanas e representa uma raridade nas principais
legislações internacionais de combate à corrupção, sendo, inclusive,
153 Nesse sentido, o próprio Departamento de Estado dos EUA expressamente assinala
a dificuldade de demonstrar que a lei escrita de outro país considera o pagamento lícito.
Observe-se: “Whether a payment was lawful under the written laws of the foreign
country may be difficult to determine. You should consider seeking the advice of
counsel or utilizing the Department of Justice’s Foreign Corrupt Practices Act Opinion
Procedure when faced with an issue of the legality of such a payment.” EUA, US
Department of State. Fighting Global Corruption: Business Risk Management, 2001,
p. 26. Disponível em:
corruption.pdf>. Acesso em: 28.12.2018.
120
RENATO ROMERO POLILLO
objeto de crítica pela OCDE. No seu relatório de combate à corrupção
internacional publicado em novembro de 2009, a OCDE recomendou
que os seus países-membros tomassem as medidas necessárias para desen-
corajar as empresas a realizarem pagamentos de facilitação. A OCDE
ainda ressalvou que este tipo pagamento tem um efeito corrosivo nas
economias e frequentemente são considerados ilícitos nos países onde eles
são efetuados.154 Dessa forma, as companhias sujeitas ao regime do FCPA
têm atuado com extrema cautela em relação aos pagamentos de facilitação,
apenas autorizando o seu pagamento após consultar os seus advogados.
3.6 A responsabilidade civil, criminal e administrativa
Tanto as pessoas jurídicas quanto físicas respondem civil e crimi-
nalmente por eventual violação às regras do FCPA. Na esfera penal, a
responsabilidade é subjetiva, sendo, portanto, mandatória a comprovação
da culpa ou do dolo do acusado. Em contrapartida, na esfera cível, é pos-
sível afirmar que a responsabilidade é objetiva, devendo a agência demons-
trar o nexo causal entre a conduta do agente e o resultado obtido.
O DOJ e a SEC podem iniciar e conduzir conjunta ou separada-
mente investigações relacionadas a potenciais infrações ao FCPA e têm
aumentado constantemente os seus recursos e esforços para a aplicação
da lei. No entanto, as referidas agências têm competências distintas:
enquanto o DOJ é o órgão governamental competente para ajuizamen-
to das ações penais contra empresas e indivíduos, a SEC é responsável
pelas ações cíveis contra empresas com valores mobiliários registrados
nos EUA e seus diretores, funcionários, acionistas e agentes.
3.6.1 As ações penais
Nas ações penais, é imprescindível que o DOJ demonstre cada
elemento da alegada ofensa ao FCPA praticada pelo acusado “além de
154 OCDE. Recommendation of the Council for Further Combating Bribery of Foreign Public
Officials in International Business Transactions, Nov. 26, 2009. Disponível em:
www.oecd.org/daf/anti-bribery/44176910.pdf>. Acesso em: 28.12.2018.
121
CAPÍTULO III - O FCPA COMO PARADIGMA NO COMBATE...
uma dúvida razoável” (beyond a reasonable doubt). Conforme ensina Toni
M. Fine,155 o critério do beyond a reasonable doubt é mais rígido do que
aqueles aplicados nos casos civis, porquanto o governo deve “compro-
var que não existe nenhuma ‘dúvida razoável’ acerca da culpa do acu-
sado quanto ao cometimento do crime”.
A jurisprudência brasileira, aos poucos, vem adotando este enten-
dimento típico do direito anglo-saxônico, consoante se verifica nas duas
ações de competência originárias do Supremo Tribunal Federal AP n.
521/MT156 e AP n. 580/SP,157 tendo a relatora Ministra Rosa Weber
decidido nesta última ação que:
a presunção de inocência, princípio cardeal no processo criminal,
é tanto uma regra de prova como um escudo contra a punição
prematura. Como regra de prova, a formulação mais precisa é o
standard anglo-saxônico no sentido de que a responsabilidade
criminal deve ser provada acima de qualquer dúvida razoável
(proof beyond a reasonable doubt) e que foi consagrado no art. 66,
item 3, do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional.
Nesse contexto, Robert W. Tarun158 assevera que o principal
objetivo da defesa do acusado é demonstrar que o DOJ provavelmente
não conseguirá provar um único elemento da acusação além da dúvida
razoável de modo a dissuadi-lo a prosseguir com a ação criminal.
O mencionado autor ainda pontua a dificuldade enfrentada
pelo DOJ em ter suas provas admitidas perante um júri, seja porque
155 FINE, Toni M. Introdução ao sistema jurídico anglo-americano. São Paulo: Ed. WMF
Martins Fontes, 2011, p. 125.
156 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Penal n. 521/MT, Primeira Turma,
relatora Ministra Rosa Weber, J. 02.12.2014, DJe 06.02.2015.
157 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Penal n. 580/SP, Primeira Turma,
relatora Ministra Rosa Weber, J. 13.12.2016, DJe 26.06.2017.
158 TARUN, Robert W. The foreign corrupt practices act handbook: a practical guide for
multinational general counsel, transnational lawyers, and white-collar criminal
practitioners. Chicago (EUA): ABA Publishing, 2010, p. 211.
122
RENATO ROMERO POLILLO
o fato objeto da investigação muitas vezes ocorre no exterior, seja
porque testemunhas e documentos relevantes muitas vezes não estão
nos EUA.
Outro elemento de difícil prova é a intenção do agente de cor-
romper a autoridade pública estrangeira, razão pela qual é papel da de-
fesa tentar enfraquecer a busca pela intenção corruptiva do agente,
tornando o ônus da prova pelo DOJ ainda mais difícil.
Diante dessa dificuldade em comprovar todos os elementos exi-
gidos pelo FCPA além de qualquer dúvida razoável, o DOJ raramente
leva adiante ações penais contra empresas, preferindo na grande maioria
das vezes celebrar um acordo por meio dos chamados Non-Prosecution
Agreements e Deferred Prosecution Agreements,159 a fim de encerrar a inves-
tigação ou ação penal geralmente mediante o pagamento de certa quan-
tia. Esta prática tornou-se alvo constante de críticas pela doutrina, in-
cluindo Mike Koehler,160 que afirma que a melhor forma de medir o
sucesso na aplicação do FCPA contra empresas é quando o ônus da
prova do DOJ é testado no contexto do contraditório de uma ação
penal, e não por meio de acordos que, na maioria das vezes, não passam
pelo escrutínio do Poder Judiciário.
3.6.2 As ações cíveis
Além de ser o principal órgão regulador do mercado de ações dos
EUA, a SEC é responsável pelas investigações e o ajuizamento de ações
cíveis relacionadas à violação das regras de anticorrupção e das chamadas
provisões contábeis, que são as normas do FCPA concernentes aos con-
troles internos e à manutenção de livros e registros contábeis.
Apesar de não estar expressamente prevista em lei, a construção
jurisprudencial dos EUA consolidou o entendimento de que a SEC tem
159 Esses dois importantes mecanismos de acordo usados pelo DOJ serão analisados
adiante.
160 KOEHLER, Mike. The Foreign Corrupt Practice Act in a New Era. Northampton
(EUA): Edward Elgar, 2014, p. 195.
123
CAPÍTULO III - O FCPA COMO PARADIGMA NO COMBATE...
um ônus da prova “mais leve” porque a maioria das suas ações são cíveis
(e não criminais, tal como ocorre como o DOJ). A doutrina americana
chama esse ônus de preponderance of evidence (“preponderância da prova”),
o que, na prática, representa uma probabilidade maior de vitória da SEC
nas ações cíveis, pois basta que a culpa do réu pareça um pouco mais
provável do que a sua inocência.161
Conforme ensina o advogado americano e ex-diretor assisten-
te da SEC, Russell G. Ryan, a doutrina da preponderância da prova
em favor da SEC surgiu por acaso nos EUA na década de 1980. Em
1981, a Suprema Corte dos EUA, ao julgar o caso Steadman v. SEC,
decidiu que a SEC poderia banir infratores do setor de valores mo-
biliários com base na preponderância das provas. Na mesma época,
dois Tribunais Federais de Apelação concluíram em ações distintas
que o critério de preponderância das provas deveria ser concedido
em favor da SEC quando esta pleiteasse uma ordem judicial objeti-
vando que um infrator cessasse de violar a lei. Desde então, tal en-
tendimento vem sendo aplicado nas ações cíveis ajuizadas pela SEC
com o apoio do Congresso dos EUA, que busca fortalecer os pode-
res da agência.
Nesse contexto, pode-se dizer que a responsabilidade nas ações
cíveis é praticamente objetiva, porquanto a SEC tem um ônus da prova
reduzido por força do critério da preponderância da prova decorrente
do entendimento da jurisprudência dos EUA (e não do FCPA). Assim,
é desnecessário que a SEC demonstre a intenção do réu de praticar o
ato de corrupção, mas tão somente o nexo causal entre a conduta por
ele praticada e o resultado obtido.
Diferentemente do que ocorre com o DOJ, a SEC não precisa
superar o elevado ônus da prova das ações penais, tornando mais fácil o
seu êxito nas ações cíveis e, por consequência, a celebração de acordos
mais vantajosos pela SEC ocorre com maior frequência.
161 RYAN, Russell G. The SEC’s Low Burden of Proof. Wall Street Journal, July 14,
2013. Disponível em:
4578582213820533922?ns=prod/accounts-wsj>. Acesso em: 31.12.2018.
124
RENATO ROMERO POLILLO
3.7 As sanções civis, penais e administrativas
O FCPA é essencialmente uma lei penal cujos infratores – pessoas
físicas e/ou jurídicas – estão sujeitos a sanções penais que podem variar
de aplicação de multas a prisão de acordo com as diretrizes insculpidas
no próprio FCPA e com as orientações previstas no United States Sen-
tencing Guidelines (U.S. Sentencing Guidelines).162
Pessoas físicas que violarem deliberadamente as regras antissubor-
no do FCPA estarão sujeitas ao pagamento de até US$ 250.000,00
(duzentos e cinquenta mil dólares norte-americanos) em multas e/ou
até cinco anos de prisão.163 Aquelas que infringirem as provisões contá-
beis estabelecidas no FCPA poderão sujeitar-se ao pagamento de multa
de US$ 5.000.000,00 (cinco milhões de dólares norte-americanos) e
prisão por até 20 anos.164 Ressalve-se que a lei veda o pagamento ou
reembolso das multas impostas a funcionários, diretores ou agente pela
companhia ao qual ele esteja vinculado.
No tocante às empresas, estas poderão ser multadas em até US$
2.500.000,00 (dois milhões e quinhentos mil dólares norte-americanos)
por cada violação às provisões contábeis do FCPA165 e em até US$
2.000.000,00 (dois milhões de dólares norte-americanos) por violação
às normas antissuborno estabelecidas no FCPA.166
162 Dada a disparidade na fixação das penas por cometimento de crimes federais, em 1984,
o Congresso americano, por meio do Sentencing Reform Act (SRA), criou uma agência
vinculada ao Poder Judiciário denominada U.S. Sentencing Commission. Uma das atribuições
conferidas à U.S. Sentencing Commission foi a elaboração de um guia para as cortes federais
visando à uniformização e à previsibilidade nos cálculos das penas por cometimento de
crimes previstos em leis federais, incluindo o FCPA. Esse guia foi denominado U.S. Sentencing
Guidelines e sua atualização pela SRA é feita anualmente. O DOJ e a SEC seguem as
orientações previstas no U.S. Sentencing Guidelines na edição de todas as suas resoluções,
principalmente, nos acordos firmados com infratores, conforme será exposto adiante.
163 EUA. FCPA, 15 U.S.C. § 78dd-2(g)(2)(A), § 78dd-3(e)(2)(A) e § 78ff(a).
164 EUA. FCPA, 15 U.S.C. § 78ff(c)(2)(A).
165 EUA. FCPA, 15 U.S.C. § 78dd-2(g) e § 78dd-3(e).
166 EUA. FCPA, 15 U.S.C. § 78ff(a) (provisões contábeis) e § 78dd-2(g)(1)(A)
(antissuborno).
125
CAPÍTULO III - O FCPA COMO PARADIGMA NO COMBATE...
Além disso, o Alternative Fines Act167 permite que as cortes federais
possam fixar multas maiores do que aquelas estipuladas no FCPA tanto
para pessoas físicas quanto jurídicas. Segundo o Alternative Fines Act, a
multa poderá ser o dobro do benefício econômico obtido a partir do
pagamento de suborno desde que os fatos que dão ensejo ao aumento
da multa (i) estejam descritos na denúncia e (ii) sejam comprovados além
da dúvida razoável ou tenham sido formalmente admitidos na confissão
de culpa. O Alternative Fines Act é aplicado frequentemente para majorar
as penas máximas estipuladas pelo FCPA.
Em relação às sanções civis, o FCPA estabelece que tanto o DOJ
quanto a SEC, a depender do caso, poderão impor a pessoas físicas ou
jurídicas multas não superiores a US$ 10.000,00 (dez mil dólares) por
cada violação deliberada ao FCPA.168 Em razão dos valores relativamente
modestos de tais multas, o DOJ e a SEC com frequência usam outros
mecanismos para obter montantes ainda maiores, por exemplo, o con-
fisco de lucros ilicitamente obtidos a partir da prática do suborno, o
chamado disgorgement.169
Por fim, o FCPA também prevê que empresas que tenham in-
fringindo as suas normas poderão ser suspensas ou até mesmo impedidas
de contratar com o Governo Federal dos EUA, como o seu Departa-
mento de Defesa. Até mesmo o mero indiciamento por violação ao
FCPA poderá tornar a empresa inelegível para contratar com o governo
americano. Robert W. Tarun170 também assinala que a suspensão de-
cretada por uma agência do governo geralmente se estende para as demais
e que outro potencial efeito colateral é a suspensão ou o banimento da
companhia de capital aberto do mercado de valores mobiliários dos EUA
pela SEC.
167 EUA. “Alternative Fines Act”, 18 U.S.C. § 3571(d). Disponível em:
law.cornell.edu/uscode/text/18/3571#>. Acesso em: 31.12.2018.
168 EUA. FCPA, 15 U.S.C. § 78dd-2(g), § 78dd-3(e) e § 78ff(c).
169 EUA. FCPA, 15 U.S.C. § 78u, § 78u-3.
170 TARUN, Robert W. The foreign corrupt practices act handbook: a practical guide for
multinational general counsel, transnational lawyers, and white-collar criminal
practitioners. Chicago (EUA): ABA Publishing, 2010, p. 28.
126
RENATO ROMERO POLILLO
3.8 Acordos de leniência e o FCPA Corporate Enforcement
Policy
A legislação americana prevê a possibilidade de pessoas jurídicas
celebrarem acordo de leniência com o DOJ e a SEC de modo a reduzir as
penalidades monetárias e, com isso, obter acordos mais favoráveis, incluin-
do o não ajuizamento de ações pelo governo.
Como regra geral, a companhia que pretende fazer jus à celebra-
ção de um acordo de leniência deverá reportar voluntariamente a prá-
tica de violação ao FCPA, ao DOJ e/ou à SEC e tomar as medidas
necessárias para cooperar com as investigações conduzidas pelas agências.
A despeito de o U.S. Sentencing Guidelines e o Resource Guide to the FCPA
estipularem que tais medidas serão consideradas na fixação das penali-
dades impostas à empresa, esses benefícios ainda permanecem obscuros,
sendo objeto de calorosa discussão nos círculos jurídicos e empresariais
dos EUA, conforme assinala Mark Mendelsohn.171
Visando conferir maior clareza e previsibilidade aos acordos de
leniência e, com isso, incentivar as empresas a reportarem espontanea-
mente eventuais ilícitos por elas praticados, em abril de 2016, o DOJ
deu início ao FCPA Pilot Program (“Programa Piloto de FCPA”). O
Programa Piloto de FCPA estabeleceu regras mais transparentes acerca
dos potenciais benefícios que as companhias poderiam obter em troca
de divulgação voluntária, cooperação e remediação.
Em março de 2017, o DOJ prorrogou o programa por um perío-
do indefinido em razão do aumento de divulgações voluntárias pelas
empresas. A título de exemplo, duas dessas divulgações voluntárias
acabaram resultando em declinações do DOJ no ajuizamento de ações
penais (o chamado declination) contra a Linde North America, Inc. e a
CDM Smith, Inc., tendo em vista que ambas as companhias preenche-
ram todos os requisitos estabelecidos no Programa Piloto, incluindo a
171 MENDELSOHN, Mark F. Chapter 26: United States. In: MENDELSOHN, Mark
F. (Coord.). The anti-bribery and anti-corruption review. ed. London: The Law Reviews,
2017, p. 323.
127
CAPÍTULO III - O FCPA COMO PARADIGMA NO COMBATE...
concordância em restituir os lucros que receberam em razão da má
conduta praticada.172
Posteriormente, em novembro de 2017, o DOJ anunciou a im-
plantação definitiva das regras de modo a continuar a promover a prá-
tica de divulgações voluntárias pelas empresas e também a sua coopera-
ção nas investigações e processos relacionados ao FCPA. O DOJ também
fez alguns ajustes a partir do Programa Piloto de FCPA, a fim de definir
de forma ainda mais clara e objetiva quais os requisitos para a concessão
dos benefícios que a divulgação, a cooperação e a remediação podem
resultar. Esta nova política do DOJ passou a ser chamada de FCPA
Corporate Enforcement Policy.173
Por meio dessa política, as empresas poderão gozar de benefícios
relevantes, como, por exemplo, a presunção de que o DOJ declinará de
ajuizar uma ação penal contra a empresa que fizer a divulgação volun-
tária de uma má conduta, cooperar plenamente e remediar a situação de
forma oportuna e imediata.
Na hipótese de existir alguma circunstância agravante, como o
envolvimento da alta administração na prática do ilícito, mas mesmo
assim a companhia atender aos demais requisitos previstos no FCPA
Corporate Enforcement Policy, o DOJ recomenda que o procurador redu-
za em 50% o valor da multa-base prevista no U.S. Sentencing Guidelines.
Caso a empresa deixe de divulgar voluntariamente eventual má
conduta, porém decida cooperar plenamente com o DOJ e remediar a
situação de forma apropriada, o DOJ recomendará uma redução de 25%
do valor da multa-base.
172 Como parte do Programa Piloto de FCPA, o DOJ divulga no seu website uma lista
com as empresas beneficiadas com o declination. Em 26 de dezembro de 2018, data da
última atualização, havia onze empresas beneficiadas, dentre elas, a Linde North America
Inc. e a CDM Smith, Inc. Disponível em:
pilot-program/declinations>. Acesso em: 26.12.2018.
173 EUA. FCPA Corporate Corporate Enforcement Policy, Nov. 2017. Disponível em:
. Acesso em:
31.12.2018.
128
RENATO ROMERO POLILLO
Para usufruir dos benefícios listados no FCPA Corporate Enforcement
Policy, a pessoa jurídica deverá, em suma, (i) reportar voluntariamente ao
DOJ as infrações ao FCPA por ela praticadas e todos os fatos relevantes
que estejam relacionados com a má conduta; (ii) cessar imediatamente o
seu envolvimento na prática dos atos ilícitos; (iii) identificar os demais
envolvidos; (iv) cooperar de forma proativa com as investigações
conduzidas pelo DOJ fornecendo todos os documentos e as informações
relevantes; e (v) remediar de forma adequada e oportuna a situação,
aprimorando os controles internos e o seu programa de compliance.
Por fim, vale observar que o FCPA Corporate Enforcement Policy so-
mente é válido no âmbito do DOJ, uma vez que a SEC até o momento não
editou qualquer instrução neste sentido.
3.9 Outros mecanismos de resolução de violações ao FCPA
3.9.1 O plea bargain
No common law, após a acusação ser recebida, é designada uma
audiência prévia de julgamento usualmente chamada de preliminar
hearing com o objetivo de verificar se há provas suficientes para
julgamento do caso pelo júri. Nesta mesma audiência, é dada a
oportunidade para o acusado se manifestar acerca do teor da denúncia.
Essa resposta do acusado é denominada plea e, em síntese, poderá ser
de três tipos: (i) declaração de culpado (guilty plea); (ii) não culpado
(not guilty plea); ou (iii) quando não assume nem confessa a culpa,
contestando a acusação (contest plea).
Diferentemente do que ocorre no Brasil, a confissão no Direito
Penal americano não é considerada mera prova, sendo, portanto, o
acusado sentenciado imediatamente, sem a necessidade de prosseguir
com a ação penal para perquirir a culpa ou o dolo do agente.
Tradicionalmente a acusação e a defesa nos processos criminais
tentam evitar os altos custos decorrentes de ações penais ajuizadas con-
tra corporações, razão pela qual, antes que o acusado fale uma das três
declarações de plea descritas acima, é possível que a defesa e a acusação
129
CAPÍTULO III - O FCPA COMO PARADIGMA NO COMBATE...
negociem ou “barganhem” um acordo, o chamado plea bargain (“tran-
sação penal”).
Em regra, nos casos relacionados ao FCPA, os plea bargains são
assinados por um procurador do DOJ com base em uma prévia inves-
tigação conduzida por outra agência governamental (geralmente o FBI)
que assinala a existência (ou não) de elementos para oferta da denúncia.
Caso positivo, a agência investigadora também indica se o caso deve ser
resolvido por meio de julgamento ou de acordo. Ressalve-se que as
regras para celebração de acordos previstas no U.S. Sentencing Guidelines
são observadas pelo DOJ durante a sua negociação e assinatura, a des-
peito de inexistir um controle judicial significativo.
Como nos EUA o juiz não tem acesso independente às provas e
aos indícios obtidos pela acusação sobre um caso criminal, ele não tem
como determinar se há provas suficientes contra o acusado, o que dá
ampla margem para negociação do acordo. Em regra, no plea bargain
assunção de dúvida pelo acusado, porém também pode haver uma acu-
sação menos grave, sendo que a maioria dos casos de negociação de
culpa está submetida ao Judiciário.
Ao escolher pela celebração do plea bargain, as empresas evitam os
elevados custos da ação, apesar de ainda terem que arcar com as despe-
sas diretamente atreladas ao acordo (geralmente há um período de pro-
bation, no qual a empresa precisa cumprir certas condições) e com os
custos colaterais decorrentes da assunção de culpa/condenação criminal,
tais como imagem e reputação perante o mercado.
O uso de plea bargains para imposição de sanções às empresas vio-
ladoras do FCPA tornou-se uma prática comum entre os procuradores
e as empresas nos EUA mormente nas hipóteses em que a probabilida-
de de ajuizamento de ação penal é alta e o seu desfecho é incerto.
3.9.2 O Non-Prosecution Agreement e o Deferred Prosecution
Agreement
A partir de 2004, outras duas modalidades de acordo passaram a
ser adotadas com relativa frequência pelo DOJ para resolução de questões
130
RENATO ROMERO POLILLO
atinentes à violação de normas do FCPA: o Non-Prosecution Agreement
(NPA) e o Deferred Prosecution Agreement (DPA). Esses dois institutos
permitem que as companhias firmem acordos sem sofrerem sanções
criminais e, por consequência, os custos colaterais delas decorrentes,
como a proibição de contratar com a Administração Pública. Ao assi-
narem o NPA ou o DPA, as empresas não se declaram culpadas pela
prática de ilícitos tal como ocorre no plea bargain, sendo que ambos os
instrumentos geralmente são firmados antes ou logo no início da ação
penal de modo a evitar os seus elevados custos.
Em contrapartida, por meio da celebração do NPA ou do DPA,
o DOJ concorda que não ajuizará nem prosseguirá com eventual ação
penal se a empresa cumprir as condições previstas no acordo dentro do
prazo convencionado entre as partes. Apesar de o NPA e o DPA terem
a mesma natureza e o mesmo objetivo, ambos têm algumas peculiari-
dades que acabam por diferenciá-los.
No DPA, o DOJ e a empresa celebram um acordo no curso de
uma ação penal já iniciada contra a companhia, pelo qual os termos do
acordo são apresentados ao juiz para homologação174 e o procurador
requer a suspensão do feito por um determinado lapso de tempo até que
a empresa cumpra as condições estabelecidas no DPA. Tão logo isso
ocorra, o DOJ desiste da ação.
Já no NPA, a ação penal sequer é iniciada, pois o acordo firmado
entre o DOJ e a companhia é feito antes mesmo do seu ajuizamento,
sendo que a companhia é liberada de suas obrigações assim que as con-
dições previstas no NPA forem cumpridas.
174 Os DPAs costumam ser homologados judicialmente sem quaisquer alterações.
Aparentemente, a única exceção ocorreu no caso U.S. v. HSBC Bank, no qual o juiz
efetivamente analisou o acordo firmado entre as partes no processo e teceu comentários
pertinentes antes de homologá-lo, determinando, todavia, o monitoramento judicial
sobre a implementação do DPA mediante o envio periódico de relatórios para a corte.
EUA. U.S. v. HSBC Bank USA. Caso 1:12-cr-00763-JG, Sentença, 1 jul. 2013.
Disponível em:
legacy/2015/04/06/HSBC%20Memorandum%20and%20Order%207.1.13.pdf>. Acesso
em: 03.01.2019.
131
CAPÍTULO III - O FCPA COMO PARADIGMA NO COMBATE...
Portanto, a principal diferença entre o DPA e o NPA é que o
último não é submetido ao escrutínio do Poder Judiciário, o que muitas
vezes é alvo de crítica, conforme já discutido na seção 5.6.1.
Recente estudo da FCPAC175 demonstra a larga utilização do plea
bargain, do NPA e do DPA pelo DOJ como formas de resolução de
questões atinentes ao FCPA. Até junho de 2020, haviam sido firmados
275 plea bargains, representando 65,37% de todas as resoluções, e 128
NPAs e DPAs, que representam 30,40% do número de resoluções até
então, consoante se verifica no gráfico abaixo:
GRÁFICO 2
Análise da utilização dos diferentes meios
de acordo à disposição do DOJ
Acreditava-se que o plea bargain cairia em desuso a partir do sur-
gimento do NPA e do DPA como meios de resolução de violações ao
FCPA em 2004, no entanto, um levantamento elaborado pela FCPAC176
atesta um efeito contrário: esses três diferentes mecanismos de acordo
são usados quase que na mesma proporção desde aquele ano, havendo,
aparentemente, certa preferência pelo plea bargain.
175 Foreign Corrupt Practices Act Clearinghouse (FCPAC). Disponível em:
stanford.edu/statistics-analytics.html?tab=6>. Acesso em: 26.12.2018.
176 Foreign Corrupt Practices Act Clearinghouse (FCPAC). Disponível em:
stanford.edu/statistics-analytics.html?tab=6>. Acesso em: 26.12.2018.
132
RENATO ROMERO POLILLO
3.10 Os principais acordos celebrados por infrações ao FCPA
decorrentes da Operação Lava Jato
Em decorrência das várias investigações derivadas da Operação Lava
Jato que trouxeram à tona centenas de crimes de corrupção envolvendo
políticos e multinacionais com operações nos EUA e/ou valores mobiliários
lá registrados, o Brasil naturalmente despertou a atenção do DOJ e da SEC.
Por meio do Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal
firmado entre o EUA e o Brasil,177 as agências americanas (DOJ e SEC)
e o Ministério Público Federal (MPF) passaram a trocar informações
sobre investigações, inquéritos e ações penais em curso nos dois países
com o objetivo de processar as companhias envolvidas na prática de
malfeitos. Essa cooperação bilateral resultou em acordos multimilionários
com grandes multinacionais brasileiras (Petrobras e Odebrecht) e estran-
geiras (SBM Offshore) envolvidas na Operação Lava Jato. Esses acordos
são considerados os maiores da história do FCPA e serão analisados a
seguir à luz daquilo que foi exposto neste capítulo.
3.10.1 O acordo firmado com a Petrobras
Segundo os documentos relacionados ao caso, entre 2004 e 2012,
executivos e administradores da Petrobras, bem como empreiteiras e
fornecedores da companhia, criaram um esquema de pagamento de
propinas e de fraudes em licitações, que, dentre outros lícitos, permiti-
ram que empreiteiras obtivessem e/ou mantivessem contratos com a
Petrobras. Em regra, as empreiteiras pagavam propinas em quantia cor-
respondente a uma pequena porcentagem do valor total dos contratos
assinados com a Petrobras, que era então rateada entre certos executivos,
políticos, partidos políticos e outros indivíduos que facilitaram os paga-
mentos de suborno. Estima-se que aproximadamente US$ 2 bilhões de
dólares norte-americanos foram usados para pagamentos de propinas,
dos quais US$ 1 bilhão foi destinado a políticos e partidos políticos. Tais
pagamentos foram registrados nos livros da Petrobras como despesas
legítimas e ativos da Petrobras.
177 BRASIL. Decreto n. 3.810, de 2 maio 2001.
133
CAPÍTULO III - O FCPA COMO PARADIGMA NO COMBATE...
Em 27 de setembro de 2018, o DOJ anunciou a celebração de
um NPA com a Petrobras, pelo qual a empresa concordou em pagar o
montante de US$ 853.200.000,00 (oitocentos e cinquenta e três milhões
e duzentos mil dólares norte-americanos) a título de multa criminal,
sendo que 10% deste valor será destinado para o DOJ, 10% para a SEC
e 80% para o MPF. A Petrobras também concordou em informar ao
DOJ sobre o status do seu programa de compliance por um período de
três anos. O acordo também menciona a cooperação da Petrobras e as
suas medidas de remediação que teriam justificado a redução das multas
em 25%.178
Quanto ao acordo de natureza administrativa firmado entre a
Petrobras e a SEC, esta emitiu uma ordem chamada cease and desist (“cessar
e desistir”) contra a Petrobras, determinando que esta deixasse de violar
os seus livros e registros contábeis, bem como as provisões de controles
internos do FCPA. Além disso, a Petrobras aceitou pagar o valor de US$
711.000.000,00 (setecentos e onze milhões de dólares norte-americanos)
correspondente aos lucros obtidos ilicitamente (disgorgement), acrescido
de juros no valor de US$ 222.473.797,00 (duzentos e vinte e dois
milhões, quatrocentos e setenta e três mil, setecentos e noventa e sete
dólares norte-americanos). A SEC considerou que tal obrigação foi
satisfeita pela Petrobras mediante o pagamento do acordo firmado com
os seus acionistas nos autos da class action que tramitou perante a corte
federal de Nova Iorque.179
3.10.2 Os acordos firmados com a Odebrecht e com a
Braskem
De acordo com os documentos apresentados pelo DOJ, entre 2001
e 2016, a Odebrecht estava envolvida em um esquema de pagamentos
178 EUA. DOJ. NPA firmado entre o DOJ e a Petrobras, 26 set. 2018. Disponível em:
. Acesso em:
31.12.2018.
179 EUA. SEC. Comunicado à imprensa, 27 set. 2018. Disponível em:
stanford.edu/fcpac/documents/5000/003743.pdf>. Acesso em: 31.12.2018.
134
RENATO ROMERO POLILLO
ilegais para autoridades públicas estrangeiras nos seguintes países: Angola,
Argentina, Brasil, Colômbia, República Dominicana, Equador,
Guatemala, México, Moçambique, Panamá, Peru e Venezuela. A
empresa teria pago propinas para obter contratos em mais de cem projetos
em doze países diferentes. Para facilitar a execução do esquema, a
Odebrecht instalou dentro da companhia uma divisão especial chamada
“Divisão de Operações Estruturadas” que, segundo o DOJ, funcionou
como um verdadeiro departamento de propinas da Odebrecht e das
empresas a ela relacionadas. O DOJ alega que a companhia pagou
aproximadamente US$ 788.000.000,00 (setecentos e oitenta e oito
milhões de dólares norte-americanos) em subornos e obteve um lucro
de US$ 3.336.000.000,00 (três bilhões e trezentos e trinta e seis milhões
de dólares norte-americanos) em decorrência dos contratos obtidos a
partir do pagamento de propinas no período de quinze anos.
Em 16 de dezembro de 2016, o DOJ ajuizou ação perante a cor-
te federal de Nova Iorque alegando que a Odebrecht violou as normas
antissuborno estabelecidas no FCPA.180 Em 21 de dezembro de 2016,
as partes assinaram o plea bargain,181 pelo qual a Odebrecht declarou-se
culpada e concordou em pagar uma multa no valor de US$
2.600.000.000,00 (dois bilhões e seiscentos milhões de dólares norte-a-
mericanos), além de contratar um monitor de compliance independente
pelo período de três anos. O referido montante será repartido entre os
Estados Unidos, o Brasil e a Suíça.
Outro aspecto interessante do acordo é que o valor inicialmente
calculado pelo DOJ a título de multa foi de aproximadamente US$
4.500.000.000,00 (quatro bilhões e quinhentos milhões de dólares norte-
americanos), já descontada a porcentagem de 25% sobre o valor da multa-
base por força da cooperação e da remediação da companhia. Contudo,
180 EUA. DOJ. Denúncia apresentada pelo DOJ contra a Odebrecht perante a corte
federal de Nova Iorque, NY, 6 dez. 2016. Disponível em: < http://fcpa.stanford.edu/
fcpac/documents/4000/003405.pdf>. Acesso em: 31.12.2018.
181 EUA. DOJ. Plea bargain firmado entre o DOJ e a Odebrecht, 21 dez. 2016. Disponível
em: . Acesso em:
31.12.2018.
135
CAPÍTULO III - O FCPA COMO PARADIGMA NO COMBATE...
tal montante era muito mais do que a Odebrecht poderia pagar, razão
pela qual o DOJ, após realizar um minucioso estudo acerca da capacidade
financeira da Odebrecht, aceitou reduzir a multa em US$ 2.100.000.000,00
(dois bilhões e cem milhões de dólares norte-americanos).
Paralelamente, a Braskem, uma companhia controlada pela Ode-
brecht, também firmou um plea bargain com o DOJ em 21 de dezembro
de 2016,182 pelo qual confessou a sua culpa na infração das regras antis-
suborno do FCPA e concordou em pagar o valor de US$ 632.626.336,81
(seiscentos e trinta e dois milhões, seiscentos e vinte e seis mil, trezentos
e trinta e seis dólares norte-americanos e oitenta e um centavos) a títu-
lo de multa, além de restituir o montante de US$ 325.000.000,00 (tre-
zentos e vinte e cinco milhões de dólares norte-americanos) referente
ao lucro obtido de forma ilícita. Assim como a Odebrecht, a Braskem
também aceitou contratar um monitor de compliance independente pelo
período de três anos. O valor da multa será rateado entre os Estados
Unidos (15%), Suíça (15%) e Brasil (70%). Quanto à restituição do lucro
obtido ilicitamente, o DOJ entendeu que tal obrigação será satisfeita em
razão do acordo firmado entre a Braskem e a SEC descrito abaixo.
A Braskem também firmou acordo com a SEC em 21 de dezem-
bro de 2016, pelo qual se comprometeu a jamais violar o FCPA, e
aceitou restituir o montante de US$ 325.000.000,00 (trezentos e vinte
e cinco milhões de dólares norte-americanos) referente ao lucro obtido
de maneira ilícita, além contratar um monitor de compliance indepen-
dente pelo período de três anos. O pagamento do valor acordado será
rateado entre os Estados Unidos e o Brasil.
3.10.3 Os acordos firmados com a SBM Offshore e a SBM
USA
A SBM Offshore é uma companhia holandesa de capital aberto cujas
principais atividades são o desenvolvimento de projetos, o fornecimento,
182 EUA. SEC. Plea bargain firmado entre a SEC e a Braskem, 21 dez. 2016. Disponível
em: . Acesso em:
31.12.2018.
136
RENATO ROMERO POLILLO
a instalação e a operação de plataformas flutuantes para extração de
petróleo offshore. A SBM Offshore também tem uma subsidiária sediada
no Texas, EUA, denominada SBM USA.
Com base nas informações apresentadas na denúncia protocolada
pelo DOJ em 21 de novembro de 2017,183 a SBM USA pagou propinas
a pelo menos três funcionários da Petrobras por meio de um agente
intermediário. O objetivo das propinas era assegurar a assinatura de
novos contratos e a manutenção de antigos contratos com a Petrobras.
No total, a SBM USA conseguiu um lucro no montante de US$
13.200.000,00 (treze milhões e duzentos mil dólares norte-americanos)
em decorrência da assinatura e manutenção dos aludidos contratos.
Em 29 de novembro de 2017, o DOJ e a SBM USA firmaram um
plea bargain,184 pelo qual a SBM USA confessou ter violado as regras an-
tissuborno previstas no FCPA e concordou em pagar uma multa no im-
porte de US$ 500.000,00 (quinhentos mil dólares norte-americanos), além
de restituir o valor de US$ 13.200.000,00 (treze milhões e duzentos mil
dólares norte-americanos) referente ao lucro obtido de forma ilegal.
Paralelamente, em 30 de novembro de 2017, o DOJ e a SBM
Offshore também firmaram um DPA185 pelo qual a companhia se obrigou
a pagar a quantia de US$ 238.000.000,00 (duzentos e trinta e oito milhões
de dólares norte-americanos) a título de multas e restituição de lucro.
3.11 Como é feito o cálculo das multas estipuladas nos acordos
Consoante já exposto, para calcular o montante das multas obje-
to dos acordos firmados com as partes infratoras, tanto o DOJ quanto a
183 EUA. DOJ. Denúncia apresentada pelo DOJ contra a SBM USA perante a corte
federal de Houston, Texas, 21 nov. 2017. Disponível em:
fcpac/documents/5000/003616.pdf>. Acesso em: 31.12.2018.
184 EUA. DOJ. Plea bargain firmado entre o DOJ e a SBM USA, 29 nov. 2017. Disponível
em: . Acesso em:
31.12.2018.
185 EUA. DOJ. Deferred Prosecution Agreement celebrado entre o DOJ e a SBM Offshore,
30 nov. 2017. Disponível em: < http://fcpa.stanford.edu/fcpac/documents/5000/003614.
pdf>. Acesso em: 31.12.2018.
137
CAPÍTULO III - O FCPA COMO PARADIGMA NO COMBATE...
SEC observam os parâmetros estabelecidos pelo U.S. Sentencing Guide-
lines, que serve como um norte para as cortes federais americanas para
dosimetria de penas. Segundo Mike Koehler,186 as agências deverão
considerar os seguintes fatores para apurar o valor das multas a serem
desembolsadas pelas empresas:
a) O grau de gravidade do ato lesivo praticado pelo agente no
tocante à violação das normas antissuborno do FCPA (oferecer,
dar, solicitar ou receber propina);
b) O grau de gravidade do ato lesivo poderá ser majorado a de-
pender do valor do benefício auferido com o pagamento da
propina. Isso resulta no grau total de gravidade da má conduta e
o valor da multa-base correspondente;
c) A partir daí, é feito o cálculo da pontuação da culpabilidade da
companhia na prática da má conduta. Para tanto, alguns elemen-
tos são levados em consideração, como o número de empregados
da organização, o envolvimento da alta administração no esquema,
o histórico criminal da empresa, a existência de um programa de
compliance etc.;
d) A pontuação de culpabilidade da companhia então é multipli-
cada por um coeficiente mínimo e outro coeficiente máximo que
são definidos com fundamento nos graus de gravidade da condu-
ta e de culpabilidade do agente. Como resultado, as agências
obtêm uma faixa com as quantias das multas que poderão ser
aplicadas ao caso concreto, cabendo ao DOJ e à SEC escolher
aquele valor que achar mais apropriado.
Para ilustrar o complexo cálculo elaborado pelas agências ameri-
canas para apurar o valor das multas impostas às empresas infratoras,
confira-se abaixo um breve resumo do cálculo descrito pelo DOJ no
plea bargain firmado com a Odebrecht.
O DOJ entendeu que o grau de gravidade do ato lesivo praticado
pela Odebrecht era o mais elevado, na medida em que havia alcançado
186 KOEHLER, Mike. The Foreign Corrupt Practice Act in a New Era. Northampton
(EUA): Edward Elgar, 2014, pp. 182-183.
138
RENATO ROMERO POLILLO
48 pontos em razão da soma dos seguintes fatores/pontos previstos no
U.S. Sentencing Guidelines:
Dispositivo do USSG Fundamento Pontuação
USSG § 2C.1(a)(2) Pontuação-base pela prática
do ato lesivo
12
USSG § 2C.1(b)(1) Existência de múltiplos
subornos
+ 2
USSG § 2C.1(b)(2) Valor do benefício obtido
pelo infrator é superior a
US$ 550 mil
+ 30
USSG § 2C.1(b)(3) Envolvimento de funcionário
público do alto escalão
+ 4
Total do grau lesivo do
ato lesivo praticado pela
Odebrecht
48
Tabela 1- Cálculo do grau do ato lesivo praticado pela Odebrecht
à luz do USSG187
Com fundamento no § 8C2.4(a)(2) do U.S. Sentencing Guidelines
que estabelece que a multa-base para o tipo de caso da Odebrecht é “o
ganho pecuniário obtido pela organização a partir da ofensa”,188 o DOJ
adotou como multa-base o expressivo montante de US$ 3.336.000.000,00
(três bilhões e trezentos e trinta e seis milhões de dólares norte-ameri-
canos), o qual foi previamente ajustado pelas partes.
Ato contínuo, o DOJ calculou o grau de culpabilidade da Ode-
brecht na prática do ato ilícito com fulcro no § 8C2.5 e no § 8C.4.1 do
U.S. Sentencing Guidelines. Confira-se:
187 Elaboração própria.
188 EUA. U.S. Sentencing Guidelines, § 8C2.4(a)(2). (a) The base fine is the greatest of:
(2) the pecuniary gain to the organization from the offense.
139
CAPÍTULO III - O FCPA COMO PARADIGMA NO COMBATE...
Dispositivo do USSG Fundamento Pontuação
USSG § 8C2.5(a) Pontuação-base pela culpa
na prática do ato ilícito
5
USSG § 8C2(b)(1)(A)(i) Número de funcionários
superior a 5.000 e
participação da alta
administração
+ 5
USSG § 8C2(e) Obstrução da Justiça + 3
USSG § 8C2(g)(2) Divulgação voluntária e
cooperação
- 2
USSG § 8C4.1 Substancial assistência
contra outros infratores
- 2
Total do grau de
culpabilidade da
Odebrecht
9
Tabela 2 – Cálculo do grau de culpabilidade praticado pela Odebrecht
à luz do USSG189
Após ter definido as pontuações concernentes aos graus de gravi-
dade da conduta praticada pela Odebrecht (48 pontos) e de culpabilidade
(9 pontos), o DOJ calculou a faixa na qual o valor da multa a ser im-
posta à companhia deveria se enquadrar da seguinte forma:
189 Elaboração própria.
140
RENATO ROMERO POLILLO
Valor-base para o cálculo da multa: US$ 3.336 bilhões
Multiplicadores aplicáveis com base
nos graus de gravidade da conduta e
de culpabilidade da Odebrecht:
1.8 (mín.) /3.6 (máx.)
Faixa do valor da multa a ser
imposta:
Entre US$ 6.004.800.000,00 e
US$ 12.009.600,00
Tabela 3 – Cálculo da faixa do valor da multa a ser imposta190
Tendo em vista que a Odebrecht cooperou com as investigações
e o processo conduzidos pelo DOJ, bem como tomou as medidas ne-
cessárias para remediação da situação, o DOJ decidiu reduzir em 25% o
valor da multa-base calculada acima (US$ 6.004.000.000,00), o que
resultou na quantia de US$ 4.503.600,00 (quatro bilhões, quinhentos e
três milhões e seiscentos mil dólares norte-americanos) a título de mul-
ta por violação às disposições antissuborno do FCPA.
3.12 Os efeitos do combate à corrupção transnacional nas
empresas que atuam no país
No final de 2018, a International Chamber of Commerce – Brasil (ICC
Brasil) e a empresa de auditoria Deloitte apresentaram o resultado de uma
interessante pesquisa sobre o estágio de empresas que atuam no Brasil
em relação à adoção de práticas de compliance, de anticorrupção e de
cultura de integridade corporativa.191
A pesquisa contou com a colaboração de 211 empresas, sendo que
mais de um quarto das empresas da amostra tinham receita líquida su-
perior a R$ 10 bilhões. Entre as companhias participantes, destacam-se
aquelas com atuação nos seguintes setores de atividade: manufatura (22%),
serviços (19%) e infraestrutura (18%).
190 Elaboração própria.
191 DELOITTE; INTERNATIONAL CHAMBER OF COMMERCE – Brasil.
Integridade corporativa no Brasil – Evolução do compliance e das boas práticas empresariais nos
últimos anos. Pesquisa 2018. Disponível em:
articles/integridade-corporativa-evolucao-do-compliance.html>. Acesso em 05.01.2019.
141
CAPÍTULO III - O FCPA COMO PARADIGMA NO COMBATE...
Dentre os diversos resultados obtidos por meio do estudo, um
deles em particular se mostra relevante para este capítulo, no tocante a
como o combate à corrupção transnacional tem surtido efeito nas com-
panhias que atuam globalmente. Segundo os dados da pesquisa, “para
competir internacionalmente, muitas empresas – especialmente as de
menor porte – sentem a necessidade de elevar as réguas de suas práticas
de governança, controles e gestão de risco”.
Nesse sentido, confira-se os dados dos gráficos extraídos da pes-
quisa que indicam o aumento das políticas de compliance adotadas por
empresas com atuação no Brasil para poder exportar. Até 2017, o prin-
cipal motivo pela mudança de comportamento se dava por conta das
exigências do país de origem, sendo que tal número deverá decair nos
próximos anos, pois, aparentemente, os clientes internacionais também
passaram a demandar a adoção de políticas por seus fornecedores.
GRÁFICOS 3
Empresas entrevistadas que tiveram que adequar as suas políticas
de compliance para poder exportar e os principais motivos
142
RENATO ROMERO POLILLO
3.13 A política de coordenação de penas corporativas e a
questão do piling on
Com a expansão do combate à corrupção de funcionários públicos
estrangeiros para outros países por meio das diversas convenções que
cuidam do tema, notadamente a Convenção da OCDE, há uma crescente
cooperação internacional entre as agências americanas e outros órgãos
similares em outros países, como o Ministério Público Federal (MPF),192
com uma troca constante de informações sobre processos, investigações
e dados. Isso também ocorre dentro dos EUA por meio de uma
interlocução constante entre as agências federais (DOJ e SEC) e as
agências de aplicação de leis estaduais dos cinquenta estados americanos.
Dessa forma, nos EUA, tornou-se comum que as empresas
passassem a sofrer múltiplas sanções pela mesma conduta em diferentes
jurisdições. Existem alguns exemplos recentes desse fenômeno, chamado
nos EUA de piling on, como os casos da Braskem193, da Odebrecht e da
SBM Offshore, que se obrigaram a pagar quantias milionárias ao governo
americano por força dos seus respectivos acordos celebrados com o DOJ
e a SEC. Contudo, essas mesmas companhias também firmaram acordos
de leniência com a Controladoria-Geral da União (CGU), pelos quais
também se comprometeram a pagar valores expressivos.194
192 Conforme Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal firmado entre os EUA
e o Brasil descrito na seção 3.10 (BRASIL. Decreto n. 3.810, de 2 maio 2001).
193 O Resource Guide to the FCPA apresenta o caso da Braskem como exemplo de
como o DOJ, a SEC e as autoridades brasileiras e suíças se compuseram para evitar a
aplicação de múltiplas sanções pela mesma conduta ilícita praticada pela Braskem no
Brasil, EUA e Suíça. EUA. DOJ e SEC. A Resource Guide to the U.S. Foreign Corrupt
Practices Act, Second Edition, Jul. 2020, p. 71. Disponível em:
gov/criminal-fraud/file/1292051/download>. Acesso em: 13.07.2020.
194 Consoante notícia publicada no website da CGU em 31.05.2019, a Braskem firmou
acordo de leniência com a CGU e se comprometeu a pagar um valor total de R$
2.870.000.000,00 (dois bilhões, oitocentos e setenta milhões de reais). (BRASIL.
Controladoria-Geral da União. CGU e AGU celebram acordo de leniência com
a Braskem S.A., de 31.05.2019. Disponível em:
assuntos/noticias/2019/05/cgu-e-agu-celebram-acordo-de-leniencia-com-a-braskem-
s-a>. Acesso em: 13.07.2020).
Conforme notícia veiculada no website da CGU em 09.07.2018, a Odebrecht assinou
acordo de leniência com a CGU pelo qual se obrigou a pagar o valor de R$ 2.720.000.000,00
143
CAPÍTULO III - O FCPA COMO PARADIGMA NO COMBATE...
Visando conter o avanço do instituto do piling on, o DOJ editou
uma Política de Coordenação para Resolução das Penalidades Corpo-
rativas (ou Política Anti-Piling On) que foi incluída no manual que guia
as atividades dos procuradores americanos, o U.S. Attorneys’ Manual at
§ 1-12.100,195 que, em síntese, estabelece quatro princípios básicos:
a) os procuradores devem se ater à sua obrigação ética de não usar
a sua autoridade para aplicar leis criminais para, de forma desleal,
obter, ou tentar obter, pagamentos adicionais de multas adminis-
trativas ou civis;
b) quando diversos membros do DOJ estão investigando a mesma
conduta praticada pela empresa, os procuradores deverão coorde-
nar os seus trabalhos de modo a evitar a imposição desnecessária
de multas ou penalidades repetidas contra a companhia com o
objetivo de obter um resultado equitativo;
c) o DOJ também deve se empenhar para, conforme o caso, con-
siderar as multas e penalidades impostas por outras autoridades
federais, estaduais, municipais e de outros países quando estiver
negociando um acordo com a empresa para resolver o caso en-
volvendo o mesmo ato ilícito; e
(dois bilhões e setecentos e vinte milhões de reais) ao longo de 22 anos a título de
pagamentos de dano, enriquecimento ilícito e multa (BRASIL. Controladoria-Geral
da União. Acordo de leniência com a Odebrecht prevê ressarcimento de 2,7
bilhões, de 09.07.2018. Disponível em:
acordo-de-leniencia-com-a-odebrecht-preve-ressarcimento-de-2-7-bilhoes>. Acesso
em: 05.01.2019).
No caso da SBM Offshore, a CGU veiculou notícia no seu website em 26 jul. 2018
comunicando a assinatura do acordo de leniência com a SBM Offshore, pelo qual esta
se comprometeu a pagar R$ 1.220.000.000,00 (um bilhão e duzentos e vinte milhões
de reais) entre valores de multa e ressarcimento de danos, dentre outras medidas
(BRASIL. Controladoria-Geral da União. Acordo de leniência com a SBM
Offshore ressarcirá R$ 1,22 bilhão à Petrobras, de 26 jul. 2018. Disponível em:
ressarcira-r-1-22-bilhao-a-petrobras>. Acesso em: 05.01.2019).
195 EUA. DOJ. U.S. Attorneys’ Manual at § 1-12.100. Disponível em: < https://
www.justice.gov/jm/jm-1-12000-coordination-parallel-criminal-civil-regulatory-and-
administrative-proceedings>. Acesso em: 05.01.2019.
144
RENATO ROMERO POLILLO
d) os procuradores deverão seguir alguns fatores para determinar
se a coordenação e o rateio com outras autoridades são apropria-
dos. Estão incluídos entre esses fatores: a gravidade da conduta
praticada pela companhia, as disposições legais concernentes a
multa e penalidades, o risco de um atraso injustificado para chegar
a uma resolução final, a adequação e a pronta divulgação da con-
duta pela empresa e a sua cooperação com o DOJ.
Como se vê, assim como no sistema jurídico brasileiro, o prin-
cípio de independência de instância também é consagrado nos EUA
– até de forma mais ampla. Tendo em vista o caráter ultraterritorial196
estipulado no artigo 1º, parágrafo único,197 e no artigo 28198 da Lei
Anticorrupção, entendemos que a Política de Coordenação para Re-
solução das Penalidades Corporativas (ou Política Anti-Piling On)
implementada pelo DOJ também poderá adotar política semelhante
pelas diversas autoridades máximas de cada órgão ou entidade pública
que podem celebrar acordo de leniência com pessoas jurídicas cuja
mesma conduta está sendo investigada tanto por autoridades brasileiras
quanto estrangeiras.
196 Conforme Modesto Carvalhosa, “a ultraterritorialidade simplesmente amplia a
esfera de aplicação da Lei nacional para além de suas fronteiras, sem alterar a extensão
do direito punitivo (jus puniendi) ou da definição do território. Resulta dessa
ultraterritorialidade que um ato delituoso cometido fora do território de um Estado
poderia, por circunstâncias especiais, ser julgado segundo a Lei desse mesmo Estado”
(CARVALHOSA, Modesto. Considerações sobre a lei anticorrupção das
pessoas jurídicas. Lei 12.846/2013. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015,
p. 114).
197 Art. 1º Esta Lei dispõe sobre a responsabilização objetiva administrativa e civil de
pessoas jurídicas pela prática de atos contra a Administração Pública, nacional ou
estrangeira.
Parágrafo único. Aplica-se o disposto nesta Lei às sociedades empresárias e às sociedades
simples, personificadas ou não, independentemente da forma de organização ou modelo
societário adotado, bem como a quaisquer fundações, associações de entidades ou
pessoas, ou sociedades estrangeiras, que tenham sede, filial ou representação no território
brasileiro, constituídas de fato ou de direito, ainda que temporariamente.
198 Art. 28. Esta Lei aplica-se aos atos lesivos praticados por pessoa jurídica brasileira
contra a Administração Pública estrangeira, ainda que cometidos no exterior.
145
CAPÍTULO III - O FCPA COMO PARADIGMA NO COMBATE...
Nesse contexto, filiamos à tese defendida por Walfrido Warde199
sobre a criação de uma autarquia, “isto é, uma pessoa jurídica de direi-
to público de capacidade exclusivamente administrativa, com patrimô-
nio e receita, que congregue partícipes de todos os órgãos de Estado
componentes do aparato estatal de controle” para planejar uma política
de combate à corrupção de alcance nacional.
Dentre as diversas funções dessa nova autarquia listadas pelo autor,
por exemplo, o “guichê único” para a celebração de acordos de leniên-
cia por meio de um Comitê de Leniência, sugerimos a inclusão de mais
uma finalidade: o trabalho de coordenação com governos estrangeiros
para imposição de sanções contra empresas cujas condutas estejam sen-
do investigadas simultaneamente no Brasil e em outros países, de modo
a, por um lado, aplicar as penalidades de forma razoável e proporcional
e, por outro, coibir a ocorrência do piling on.
199 WARDE, Walfrido. O espetáculo da corrupção: como um sistema corrupto e o modo
de combatê-lo estão destruindo o país. Rio de Janeiro: LeYa, 2018, p. 129.

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