A função promocional da capacidade de exercício na legalidade constitucional: em busca da autonomia existencial da pessoa com deficiência intelectual

AutorVitor Almeida
Ocupação do AutorDoutor e Mestre em Direito Civil pela UERJ. Professor Adjunto de Direito Civil da UFRRJ. Professor de Direito Civil do Departamento de Direito da PUC-Rio. Advogado.
Páginas153-168
A FUNÇÃO PROMOCIONAL DA CAPACIDADE DE
EXERCÍCIO NA LEGALIDADE CONSTITUCIONAL:
EM BUSCA DA AUTONOMIA EXISTENCIAL DA
PESSOA COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL1
Vitor Almeida
Doutor e Mestre em Direito Civil pela UERJ. Professor Adjunto de Direito Civil da
UFRRJ. Professor de Direito Civil do Departamento de Direito da PUC-Rio. Advogado.
Sumário: 1. Notas introdutórias: o direito à capacidade de exercício como igual reconhecimento da
pessoa humana perante a lei – 2. Personalidade e capacidade civil no direito brasileiro – 3. O regime das
(in)capacidades da pessoa com deciência após o advento do EPD – 4. O m da incapacidade absoluta
e a capacidade “possível” – 5. Considerações nais.
1. NOTAS INTRODUTÓRIAS: O DIREITO À CAPACIDADE DE EXERCÍCIO
COMO IGUAL RECONHECIMENTO DA PESSOA HUMANA PERANTE A LEI
A capacidade civil, de feição tipicamente patrimonial e excludente, tem sido alvejada
por uma interpretação que, com base nos princípios da dignidade da pessoa humana
e da isonomia substancial, desaa o entendimento secularmente cristalizado e aponta
para indispensável necessidade de sua atual compreensão a partir do direito à igualdade
de reconhecimento como pessoa perante a lei, sem discriminação, eis que é um atributo
universal inerente a todos devido à condição humana. Nesse trilho, de abstrato instituto
com ns protetivos, almeja-se com os ventos transformadores que a capacidade se volte
como concreta expressão do status de pessoa humana na vida de relações, promovendo
a autodeterminação individual, notadamente em questões de índole existenciais. Neste
cenário, o repensar da capacidade civil da pessoa com deciência é crucial para a com-
preensão dos novos rumos sobre o tema a partir da perspectiva promocional.
Decerto que o alvorecer do século XXI tem presenciado uma preocupação sem
precedentes na defesa e promoção dos direitos humanos das pessoas com deciência, vi-
sando sua plena inclusão social e exercício da cidadania, em igualdade de oportunidades
com os demais atores sociais, superando um passado odioso de invisibilização social e
privação de direitos e garantias fundamentais. Apesar do atual cenário de enaltecimento
dos direitos da pessoa com deciência, garantindo-lhes a plena capacidade legal, e, por
conseguinte, a autonomia na tomada de decisões a respeito das questões existenciais
1. Parte das reexões e conclusões do presente artigo foram fruto da tese de doutorado defendida no âmbito do
Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, que, posteriormente,
foi publicada, com modicações, em livro: ALMEIDA, Vitor. A capacidade civil das pessoas com deciência e os
pers da curatela. Belo Horizonte: Fórum, 2018.
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e patrimoniais, a efetiva inclusão social encontra resistência de parcela da sociedade
que não reconhece no outro com deciência a qualidade de pessoas humanas de igual
valor e competência para atuar, com independência e voz, em igualdade de condições
na vida de relações.
A exclusividade do discurso médico a respeito da deciência começou a ceder ter-
reno em ns da década de 1970 com a ascensão do chamado modelo social, que forçou a
sociedade a enxergar a pessoa com deciência a partir de suas diferenças, retirando-lhe
de um profundo isolamento forçado por meio de sua institucionalização. A principal
inovação desse modelo reside na concepção de que a experiência da opressão não é
uma consequência natural de um corpo com lesões, mas também um problema social.
O principal desao para superar o antigo modelo, puramente médico, é compreender
que o legado de opressão é devido às barreiras sociais impostas e ao não reconhecimento
dessas pessoas como agentes sociais de igual valor e competência.2
As reinvindicações da sociedade civil e das entidades representativas culminaram na
primeira Convenção Internacional do século XX sobre direitos humanos da Organização
das Nações Unidas a versar sobre os direitos da pessoa com deciência. A Convenção
Internacional das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deciência e seu
protocolo facultativo (CDPD) foram raticados pelo Congresso Nacional através do
Decreto Legislativo 186, de 09 de julho de 2008, e promulgados pelo Decreto 6.949, de
25 de agosto de 2009. As disposições do CDPD encontram-se formalmente incorpora-
das, com força, hierarquia e ecácia constitucionais, ao plano do ordenamento positivo
interno do Estado brasileiro, nos termos do art. 5º, § 3º, da Constituição Federal. A in-
ternalização à ordem constitucional brasileira da CDPD como Emenda Constitucional
revolucionou o tratamento da questão, ao colocá-la no patamar dos direitos humanos
e ao adotar o denominado modelo social de deciência.
No plano infraconstitucional brasileiro, a Lei 13.146, denominada de Lei Bra-
sileira de Inclusão da Pessoa com Deciência ou Estatuto da Pessoa com Deciência
(EPD), aprovada em 06 de julho de 2015, instrumentalizou e deu cumprimento à
CDPD. Destinado expressamente a assegurar e promover, em condições de igualdade,
o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deciência,
visando à sua inclusão social e cidadania, o EPD cria os instrumentos necessários à
efetivação dos ditames constitucionais, dentre os quais se inclui profunda alteração do
regime de (in)capacidade jurídica, previsto no Código Civil, cujas consequências se
alastram praticamente por todo ordenamento jurídico, especialmente no giro funcional
da curatela, que transforma-se em instrumento de apoio à emancipação da pessoa
com deciência, afastando-se da noção assistencialista e substitutiva de vontade que
sempre a acompanhou.3
2. Cf. BARBOZA, Heloisa Helena;ALMEIDA JUNIOR, Vitor de Azevedo. Reconhecimento e inclusão das pessoas
com deciência. Revista Brasileira de Direito Civil, v. 13, p. 17-37, 2017.
3. S obre o assunto permita-se remeter a ALMEIDA, Vitor. A capacidade civil das pessoas com deciência e os pers
da curatela. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 195-268.
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