A gestação de substituição vista como um contrato em prol da garantia de segurança jurídica aos participantes e à criança a nascer

AutorMaria de Fátima Freire de Sá e Anna Cristina de Carvalho Rettore
Páginas141-164
A GESTAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO VISTA
COMO UM CONTRATO EM PROL
DA GARANTIA DE SEGURANÇA JURÍDICA
AOS PARTICIPANTES E À CRIANÇA A NASCER
Maria de Fátima Freire de Sá
Doutora em Direito pela UFMG. Mestre em Direito pela PUC Minas. Especialista em
Direito de Empresa pelo IEC - PUC Minas. Professora do Programa de Pós Graduação
em Direito Privado (mestrado e doutorado) da PUC Minas; Professora Adjunta IV na
Faculdade Mineira de Direito da PUC Minas; Membro e Pesquisadora do Centro de
Estudos em Biodireito - CEBID.
Anna Cristina de Carvalho Rettore
Mestre em Direito Privado pela PUC Minas. Bacharel em Direito pela UFMG. Advogada.
Sumário: 1. Introdução – 2. A regulação pelo CFM e a insuciente política de minimização
de riscos – 3. A releitura da teoria contratual para aplicação a situações existenciais – 4. A
contratualização da gestação de substituição; 4.1. Principiologia contratual; 4.2. Estrutura
contratual: requisitos para validade do contrato; 4.3. Regras e institutos contratuais aplicáveis
e não aplicáveis à gestação de substituição; 4.4. Contratos coligados – 5. Conclusão – 6.
Referências bibliográcas.
1. INTRODUÇÃO
A gestação de substituição, popularmente conhecida como “barriga de aluguel”,
é procedimento biomédico de reprodução humana assistida cujo desenvolvimento
representa importante avanço tecnológico para auxiliar o caminho em busca da
autorrealização por pessoas com limitações à reprodução por meios biológicos pró-
prios. Mulheres com dif‌iculdades gestacionais ou doenças do sistema reprodutivo e
casais homoafetivos masculinos são exemplos dos que mais comumente recorrem
à técnica, pois de outro modo não lograriam compartilhar (nem mesmo de uma
perspectiva participativa, tal como ocorre na gestação de substituição) do processo
de gravidez de seus f‌ilhos.
Nunca houve regulamentação legal específ‌ica desse tema no Brasil. Todavia,
desde 1992 o Conselho Federal de Medicina edita resoluções que determinam os
procedimentos e as circunstâncias para participação de prof‌issionais médicos na
viabilização desse procedimento, resoluções as quais, conquanto não sejam cogen-
tes para a população brasileira como um todo e não emanem de órgão legítimo e
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representativo do corpo social, têm determinado a forma como o procedimento é
realizado no país.
Como se pretende descrever neste estudo, as disposições normativas editadas
pelo Conselho exigem que os participantes (gestante substituta e benef‌iciário(s))
f‌irmem termos de compromisso estabelecendo a f‌iliação da criança a ser gestada, bem
como que os benef‌iciários se comprometam, por escrito, tanto com a realização do
registro civil da criança quanto com o pagamento do acompanhamento da gestante
até o puerpério.
Mais além, todos assinam um termo de consentimento livre e esclarecido que
trata de aspectos biopsicossociais e riscos da gravidez e puerpério, bem como de as-
pectos legais da f‌iliação; se a gestante for casada ou viver em união estável, seu cônjuge
ou companheiro deve autorizar por escrito a realização do procedimento, e a clínica
médica deve atestar em relatório a adequação clínica e emocional dos participantes.1
Contudo, é possível perceber que, na hipótese de entre os envolvidos surgir algu-
ma espécie de conf‌lito de interesses, não há garantia de que os documentos exigidos
resguardem sua executoriedade ou ofereçam soluções possíveis, seja para a concilia-
ção, seja para o direcionamento do Poder Judiciário caso venha a ser acionado, em
vista da falta de parâmetros decorrente da inexistência de regulamentação específ‌ica.
Tal situação tem o potencial de gerar situações de acentuada insegurança jurídica.
Por outro lado, outra importante medida tomada pelo CFM consiste na exigência
de que atuem como gestantes substitutas apenas mulheres que tenham parentesco
consanguíneo com algum dos benef‌iciários até o quarto grau – o que inclui mães,
f‌ilhas, avós, irmãs, tias, sobrinhas e primas –, sendo que os casos que ultrapassam
essa previsão deverão receber autorização específ‌ica do Conselho, tudo a f‌im de
evitar que nesta relação haja algum “caráter lucrativo ou comercial”, expressamente
vedado pela Resolução.
Dentre as situações submetidas à análise específ‌ica inclui-se a autorização a
mulheres amigas do casal que se dispuseram a f‌igurar como gestantes substitutas sem
que se tenha identif‌icado o recebimento de vantagem f‌inanceira por isso,2 além de
um caso no qual uma funcionária do casal de benef‌iciários se dispôs a gestar o f‌ilho
por eles, uma vez inexistentes parentes do casal com condições para uma gestação
(CRM-MG, 2015b).
1 CFM. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM n.º 2.168/2017, que adota as normas éticas
para a utilização das técnicas de reprodução assistida. Disponível em:
visualizar/resolucoes/BR/2017/2168>. Acesso em: 10 nov. 2020.
2 CRM-GO. CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DE GOIÁS. Parecer-consulta n.° 13/2014: Processo
Consulta n.° 06/2014. Rel. Aldair Novato Silva. 28. jul. 2014. Disponível em:
br/normas/arquivos/pareceres/GO/2014/13_2014.pdf>. Acesso em: 10 nov. 2020; CRM-MG. CONSELHO
REGIONAL DE MEDICINA DE MINAS GERAIS. Parecer-consulta n.° 5505/2015. Rel. Giovana Ferreira
Zanin Gonçalves. 30 abr. 2015. Disponível em: .portalmedico.org.br/pareceres/CRMMG/
pareceres/2015/5505_2015.pdf>. Acesso em: 10 nov. 2020.
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A GESTAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO
A exigência de parentesco ou, casuisticamente, de que haja uma relação altruísta
entre os participantes da técnica acaba por comumente signif‌icar a preexistência de
laços morais entre gestante substituta e benef‌iciários.
Dessa forma, ainda que a documentação exigida pela Resolução do CFM pres-
cinda, por si, da garantia de segurança jurídica aos participantes da técnica (ou, mais
ainda, à criança a nascer), ela se presta à formalização desse vínculo moral antecedente
que funciona como uma “política de minimização de riscos”, reduzindo a possibi-
lidade de conf‌litos. Porém, além do fato de que esse artifício acaba por excluir do
acesso à técnica uma série de pessoas que não logram encontrar alguma parente ou
amiga disposta a passar por todos os transtornos de uma gestação sem contrapartida
f‌inanceira alguma – sequer se vier a ser preciso, por exemplo, ausentar-se do seu
trabalho –, deve-se reconhecer que minimizar riscos não signif‌ica um fornecimento
suf‌iciente de garantias.
É por essa razão que o presente estudo propõe demonstrar que o tratamento
da relação havida entre a gestante substituta e os benef‌iciários da técnica como um
contrato – assim atraindo a aplicação de institutos jurídicos tradicionais e de todo
o arcabouço atinente à teoria geral dos contratos, com a condição de submetê-la a
uma releitura que a adeque às exigências de uma relação com contornos existenciais
relevantes – pode adensar a segurança jurídica da qual carecem os documentos pro-
duzidos segundo as atuais normas do CFM, se analisados isoladamente.
2. A REGULAÇÃO PELO CFM E A INSUFICIENTE POLÍTICA DE MINIMIZAÇÃO
DE RISCOS
Como dito, as medidas e a documentação exigidas pelo Conselho Federal de
Medicina funcionam como esforços prévios de redução de possíveis riscos: com a
exigência de que entre os envolvidos já exista um vínculo moral (seja pelo parentesco,
seja pela amizade a ser verif‌icada pelo Conselho) pretende-se assegurar o quanto
possível a existência de um círculo no qual vigore plena conf‌iança.
No entanto, se porventura houver qualquer desentendimento entre as partes –
ainda que entre parentes ou entre pessoas que passaram pelo crivo do CFM como aptas
à gestação de substituição altruísta –, desconhece-se qual o alcance do poder vinculante
dos documentos f‌irmados nos termos das exigências do CFM por gestante e benef‌ici-
ários. Além disso, uma vez que a norma não tem força de lei e que os documentos são
assinados apenas pelos participantes, não vinculam agentes externos à transação. E
em sendo necessário judicializar a questão, sequer haverá possibilidade de previsão
dos resultados, dada a ausência de parâmetros a serem seguidos pelo Poder Judiciário.
Por exemplo: por delongado tempo, desde a primeira gestação de substituição
no Brasil, pairaram dúvidas quanto ao registro das crianças nascidas pela técnica,
uma vez que os termos determinados pelo CFM não vinculavam os Cartórios de Re-
gistro Civil do país. Muito se falava sobre a presunção de que a maternidade é sempre
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certa, nos termos do brocardo romano mater semper certa est, por necessariamente
corresponder a mãe à mulher que dá à luz à criança. Porém, essa certeza se tornou
anacrônica diante do desenvolvimento de técnicas de reprodução humana assistida.
Uma vez que tal presunção de maternidade sempre fez parte da tradição jurídica
brasileira, por vezes foram suscitadas dúvidas pelos Cartórios de Registro, subme-
tendo a criança a f‌icar desprovida de f‌iliação e registro, situação de insegurança e
desproteção, até que viessem a ser solucionadas em def‌initivo – como chegou a ocorrer
em caso goiano divulgado pela mídia, no qual os pais não haviam logrado registrar
o nascimento da f‌ilha quando ela já contava com um ano e seis meses de vida, em
virtude de entraves judiciários.3
No entanto, em 14 de março de 2016 foi publicado o Provimento n.° 52 da Cor-
regedoria Nacional de Justiça (alterado pelo Provimento n.° 63 de 14 de novembro
de 2017) regulamentando nacionalmente a atuação dos Cartórios para esses casos.
Assentou-se a desnecessidade de decisão judicial para feitura do registro, vedando a
recusa seja para casais homo ou heteroafetivos, bem como que o nome da parturiente
(o qual consta da Declaração de Nascido Vivo da criança) não deve integrar o registro,
nele f‌igurando apenas o nome dos benef‌iciários como genitores.4
Com isso, as dif‌iculdades uma vez existentes com relação à resistência de cartórios
para efetuar registros de crianças nascidas a partir da técnica foram drasticamente redu-
zidas. Certo é, todavia, que a norma da Corregedoria Nacional de Justiça não elimina a
possibilidade de conf‌litos negativos ou positivos de maternidade, pois regulamenta ape-
nas a atuação dos Cartórios. Af‌inal, assim como as Resoluções do CFM, Provimentos do
CNJ não têm status de lei oriunda de deliberação por instituição representativa do corpo
social, remanescendo a possibilidade de advirem problemas fruto da falta de segurança
que ainda permeia o instituto e que podem afetar a todos, em especial a criança a nascer.
Afora questões relacionadas ao estabelecimento da f‌iliação do nascido, também
se identif‌icam outras possivelmente conf‌lituosas e que causam insegurança, tais
como desencontros entre gestante e benef‌iciários sobre quais comportamentos são
adequados ou não durante a gravidez; tomada de decisões referentes à gestação e/ou
ao desenvolvimento do feto; a eventualidade de mudanças de postura ou decisão, seja
pela gestante ou pelo(s) benef‌iciário(s), com relação ao inicialmente acordado, fruto
do passar do tempo ou mediante acontecimentos inicialmente imprevistos; a possível
não coercibilidade do compromisso f‌irmado em prol do pagamento do tratamento
da gestante até o puerpério; dentre tantos outros cuja listagem apenas se expande se
submetidas as possibilidades de conf‌lito a uma ref‌lexão minimamente mais profunda.
3 ZAGO, Adriano; CARVALHO, Humberta. Casal não consegue registrar a f‌ilha gerada em barriga de aluguel,
em GO. G1 Goiás, 04 set. 2012. Disponível em: -
segue-registrar-f‌ilha-gerada-em-barriga-de-aluguel-em-go.html>. Acesso em: 10 nov. 2020.
4 CNJ. CORREGEDORIA NACIONAL DE JUSTIÇA. Provimento n.° 52, de 14 de março de 2016, que dispõe
sobre o registro de nascimento e emissão da respectiva certidão dos f‌ilhos havidos por reprodução assistida.
Disponível em: < https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/2514 >. Acesso em: 10 nov. 2020.
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A GESTAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO
Em suma, o atual modelo brasileiro de gestação de substituição segundo o Pro-
vimento mais recente do CFM guarda uma miríade de problemas possíveis, sem que
haja garantia de segurança jurídica para a gestante, os benef‌iciários ou a criança em
caso de eventuais conf‌litos, os quais apenas tendem a ser evitados diante das precau-
ções adotadas pelo Conselho, mas que, especialmente diante do desconhecimento
sobre o alcance de sua força cogente, não deixam de existir.
3. A RELEITURA DA TEORIA CONTRATUAL PARA APLICAÇÃO A SITUAÇÕES
EXISTENCIAIS
Em sendo as normas aqui tratadas editadas por um conselho médico que não
é juridicamente especializado, e cuja preocupação volta-se mais a questões éticas e
clínicas – tal como afeito à própria Medicina –, inexistem diretrizes nas resoluções que
façam alguma remissão a institutos jurídicos, os quais, uma vez def‌inidos, poderiam
determinar a atração de determinado tipo de proteção e regras jurídicas.
Por outro lado, ainda que não parta de um termo previamente especif‌icado ou
constante da norma, a análise da relação existente entre a gestante substituta e os
benef‌iciários, de uma perspectiva jurídica, permite a conclusão de que se amolda
tipicamente a uma estrutura contratual.
Segundo Caio Mário da Silva Pereira, “contrato é um acordo de vontades, na
conformidade da lei, e com a f‌inalidade de adquirir, resguardar, transferir, modif‌icar
ou extinguir direitos”.5 Como os termos de compromisso f‌irmados pelos participantes
do procedimento de gestação de substituição representam um acordo de vontades
acerca do f‌inanciamento de tratamento da gestante até o puerpério bem como quanto
à f‌iliação da criança gestada, adquirindo, resguardando e modif‌icando direitos, tem-se
formado um contrato entre as partes.
Pode-se concluir, por conseguinte, que ainda que inexista uma identif‌icação
específ‌ica de tal relação como contratual pela norma – ou mesmo que não houvesse
intenção de que o fosse por seus elaboradores – suas características permitem que seja
assim def‌inida e que, com isso, receba a tutela jurídica própria desse tipo de relação.
É curioso notar, entretanto, que em uma das resoluções que antecederam a
atualmente vigente, de n.° 2.013/2013, o que hoje é tratado como “termo de com-
promisso” entre os envolvidos era previamente caracterizado como um “contrato
entre os pacientes (pais genéticos) e a doadora temporária do útero (que recebeu o
embrião em seu útero e deu à luz), estabelecendo claramente a questão da f‌iliação
criança”.6 Perquirir sobre a razão para uma tal mudança terminológica permite in-
5 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Contratos, vol. 3. Rio de Janeiro: Forense, 2004,
p. 7.
6 CFM. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM n.º 2.013/2013, que adota as normas éticas
para a utilização das técnicas de reprodução assistida. Disponível em: .portalmedico.org.br/
resolucoes/CFM/2013/2013_2013.pdf>. Acesso em: 10 nov. 2020.
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ferir uma pretensão do CFM de se afastar da usual correlação havida entre o termo
“contrato” e questões eminentemente patrimoniais, às quais ele é majoritariamente
correlacionado.
A mencionada correlação tem origem não apenas na linguagem leiga como tam-
bém na própria construção do instituto no Direito Civil. Tal como a própria autonomia
da vontade, o contrato sob a égide do Estado Liberal existia única e exclusivamente
para a regulação da vida do homem como pai, proprietário e negociante, de modo
que o delineamento de sua estrutura e regras de aplicação tinha como objetivo a
incidência sobre questões patrimoniais.
Ainda hoje, vários doutrinadores apõem def‌inição desse instituto conectada
apenas com seu viés patrimonial, de forma mais estrita do que a apresentada por Caio
Mário da Silva Pereira, como fazem Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho,
para quem “contrato é um negócio jurídico por meio do qual as partes declarantes,
limitadas pelos princípios da função social e da boa-fé objetiva, autodisciplinam os
efeitos patrimoniais que pretendem atingir, segundo a autonomia de suas próprias
vontades”.7
Porém, tendo evoluído a visão sobre o sujeito cuja autonomia é posta em movi-
mento por meio do contrato, passando pelo contexto do Estado Social para chegar
ao Estado Democrático de Direito, ele deixa de ser visto exclusivamente como um
negociante, proprietário e pai de família, passando a um indivíduo concretamente
considerado, historicamente situado e com necessidades existenciais que vão além da
seara patrimonial. No Brasil, essa visão se consolida juridicamente com o advento da
Constituição de 1988, razão que obriga a releitura de diversos institutos tradicionais
para que se amoldem ao novo paradigma e à proteção das novas necessidades, no
que se inclui a própria teoria contratual.8
Sendo a relação da gestante substituta com os benef‌iciários uma na qual ela
exercita seu direito da personalidade à autonomia corporal, enquanto eles exercem
7 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: parte geral. 8. ed. rev.
atual. e reform. São Paulo: Saraiva, 2006, v. 1, p. 53. Sem grifo no original.
8. Em outra oportunidade, defendeu-se que em lugar do termo contrato – exatamente em virtude da forte
correlação com a seara patrimonial que ainda vigora em seu estudo, como se vê pela def‌inição dada por
muitos doutrinadores modernos – a gestação de substituição deveria ser encarada como um “negócio
jurídico” em sentido lato, por se tratar de terminologia mais ampla capaz de abarcar também as situações
unilaterais e extrapatrimoniais (existenciais), restringindo-se o contrato, por conseguinte, aos negócios
jurídicos bilaterais e patrimoniais (RETTORE, Anna Cristina de Carvalho de. Gestação de substituição no
Brasil: a estrutura de um negócio jurídico dúplice, existente, válido e ef‌icaz. Dissertação de mestrado.
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. 2018. Disponível em:
br/teses/Direito_RettoreAC_1.pdf>. Acesso em: 10 nov. 2020). Todavia, entende-se possível a adoção da
terminologia “contrato”, tal como é a proposta do presente estudo (e tal como também foi proposto em
LIMA, Taisa Maria Macena de; SÁ, Maria de Fátima Freire de. Gestação de substituição: uma análise a partir
do direito contratual. In: CORDEIRO, Carlos José; GOMES, Josiane Araújo. Temas contemporâneos de direito
das famílias. Vol. 3. São Paulo: Ed. Pilares, 2018, pp. 461-479), desde que acompanhada da ressalva de que
se trata de termo submetido a uma releitura capaz de fazê-lo abarcar situações jurídicas existenciais tanto
quanto as patrimoniais, tal como ora é feito.
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o direito à parentalidade na busca por autorrealização, nota-se a presença de situa-
ções de relevante conteúdo existencial para todos os participantes. É por essa razão
que se entende possível a aplicação dos institutos da teoria contratual como válidos
para adensar a proteção jurídica a eles garantida – decerto, desde que relida com a
f‌inalidade de que a tutela se volte e se amolde às características extrapatrimoniais
dos direitos envolvidos.
Com isso exposto, passa-se à demonstração sobre como pode ser frutífera a lei-
tura da gestação de substituição como um contrato para promover maior segurança
aos participantes dessa relação bem como da criança a nascer.
4. A CONTRATUALIZAÇÃO DA GESTAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO
4.1. Principiologia contratual
Já de saída, tem-se que todo e qualquer contrato deve se nortear por quatro
princípios civilísticos, a saber: autonomia privada (assunção de que os sujeitos
jurídicos, dentro de um espaço de liberdade, podem compor as suas relações de
vida), boa-fé objetiva (obrigação de comportamento que não frustre legítimas
expectativas criadas no outro negociante, além de criar deveres anexos), função
social (reconhecimento do impacto da sociedade no negócio e do efeito social do
negócio) e justiça contratual (busca pelo equilíbrio entre as situações dos nego-
ciantes). Estes princípios são fundamentais na tarefa de delinear os direitos e os
deveres dos contratantes .9
Os princípios são normas que, além de servirem à interpretação dos contratos
com vistas à valorização da boa-fé dos participantes (art. 113 do Código Civil), devem
ser observadas para a conclusão do contrato; se não o forem, levam à penalização do
negociante que o desrespeitou. Assim, é exigida uma postura dos contratantes desde
antes da formação do contrato, cabendo a cada um deles observar o dever de informação,
o equilíbrio contratual, a participação da gestante no negócio com autonomia, dentre
outros. Mais além, uma vez formalizado o contrato, este restaria hábil à verif‌icação pelo
Poder Judiciário, acionável nas situações de abuso ou violação de direito.
O tratamento da relação de gestante com benef‌iciários como um contrato faz
atrair a aplicação dessa relevante principiologia, servindo como norte tanto na fase
pré e pós-contratual quanto na própria execução do contrato para o comportamento
dos agentes, bem como em eventual avaliação a posteriori que precise ser feita sobre
suas posturas ou sobre o conteúdo contratual, além de servir à própria interpretação
do contrato em suas cláusulas e eventuais lacunas.
9 LIMA, Taisa Maria Macena de; SÁ, Maria de Fátima Freire de. Gestação de substituição: uma análise a partir
do direito contratual. In: CORDEIRO, Carlos José; GOMES, Josiane Araújo. Temas contemporâneos de direito
das famílias. Vol. 3. São Paulo: Pilares, 2018, p. 465.
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4.2. Estrutura contratual: requisitos para validade do contrato
Indo além da principiologia para um exame dos requisitos estruturais dos con-
tratos, passa-se à análise sobre a relação entre gestante substituta e benef‌iciários, a
possibilidade para que venha a ser encarada como um contrato válido à luz da teoria
ponteana dos planos do negócio jurídico, e sobre como isso proporciona maior
segurança.
No plano da validade são analisados os elementos do contrato de maneira quali-
f‌icada, que são a capacidade e legitimidade dos agentes emissores da vontade; o objeto
lícito, possível, determinado ou determinável; a forma prescrita ou não proibida por
lei; e a manifestação de vontade livre e de boa-fé, criando o consenso.
As partes desse contrato (gestante e benef‌iciários) devem ser pessoas maiores
e capazes. É, contudo, possível problematizar a questão sobre – diante do fato da
vida de que para engravidar ou exercer a parentalidade não há exigência de idade
mínima – se pessoas com menos de dezoito anos, ou que suportem alguma espécie
de incapacidade legal, poderiam ser consideradas aptas à participação como agentes
desse tipo de contrato.
Como costuma acontecer em contratos que envolvem questões de biodireito,
a exigência de capacidade não deve necessariamente bastar para a análise da ido-
neidade do consentimento manifestado. Em questões médicas, é preciso ter com-
petência para tomada de decisões, ou seja, saber compreender e avaliar os riscos e
as consequências do ato.
Por isso, assume-se como possível que absoluta ou relativamente incapazes
gozem de competência suf‌iciente para a tomada de decisões como a desta espécie
contratual, tanto quanto pessoas capazes que dela não gozem, tudo a depender de
análise específ‌ica do caso concreto. Aceita-se, por conseguinte, a possibilidade de
haver exceções à premissa que funciona como regra prévia de que será competente a
pessoa legalmente capaz para exercício de atos da própria vida civil – o que coaduna
com a releitura que se af‌irma necessária à teoria contratual clássica quando em jogo,
especialmente, questões existenciais dos participantes do contrato.
Relativamente à gestante, a avaliação da competência é particularmente re-
levante uma vez que os efeitos serão suportados por ela. Af‌inal, estará assentindo
na celebração de um contrato de direitos da personalidade em que ela exerce o
direito sobre o próprio corpo, mas os maiores benefícios dessa contratação serão
revertidos em favor de seus parceiros contratuais. No que toca aos benef‌iciários,
também há especial relevância quanto à competência uma vez que sua escolha
incidirá sobre a vida da criança a nascer e com eles formar um vínculo irrevogável
de f‌iliação.
Já sobre o objeto do contrato, é importante que não seja visto ou tratado como
sendo o bebê gestado, mas sim o exercício de direito da personalidade por parte da
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gestante, especialmente de sua autonomia corporal10. Nesse caso, não parece haver
considerações complexas a serem feitas quanto à sua determinabilidade, mas elas
existem quando se trata de sua licitude, imprescindível para a validade do negócio.
Para que o objeto seja lícito, é preciso atenção para que o exercício de direito
da personalidade por parte da gestante se dê em atenção às suas escolhas. É dizer,
especialmente, que a autonomia corporal da gestante deve ser respeitada, sob pena
de ilicitude do objeto contratual. Se houver alguma espécie de limitação de com-
portamento, ela tem de ser consentida pela gestante. Além disso, seria ilícito não
chamar a gestante para compreender e participar de decisões concernentes aos pro-
cedimentos e tratamentos no decorrer da gravidez e do parto, por violar o exercício
de seu direito da personalidade, inerentemente personalíssimo tal como comanda
nosso ordenamento.
Para uma conclusão acerca da licitude do objeto contratual é preciso perquirir
sobre a admissibilidade no Brasil quanto a este contrato, seja ele altruísta ou remune-
rado. Quanto à possibilidade altruísta, que já vem sendo praticada desde 1992 com
regulação apenas pelas normas do CFM, a ausência de questionamentos sociais e
jurídicos que se verif‌ica diante da prática facilita percebê-la como lícita (assim como
a própria possibilidade de renúncia ao exercício de direitos da personalidade, que
acontece também nesta modalidade). Já quanto à versão remunerada, alguns pontos
precisam ser abordados.
O primeiro deles é a perquirição sobre a existência de norma proibitiva de re-
cebimento de remuneração pela gestante em nosso país. De saída, importa perceber
que o §4° do art. 199 da Constituição, que dita que “a lei disporá sobre as condições
e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas
para f‌ins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento
e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização”,
não é aplicável à gestação de substituição pois (1) o objeto do procedimento não é a
remoção de qualquer espécie de “substância humana” do corpo da gestante (que se
restringe ao uso do útero e da capacidade de gestação como um todo), (2) não há a
f‌inalidade de transplante, pesquisa ou tratamento e porque, em nosso ordenamento,
(3) normas restritivas de direitos somente podem ser interpretadas restritivamente:
4. O Código Civil explicitamente consolidou o preceito clássico – ‘Exceptiones sunt strictissimoe
interpretationis’ (“interpretam-se as exceções estritissimamente”), no art. 6° da antiga Introdução,
assim concebido: “A lei que abre exceção a regras gerais, ou restringe direitos, só abrange os casos
que especica” (...) As disposições excepcionais são estabelecidas por motivos ou considerações
particulares, contra outras normas jurídicas, ou contra o Direito comum; por isso não se estendem
além dos casos e tempos que designam expressamente. Os contemporâneos preferem encontrar
o fundamento desse preceito no fato de se acharem preponderantemente do lado do princípio
10 RETTORE, Anna Cristina de Car valho de. Gestação de substituição no Brasil: a estrutura de um negócio
jurídico dúplice, existente, válido e ef‌icaz. Dissertação de mestrado. Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais. 2018. Disponível em: eito_RettoreAC_1.pdf>.
Acesso em: 10 nov. 2020, p. 124.
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geral as forças sociais que inuem na aplicação de toda regra positiva, como sejam os fatores
sociológicos, a Werturteil dos tedescos, e outras. (...)” (Carlos Maximiliano, in “Hermenêutica e
Aplicação do Direito”, Forense, p. 184/193).11
Assim sendo, o que se percebe é a inexistência de lei federal proibitiva de
remuneração nesse tipo contratual. Quanto à Resolução n.° 2.168/2017 do CFM,
que proíbe a gestação de substituição remunerada, é preciso esclarecer que a prer-
rogativa atribuída ao Conselho é de efetivação de direitos fundamentais, não se
podendo admitir que os restrinja. Nesse sentido, conquanto se valorize a edição
de normas que regulem eticamente a atuação médica em reprodução humana
assistida – porque isso facilita o direcionamento dos prof‌issionais e estimula que
realizem procedimentos a despeito da inexistência de lei, concretizando direitos
fundamentais reprodutivos constitucionalmente assegurados –, nos pontos em
que a Resolução limita direitos defende-se, neste estudo, a inconstitucionalidade
e/ou a ilegalidade da norma.
Indo além, todavia, sabe-se que no Brasil os direitos da personalidade são
frequentemente caracterizados como extrapatrimoniais, o que para muitos dou-
trinadores imporia a contratos de direitos da personalidade a característica de
gratuidade. 12 Por outro lado, não se pode negar serem reconhecidos a determina-
dos direitos da personalidade uma feição dúplice (patrimonial e existencial), tal
como ocorre com os direitos autorais, o direito de imagem – garotos-propaganda
–, além de algumas situações de privacidade e liberdade – a exemplo de reality
shows, permissão de vigilância no trabalho e das chamadas “cláusulas morais”
em contratos.13
Diante disso, cabíveis os questionamentos: por que razão existiria um rol de
direitos da personalidade que admitem essa feição simultânea de natureza patrimo-
nial-pecuniária, e outros não; ou, ainda, quem poderia determiná-los como um ou
outro? Se a pressuposição para as ações deve ser de liberdade, impondo-se funda-
mentação às não-liberdades, o que faria da gestação de substituição remunerada algo
11 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.° 829.726/PR, Rel. Min. Francisco Falcão, Rel.
para o acórdão Min. Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 29 jun. 2006, DJ 27 nov. 2006 p. 254.
12 MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Autonomia privada e dignidade humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p.
203-204; KONDER, Carlos Nelson. O consentimento no Biodireito: os casos dos transexuais e dos wannabes,
Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, ano 4, v. 15, jul-set. 2003, p. 51; TEIXEIRA, Ana Carolina
Brochado. Saúde, corpo e autonomia privada. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 215-216.
13. “A cláusula moral, que encontra correspondência na língua inglesa como moral clause, public image,
good-conduct ou morality clause, garante ao contratante a possibilidade de resolver o contrato (...), caso o
contratado faça algo que possa afetar a sua imagem e, consequentemente, a imagem do contratante. (...)
essa cláusula moral é muito comum em se tratando de contratos f‌irmados entre empresas e atores, atletas
e celebridades, visando atrelar a imagem e talento desses que endossam as marcas e produtos que aquelas
comercializam. Atrelar a imagem de determinada celebridade a uma marca ou produto geralmente envolve
contratos milionários e, quando bem-sucedida, a parceria pode elevar as vendas da empresa ou o valor
de suas ações no mercado” (LEITE, Ana Paula Parra; CONSALTER, Zilda Mara. O caso Ryan Lochte e a
aplicação da cláusula moral no direito negocial brasileiro, Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil,
Belo Horizonte, v. 12, p. 37-57, abr./jun. 2017. Disponível em:
view/32>. Acesso em: 10 nov. 2020, p. 40-41).
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indigno à mulher mais ou menos do que o contrato que realiza ao se comprometer
com a disponibilização de sua imagem e a renúncia à sua privacidade por longo
período em um reality show?
É preciso ter cuidado para não admitir justif‌icativas para uma diferenciação
dessas situações que se baseiem, ao f‌im e ao cabo, em uma sacralização do corpo –
em especial do corpo feminino – e do próprio processo reprodutivo. São inf‌indáveis
os casos nos quais pessoas podem fazer escolhas individuais até mesmo em prejuízo
do próprio corpo (seja voluntariar-se para guerras ou participarem de jogos de alto
impacto com a possibilidade de consequências corporais irreversíveis, como o futebol
americano) sem que sejam impedidas de escolhê-lo.
Assim sendo, conquanto se assuma como certo que deve haver tratamento
diferenciado entre questões existenciais e patrimoniais para que a tutela atraída por
cada uma delas seja adequada às suas características, não parece haver substrato ju-
rídico que autorize conclusão no sentido de que a primazia de situações existenciais
impediria a juridicidade apenas de algumas situações dúplices, até mesmo porque
não se identif‌ica critério que fundamente tal diferenciação.
Isso faz questionar a existência de um “princípio da gratuidade” ou “de não
mercantilização” aplicável às situações existenciais, pois isso demandaria sua apli-
cação como normas apenas a certas situações da realidade, e não a outras, gerando
curiosa incongruência.
O segundo ponto a ser abordado para perquirir sobre a licitude desse contrato
é a verif‌icação sobre se há afronta a bons costumes ou à ordem pública, o que obriga,
inclusive, o enfrentamento da indeterminação que circunda esses conceitos.
Thamis Dalsenter Viveiros de Castro esforçou-se para delimitar o conteúdo da
cláusula de bons costumes, concluindo que este se diferencia quando ela é aplicada a
três tipos distintos de situações: em atos de autonomia de ef‌icácia pessoal (cujos efeitos
restringem-se ao próprio agente) a incidência dos bons costumes não é admitida; ela o
é, todavia, em atos de ef‌icácia interpessoal, que alcançam esferas jurídicas identif‌icáveis
que ultrapassam a do agente, e nos quais incidirão desde que comprovada a afetação
sobre essa esfera exterior; e é admitida em atos de ef‌icácia social, que atingem um
grupo indeterminado de pessoas, prejudicando a coletividade (2017, p. 175-176). A
gestação de substituição encaixa-se no primeiro tipo – ef‌icácia pessoal –, com efeitos
apenas sobre os próprios agentes envolvidos, inibindo a aplicação de referida cláusula.
Já pela “cláusula de ordem pública, vinculam-se as relações privadas aos prin-
cípios constitucionais que garantem interesses comunitários, e não somente indivi-
duais, (...) [aplicando-se] preceitos constitucionais de proteção à pessoa no âmbito
público e no privado”.14 No entanto, os interesses públicos devem ser funcionalizados
às realizações pessoais individuais, como demonstra Ana Carolina Brochado Teixeira:
14. CASTRO, Thamis Dalsenter Viveiros de. Bons costumes no Direito Civil brasileiro. São Paulo: Almedina,
2017, p. 147.
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(...) o conceito de ordem pública, hoje, sofreu mudanças substanciais, não mais remetendo apenas
ao coletivo, ou a suposta preponderância do público sobre o privado. Não se nega que as normas
de tutela coletiva funcionam como limitadoras a atos de autonomia privada que repercutam em
espaços de intersubjetividade, porém deve-se ter em vista também a concepção de ordem pública
que visa à realização da pessoa humana, como novo norte hermenêutico em questões existenciais,
vez que esta passou a ser funcionalizada à realização plena da pessoalidade.15
Ressalta-se ainda, por oportuno, que para a formação sobre o que se entende
por ordem pública aplicável a atos de autonomia privada é necessária a participação
discursiva dos indivíduos que sofrerão incidência dessa norma, já que a “autonomia
é um dos elementos constitutivos da ordem pública”.16 Isso posto, o inegável número
de pessoas dispostas a participar em contratos remunerados de gestação de substi-
tuição (a exemplo de todas as que buscam a prática no exterior) indica o discurso de
agentes sociais sobre uma necessidade humana que clama por ser atendida, cabendo
ao ordenamento funcionalizar o que se entende por ordem pública à plena realização
dessas pessoalidades.
Também neste ponto, a caracterização da gestação de substituição como um con-
trato põe-se a favor dos próprios contratantes, pois cláusulas e ações que se ponham
em contrário aos requisitos de licitude do objeto do negócio em nosso ordenamento
servirão como proteção futura para que, a posteriori, a identif‌icação como ilícito
permita a declaração de invalidade do contrato com as consequências daí cabíveis.
No que tange à forma do negócio jurídico – sendo a forma prescrita ou não defesa
em lei um dos requisitos de validade – admite-se que esta vontade seja exteriorizada
de diferentes maneiras: através da palavra escrita, falada, gestos ou sinais, do próprio
comportamento do agente e, ainda, do silêncio intencional. O formato contratual,
por conseguinte, poderá ser expresso, tácito ou silente e, ainda, escrito ou verbal.17
Ausente lei que disponha especif‌icamente sobre a gestação de substituição no
Brasil, não há forma proibida ou a ser obedecida para sua execução. Todavia, diante
do fato de que é extremamente sensível o objeto e as relações havidas entre gestante
substituta e benef‌iciários, e principalmente com f‌ins de promover a ef‌icácia futura do
contrato, recomenda-se forma escrita e de preferência por instrumento público para
a realização do negócio, assim participando tabelião que goza de fé pública capaz de
atestar capacidade e higidez da vontade dos envolvidos na negociação.
Por f‌im, no tocante ao atendimento de requisitos para que o plano da validade
se apresente intacto em referido negócio, é preciso que a vontade não esteja eivada
de nenhum dos vícios do consentimento: erro, lesão, dolo, coação, estado de perigo e
fraude contra credores. Novamente, a aplicação da sistemática contratual à gestação
15. TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Saúde, corpo e autonomia privada. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p.231.
16. STANCIOLI, Brunello. Renúncia ao exercício de direitos da personalidade: ou como alguém se torna o que
quiser. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 109.
17. LIMA, Taisa Maria Macena de; SÁ, Maria de Fátima Freire de. Gestação de substituição: uma análise a partir
do direito contratual. In: CORDEIRO, Carlos José; GOMES, Josiane Araújo. Temas contemporâneos de direito
das famílias. Vol. 3. São Paulo: Pilares, 2018, p. 465.
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de substituição se apresentaria como forma de obrigar os contratantes a observar
atentamente a informação e a liberdade com que os demais se colocariam no negócio,
sob o risco de que as tratativas sejam invalidadas.
Quanto a isso, antes de adentrar especif‌icamente em cada um dos possíveis
vícios do negócio jurídico, importa destacar que em sendo desobedecida a estrutura
prevista para o negócio nos pontos já narrados, ele estará eivado de invalidade, o que
obrigaria o retorno ao status quo ante de ambas as partes. Todavia, isso não poderia
ser aplicável, na maioria das vezes, à gestação de substituição – pois uma vez im-
plantado o embrião, não há medida lícita para retorno, sob pena de conf‌iguração de
aborto, considerado ilícito no Brasil salvo em exceções quase sempre não aplicáveis
aos casos desse procedimento de reprodução humana assistida.
A conclusão que daí advém é a de que a sanção de invalidade no caso desse ne-
gócio específ‌ico deverá levar a uma consequência distinta, usualmente, o pagamento
de “indenização de valor equivalente”, seja por dano material ou moral, conforme o
caso – este último, quando violado direito da personalidade de um dos negociantes.18
Reconhece-se, decerto, a limitação que a sanção pela violação a direito existencial
possui, em vista da impossibilidade de se quantif‌icar o valor de algo não determi-
nável em dinheiro. Contudo, em grande parte das vezes se trata da melhor forma
objetiva – mesmo por ser a mais genérica e aplicável a todos os casos – até o presente
momento encontrada para ao menos compensar as infrações de ordem moral sofri-
das, em qualquer âmbito de “danos morais” estudados em nosso sistema jurídico.
Assim sendo, a despeito da impossibilidade de retorno ao estado anterior, o
reconhecimento do vício de consentimento ainda se mostra útil pois, se o vício for
causado por uma das partes, seu reconhecimento implicará a prática de ato ilícito
pela má-fé, além da violação a direito da personalidade, obrigando o pagamento de
dano moral. Se houver ocorrido perdas ou danos, também incidirá a indenização
material correspondente. Acima de tudo, evidenciar essas possíveis consequências
pode refrear práticas abusivas, como estímulo a evitar a ocorrência de semelhantes
atitudes.
Acaso incida algum dos vícios sem ato de má-fé de qualquer das partes – como
é o caso do erro, no qual há “espontaneidade, uma vez que a falsa representação da
realidade é fruto da ignorância ou da errônea apreciação das circunstâncias pela pró-
pria pessoa, sem induzimentos de outrem”19 – não será possível falar-se em qualquer
tipo de indenização, demandando formas outras de atuação pelo sistema jurídico
e atentando-se à funcionalização de seus instrumentos à proteção da pessoa. Por
exemplo, quanto ao erro, existe previsão pelo art. 144 do Código Civil referente à
18. RETTORE, Anna Cristina de Car valho de. Gestação de substituição no Brasil: a estrutura de um negócio
jurídico dúplice, existente, válido e ef‌icaz. Dissertação de mestrado. Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais. 2018. Disponível em: eito_RettoreAC_1.pdf>.
Acesso em: 10 nov. 2020, p. 104.
19. MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da validade. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2010,
p. 210-211.
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possibilidade de que o receptor da manifestação de vontade “errada” se ofereça para
executá-la na conformidade da vontade real do manifestante: com isso, competirá ao
Poder Judiciário verif‌icar se, diante da espécie de erro havida no caso concreto, será
ou não exigível determinar que a outra parte atenda a essa vontade real.
Trata-se de vício possível inclusive na modalidade altruísta da gestação de
substituição, por exemplo, no caso de a gestante espontaneamente fazer uma leitura
equivocada da realidade imaginando que receberia dos benef‌iciários auxílio para tudo
o que precisasse exclusivamente pelo fato de estar grávida (roupas para gestante,
medicamentos para enjoo, alimentos indicados por nutricionista, etc.), sem que isso
tenha sido acordado entre eles (e sendo o caso de que, soubesse a gestante de que não
procederiam dessa forma, não teria consentido com o negócio).
Também a lesão é vício que pode ocorrer sem necessária presença de má-fé da
contraparte, pois se dá “quando alguém, premido por necessidade ou levado por inex-
periência, formaliza negócio jurídico em que se obriga a prestação manifestamente
desproporcional ao valor da contraprestação”.20 Nesse caso, como no erro, se não
for identif‌icada má-fé que gere indenização, também caberá ao Judiciário verif‌icar,
no caso concreto, o cabimento de tornar exigível a medida prevista pelo art. 157 §2°
do Código Civil, isto é, de impor oferta de suplemento suf‌iciente pelos benef‌iciários
ou, no caso da gestação remunerada, à gestante reduzir o proveito.
Já o dolo, a coação e o estado de perigo pressupõem a presença de má-fé, ainda
que seja de terceiro, permitindo compensação por indenização:
(...) dolo e coação constituem violência psicológica, deformadora da vontade, só que de naturezas
diferentes. Enquanto no dolo empregam-se apenas ardis maliciosos, a coação se materializa no uso
de ameaças à integridade física ou moral da própria pessoa, de sua família ou de seu patrimônio. A
coação é evidentemente mais grave, uma vez que enquanto age sobre a liberdade da pessoa, com
maior inuência sobre a formação da vontade, o dolo atua, exclusivamente, sobre a inteligência.21
[O estado de perigo] (...) se caracteriza quando alguém, premido pela necessidade de salvar-se, ou
a pessoa de sua família, de grave dano conhecido pela outra parte, assume obrigação excessiva-
mente onerosa. Também o estado de perigo pode referir-se a pessoa que não pertença à família do
gurante (...). A necessidade de salvar-se ou a pessoa de sua família (eventualmente terceiro) deve
existir agora, ser premente. Se havia risco de dano e premência, mas o negócio jurídico somente
foi realizado quando já ultrapassada a urgência, estará excluída a possibilidade de anulação. O
dano temido deve ser grave.22
Por f‌im, a fraude contra credores é, por óbvio, hipótese de vício que atine so-
mente à modalidade remunerada e pode ocorrer mesmo sem má-fé dos benef‌iciários,
pois “não há necessidade de que o devedor ao alienar tenha o intuito, o propósito de
20. MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da validade. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2010,
p. 236.
21. MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da validade. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2010,
p. 211.
22. MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da validade. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2010,
p. 228-229.
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fraudar os seus credores, nem mesmo que tenha consciência ou a ciência de que sua
alienação, por exemplo, o levará à insolvência”,23 caso no qual não se poderá falar
em indenização à gestante.
O art. 159 do Código Civil estatui sanção de anulabilidade a contratos onerosos
do devedor insolvente quando sua insolvência for notória ou houver motivo para ter
sido conhecida pelo outro negociante. Com isso, deve-se concluir que o valor pago
à gestante apenas será vertido ao pagamento dos credores dos benef‌iciários (único
ponto reversível do negócio para o estado anterior) se sua insolvência fosse notória
ou devesse ter sido por ela conhecida; não o sendo, ela permanecerá com o valor.
Por isso, torna-se imprescindível que se exija dos benef‌iciários para participarem
desse contrato que apresentem certidões negativas de débito bem como certidões
de cartórios distribuidores.
É em virtude da possibilidade de aplicação, nos moldes aqui observados, das
normas existentes com relação aos vícios do negócio jurídico, que se tem a garantia
de proteção aos negociantes contra ajuste que os prejudique em níveis que alcancem
as previsões desses vícios. Assim, por exemplo, acaso a gestante se comprometa
com o negócio mediante o recebimento de ínf‌ima remuneração, por inexperiência
(verif‌icável no caso concreto) que a leve a fazer uma errônea representação da reali-
dade crendo que se trataria de valor idôneo, lhe será disponibilizada proteção pelo
ordenamento conforme precedentemente narrado sobre o erro.
4.3. Regras e institutos contratuais aplicáveis e não aplicáveis à gestação de
substituição
Como já se expôs, a teoria contratual clássica, adotada por nosso Código Civil,
por ter sido desenvolvida para situações patrimoniais, demanda uma releitura de
seus institutos para que a aplicação a situações existenciais não desvirtue o propó-
sito de proteção dos contratantes, já que estas últimas demandam tutela adequada
às suas características. Passa-se, então, à análise de alguns institutos contratuais do
Código para explicitar se são ou não de aplicação cabível a contratos de gestação de
substituição.
De saída, não se pode entender cabível a aplicação dos arts. 427 e seguintes
do Código Civil – que tratam da formação dos contratos e são voltados à lógica
contratual – pois a rigidez de tratamento com relação à formalização da proposta
e à aceitação não é a tutela adequada às situações existenciais. Nelas, em especial
na gestação de substituição, caso haja desistência pelo proponente ou pelo oblato
é melhor que se materialize do que levar adiante o negócio considerando obrigado
qualquer dos envolvidos.
23. MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da validade. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2010,
p. 243.
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Quanto ao exercício de direito de arrependimento pelos contratantes, por se
tratar a gestação de substituição de exercício de direito da personalidade pela ges-
tante, não há como lhe negar direito de arrependimento, ao menos até a nidação do
embrião. Da mesma forma, o exercício do direito ao livre planejamento familiar e da
paternidade responsável pelos benef‌iciários são de ordem existencial, não se podendo
obrigá-los a serem pais, razão pela qual impera igualmente admitir o arrependimento
até a nidação.
Rose Melo Vencelau Meireles ensina que em vista da impossibilidade de tratar
situações existenciais como pretensão a obter prestação igual ou equivalente à que
o sujeito se obrigou na relação, não há que se falar em coercibilidade ou execução
forçada, mas apenas em responsabilização civil por perdas e danos, até mesmo pela
tutela da conf‌iança da contraparte.24 Não há meio aceitável para obrigar gestante ou
benef‌iciários à continuidade do procedimento se se arrependeram antes da nidação
do embrião (ou da implantação, a depender do ponto de vista da gestante que deve
ser consensualmente esclarecido previamente, pois já se trata de intervenção em seu
corpo). Como, todavia, pensar essa responsabilização civil?
Na modalidade altruísta, impõe-se concluir que “não se deve imputar àquela
que tem a intenção de realizar uma liberalidade deveres de natureza pecuniária em
favor de eventuais benef‌iciários (...)[, o]s pais jurídicos devem assumir os ônus e os
riscos, (...) [sob pena de] violação ao princípio da justiça contratual”.25
Todavia, em contrapartida, se forem os benef‌iciários a exercer o direito de arrepen-
dimento, não podem deixar de ser responsabilizados a pagar perdas e danos à gestante,
inclusive lucros cessantes, se os houver (por exemplo, se ela tiver sido obrigada a se
ausentar do trabalho em razão da gravidez); bem como, querendo a gestante e a depen-
der do grau de avanço temporal do caso concreto, danos morais em razão de violação
a seu direito da personalidade, já que o exercício de sua autonomia corporal para se
submeter a tratamentos hormonais invasivos, etc., deu-se em prol da gestação de um
bebê e, por atuação culposa dos benef‌iciários, tais mudanças em seu corpo acabarão
por ter ocorrido sem qualquer objetivo com o qual ela tenha consentido.
Uma alternativa à responsabilização civil, a qual dependerá de judicialização
para f‌ixação do quantum indenizatório, é de prever no negócio jurídico cláusula de
jus poenitendi (ou multa penitencial), cujos termos são explicitados por Orlando
Gomes à luz do contexto contratual, mas aplicáveis à situação aqui tratada, como
se demonstrará:
Podem as partes estipular que o contrato será resilido se qualquer delas se arrepender de o haver
concluído. Asseguram-se convencionalmente o poder de resili-lo mediante declaração unilateral
24. MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Autonomia privada e dignidade humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p.
253; 296.
25. LIMA, Taisa Maria Macena de; SÁ, Maria de Fátima Freire de. Gestação de substituição: uma análise a partir
do direito contratual. In: CORDEIRO, Carlos José; GOMES, Josiane Araújo. Temas contemporâneos de
direito das famílias. Vol. 3. São Paulo: Pilares, 2018, p. 473.
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de vontade. A autorização não provém da lei, mas, no caso, do próprio contrato. São, realmente,
os próprios contratantes que estipulam o jus poenitendi.
Normalmente, o exercício da faculdade de arrependimento tem sua contrapartida no pagamento
de multa penitencial. (...) Estipulada a multa penitencial, a parte que faz jus a seu recebimento
não pode opor-se à resilição do contrato, visto que o arrependimento da outra parte é faculdade
contratualmente assegurada. Pagado a multa, libera-se do vínculo. Não é outra sua função.
A multa penitencial não se confunde com a cláusula penal, que pressupõe a inexecução do
contrato ou o inadimplemento de obrigações contratuais, correspondendo ao ressarcimento dos
danos respectivamente provenientes. A multa penitencial nada tem a ver com a execução do
contrato. É devida como compensação do exercício da faculdade de arrependimento. Garante
o poder de resilir, de sorte que o contratante arrependido mais não tem a fazer do que pagar a
multa, desvinculando-se por seu mero arbítrio.26
Se as partes estabelecem de comum acordo uma “faculdade de arrependimento”
por qualquer delas, caso esta venha a ser exercida, não será possível falar em inexe-
cução negocial (e sim resilição), nem, por conseguinte, em responsabilização civil.
Por isso, será devido apenas o pagamento da multa consensualmente estabelecida
(e que pode sê-lo para cada uma das fases do procedimento, segundo o avanço de
seus estágios), nada mais. Na modalidade altruísta, pelos argumentos já expendidos,
a multa penitencial poderá ser f‌ixada apenas para o caso de arrependimento pelos
benef‌iciários, mas não pela gestante, que age por liberalidade.
Note-se que o “direito ao arrependimento” difere da “faculdade de arrependi-
mento” negocialmente estabelecida e mencionada por Orlando Gomes. Pelo exer-
cício do “direito ao arrependimento”, a gestante pode não mais desejar seguir com o
procedimento para engravidar, exercitando direito da personalidade à sua autonomia
corporal, e os benef‌iciários podem não mais desejar a parentalidade naquele momento.
Trata-se de direitos que emanam da pessoalidade, de modo que esse arrependimento
não poderá ser inviabilizado na medida em que decorre da cláusula geral de tutela
da pessoa humana. Tal direito à revogação costuma inexistir na seara contratual, à
qual se vincula o princípio da obrigatoriedade.27
A “faculdade de arrependimento”, por sua vez, é consensualmente estabelecida
e surge da vontade das partes: se não for prevista, o arrependimento implicará inexe-
cução negocial e gerará responsabilidade civil; se o for, o arrependimento será apenas
o exercício da faculdade de resilir e implicará, quando for o caso, o pagamento da
multa penitencial prevista. Como se vê, a segunda opção oferece maior segurança e
previsibilidade, desde logo gerenciando expectativas inclusive para o caso de frus-
tração do acordado por qualquer dos envolvidos – o que é a exata razão pela qual
esse instituto do direito contratual, conquanto criado para a lógica patrimonialista,
merece ser visto como tutela adequada a essa situação jurídica existencial.
26. GOMES, Orlando. Contratos. 25. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 187.
27. MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Autonomia privada e dignidade humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p.
247.
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Já na modalidade remunerada da gestação de substituição, além da multa
penitencial, surge como possibilidade também a f‌ixação de cláusula acessória ati-
nente a arras penitenciais (equivalente ao “sinal” dado como primeira parcela de
pagamento),28 que f‌iguram no art. 420 do Código Civil e, como a multa penitencial,
também se relacionam ao reconhecimento negocial de um direito (rectius, faculdade)
de arrependimento – sendo que arras não se aplicariam à gestação altruísta porque
nela inexiste sinal, por inexistir pagamento. Por meio das arras penitenciais, se os
benef‌iciários se arrependerem, o que pagaram de sinal servirá como indenização à
gestante; já se a gestante se arrepender, terá de devolver o sinal recebido e pagar valor
equivalente aos benef‌iciários.
Assim como a multa penitencial, as arras também não admitem a busca de inde-
nização suplementar, por expressa disposição do mencionado art. 420. A diferença
entre uma e outra atine ao fato de que, pelas arras penitenciais, a gestante se vê por
um lado benef‌iciada por receber o sinal antecipadamente e não ter de buscar rece-
ber a quantia após eventual arrependimento dos benef‌iciários; por outro lado, elas
podem lhe ser desfavoráveis por se restringir ao valor do sinal, o qual não poderá ser
vinculado a montantes proporcionais ao estágio de avanço dos procedimentos para
a gestação tal qual permite a multa penitencial.
Diga-se, por f‌im, quanto ao direito de arrependimento das partes, que a indeni-
zação aqui tratada, salvo nas exceções mencionadas (quando tiver havido violação a
direito da personalidade), refere-se apenas a perdas e danos: “[a]nte a incoercibilidade
das situações existenciais, compete ao denunciante apenas indenizar o prejudicado
dos danos que eventualmente a resilição unilateral ocasionar”.29 Não as havendo (a
exemplo de arrependimento da gestante antes da realização de procedimentos clíni-
cos), “[a] mera expectativa gerada com a declaração de vontade não é suf‌iciente para
o surgimento da obrigação de indenizar. (...) Revogar o ato de autonomia existencial
é ato lícito e, como tal, não gera o dever de indenizar”.30
É, outrossim, possível admitir que no contrato de gestação de substituição
sejam def‌inidos comportamentos com os quais a gestante deverá ou não pode-
rá se comprometer. Novamente, isso representará o exercício de um direito da
personalidade seu, referente à sua autonomia corporal e livre uso do corpo. Por
meio desse exercício, a mulher se prestará não apenas a gestar o bebê alheio como
se vinculará a certos comportamentos negocialmente acordados, a exemplo de
não pintar o cabelo, fumar, consumir bebidas alcoólicas ou até mesmo de não
28. LIMA, Taisa Maria Macena de; SÁ, Maria de Fátima Freire de. Gestação de substituição: uma análise a partir
do direito contratual. In: CORDEIRO, Carlos José; GOMES, Josiane Araújo. Temas contemporâneos de direito
das famílias. Vol. 3. São Paulo: Pilares, 2018, p. 473.
29. MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Autonomia privada e dignidade humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p.
296-297.
30. MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Autonomia privada e dignidade humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p.
262.
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se submeter a atividades de risco, sejam prof‌issionais ou esportivas, no período
gestacional.
Esse tipo de vinculação comportamental já é usualmente encontrado em outros
contratos atinentes ao exercício de direitos da personalidade, f‌irmados entre pessoas
e empresas mediante a vinculação da imagem do contratado à marca, o que, por via
transversa, exige que este se obrigue à restrição de determinados comportamentos
ou frequência a certos lugares, exatamente porque algo reprovável que venha a
fazer poderá repercutir no valor da marca. Nesses casos, o exercício é não apenas
do direito à imagem, mas também de direitos à liberdade, privacidade, intimidade
e, possivelmente, até mesmo à autonomia corporal, quando previstas restrições ao
consumo de certos itens. Trata-se do estabelecimento de uma “cláusula moral”, já
mencionado anteriormente.
Conquanto a vinculação negocial a certos comportamentos seja legitimada pela
tão só possibilidade de exercício da autonomia corporal pela pessoa, isso apenas se
fortalece quando também corresponde a meios de preservação do bom desenvolvi-
mento fetal. Todavia, ainda que nem todas as previsões de uma cláusula moral guardem
esse intento – a exemplo de negociação pela abstinência sexual da gestante em lugar
da obrigatoriedade do uso de preservativo, cuja ef‌icácia de proteção ao bebê seria a
mesma, salvo por alguma peculiaridade médica –, entende-se igualmente aceitável
que a gestante, em exercício de sua autonomia, possa com elas consensualmente se
comprometer.
Decompondo a situação jurídica da gestante neste contrato, quando ela se
compromete a ter ou evitar certos comportamentos, isso serve, a uma, ao recebi-
mento de contrapartida f‌inanceira (situação patrimonial), sem abrir mão, a duas, da
intenção de que sua disponibilidade corporal se atenha exclusivamente aos limites
consentidos (situação existencial). Cada um desses objetivos fará atrair uma tutela
diferente e específ‌ica.
Se violado o contrato em relação à situação patrimonial, a tutela atraída será
a usualmente vertida a situações patrimoniais, porque negocialmente consolidado
um direito subjetivo da gestante. Consequentemente, é cabível a execução judicial
do débito, condenação ao pagamento de eventuais danos patrimoniais, aplicação
de juros de mora ainda que não tenham sido convencionados (art. 406 do Código
Civil), etc. Também para esse caso parece ser vantajoso que as partes desde logo
insiram no negócio cláusulas penais compensatórias/moratórias, garantindo maior
previsibilidade de efeitos da avença.
Entretanto, na hipótese de transgressão de termos negociais atinentes à situação
jurídica existencial, a tutela atraída será diversa. Caso os benef‌iciários insistam em
exigências comportamentais que ultrapassam o negociado com a gestante, a violação
de direito da personalidade comanda a aplicação do caput do art. 12 do Código Civil,
possibilitando que ela exija que cesse a ameaça ou lesão a seu direito e/ou, se for o
caso, pleiteie a condenação ao pagamento de danos morais.
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Não obstante, é de se reconhecer que mesmo no caso de os benef‌iciários pre-
tenderem exigir da gestante comportamentos que não ultrapassam o negociado (e
sim que tenham sido consentidos), não lhes será permitido demandar pela tutela
específ‌ica, sob pena de violação da autonomia corporal da mulher que, como direito
da personalidade, goza de especial proteção pelo ordenamento. Se o f‌izerem, é a ges-
tante quem poderá exigir que cesse a ameaça ou lesão a direito seu e, a depender do
caso, pleitear danos morais, desde que não se conf‌igure, neste último caso e diante
da situação concreta, abuso de direito.
Assim como o pai biológico de uma criança não possui condições jurídicas para
impedir comportamentos da mãe biológica durante a gestação do f‌ilho comum, sejam
eles casados ou não31 – sendo possível cogitar o contrário salvo no caso de compor-
tamos ilícitos da gestante que inequivocamente atentem contra o desenvolvimento
saudável do f‌ilho –, o mesmo se aplica aos benef‌iciários, independentemente de sua
pretensão apoiar-se em cláusula negocial regular.
Quanto a estes danos morais que podem ser pleiteados pela gestante, uma vez
que não mais será possível, na altura da vigência desta cláusula (isto é, já no curso da
gestação), falar-se em possibilidade de arrependimento, torna-se incabível a previsão
de multa ou arras penitenciais. Todavia, nada há que impeça às partes negociar a
previsão de um valor a ser pago a título de danos morais no caso de eventual infração,
por meio da inserção de uma cláusula penal compensatória no negócio, instituto que
Orlando Gomes leciona ser voltado ao “inadimplemento de obrigações contratuais,
correspondendo ao ressarcimento dos danos respectivamente provenientes”.32
Ainda que a cláusula penal esteja usualmente relacionada a perdas e danos
(portanto, a danos patrimoniais), ela parece também se adequar à previsão do quan-
tum de danos morais feita pelas partes no próprio negócio, exatamente por garantir
maior segurança jurídica às partes ao propiciar previsibilidade de efeitos negociais
ainda que na possibilidade de sua frustração, uma vez que, pelo parágrafo único do
art. 416 do Código, restarão impedidos de exigir indenização complementar, salvo
previsão negocial.
Porém, se, da perspectiva dos benef‌iciários, o interesse é de garantir aderência
da gestante aos comportamentos aos quais anuiu no negócio, mas a eles não é per-
mitido exigir tutela específ‌ica, certo é que inexiste impedimento para que prevejam
cláusula penal compensatória pelo descumprimento do avençado – com relevante
caráter dissuasivo – podendo o valor estabelecido ref‌letir proporcionalmente o da
remuneração principal. “(...) [A] estipulação de cláusula penal para obrigações so-
31. OTERO, Marcelo Truzzi. Contratos de gestação por outrem gratuitos e onerosos. In: TEIXEIRA, Ana Ca-
rolina Brochado; DADALTO, Luciana (coords.). Dos hospitais aos tribunais. Belo Horizonte: Del Rey, 2013,
p. 291.
32. GOMES, Orlando. Contratos. 25. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 187.
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bre os direitos da personalidade é válida. O inadimplemento daquele que se obrigou
quanto aos seus direitos da personalidade gera responsabilidade contratual”.33
Na ausência de uma tal cláusula, poderão buscar junto ao Judiciário a conf‌igura-
ção de responsabilidade civil da gestante, se comprovado que o descumprimento lhes
gerou dano material (por complicação na gravidez que onerou custos do tratamento,
ou posteriormente, se tiver havido ref‌lexos no f‌ilho que demandem gastos não or-
dinários, etc.) e/ou moral (pela violação a direito da personalidade, sustentando-se,
por exemplo, violação do direito ao planejamento familiar que exerceram por meio
daquele negócio, indissociável dos direitos ao livre desenvolvimento da pessoalidade
e à dignidade, assim se incluindo na categoria dos direitos da personalidade já que
o rol presente no Código Civil não é taxativo).
Todavia, diante da análise aqui empreendida, impera concluir que no caso da
gestação de substituição altruísta não há sentido na previsão de cláusula moral para
comportamentos da gestante salvo com o intuito de orientá-la sobre o que entendem
ou não adequado fazer (tipo de orientação cuja relevância, todavia, não se ignora, até
mesmo em vista de que a própria negociação dos termos dessa diretriz pode se prestar
a um maior acerto de vontades). Isso porque, como visto, é impossível a pretensão
de os benef‌iciários obterem tutela específ‌ica, além de também não ser cabível a res-
ponsabilização civil da gestante, por não se poder imputar àquela que realiza uma
liberalidade deveres de natureza pecuniária em favor de eventuais benef‌iciários, sob
pena de violação ao princípio da justiça contratual.34 Nos negócios altruístas, portan-
to, não é cabível a f‌ixação de cláusula penal compensatória em razão de quaisquer
comportamentos da gestante.
De mais a mais, em qualquer dos casos e independentemente da existência de
negócio jurídico ou cláusula específ‌ica, não se pode esquecer que se de um com-
portamento indevido da gestante resultar prejuízo ao desenvolvimento do bebê,
isso corresponderá ao exercício de ato ilícito, na medida em que, a uma, por ação
ou omissão voluntária, violou direito e causou danos a outrem (aos benef‌iciários e/
ou à criança), e a duas, excedeu os limites do direito ao livre uso do corpo postos,
no mínimo, pelos ditames da boa-fé objetiva – o que por si dá azo à cobrança de
indenização pelo ofendido.
Indo além, é importante investigar a possibilidade de retenção da criança pela
gestante no caso de algum descumprimento contratual por parte dos benef‌iciários,
ou a executoriedade da cláusula de entrega do bebê, ou, ainda, a possibilidade de
recusa pelos benef‌iciários quanto ao recebimento da criança. Como já dito, o objeto
contratual neste caso não é a criança, mas sim o exercício de direito da personalidade
33. BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. A disponibilidade relativa dos direitos da personalidade. In: BORGES,
Roxana Cardoso Brasileiro. Disponibilidade dos direitos de personalidade e autonomia privada. São Paulo:
Saraiva, 2005, p. 121.
34. LIMA, Taisa Maria Macena de; SÁ, Maria de Fátima Freire de. Gestação de substituição: uma análise a partir
do direito contratual. In: CORDEIRO, Carlos José; GOMES, Josiane Araújo. Temas contemporâneos de direito
das famílias. Vol. 3. São Paulo: Pilares, 2018, p. 473.
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pela gestante, o que por si já torna impossível retê-la por descumprimento. Mais do
que isso, sendo a f‌iliação determinada como dos benef‌iciários, eventual retenção
por parte da gestante dará azo à aplicação de regras de direito de família atinentes ao
poder familiar, cabendo aos pais reclamar o f‌ilho de quem ilegalmente o detenha (art.
1.634 do Código Civil), inclusive pela via da busca e apreensão se necessário, sem
que isso dependa de execução de cláusula contratual. Por sua vez, eventual recusa
será caracterizada como abandono pelos pais, daí também advindo as consequências
cabíveis no âmbito do direito de família.
4.4. Contratos coligados
É de se reconhecer, indo além, que o contrato de gestação de substituição não
se resume apenas ao que f‌irmam gestante e benef‌iciários. Af‌inal, para viabilizar a
reprodução humana assistida por gestação de substituição é imprescindível a cele-
bração de negócios coligados, na medida em que a ausência de qualquer um deles
impedirá a realização da técnica.35
Tratam-se dos negócios que devem ser necessariamente f‌irmados entre a gestante
e a clínica/médico responsável pelo procedimento, bem como entre benef‌iciários e
clínica/médico. Quanto a este último, não há dúvida de que abarca a f‌igura de um
contrato de prestação de serviços médicos, oneroso e comutativo, no qual os bene-
f‌iciários, além de arcar com todo o custo do procedimento necessário aos cuidados
com a gestante de substituição, deverão pagar os honorários ajustados com o pro-
f‌issional médico/clínica.
Já no negócio jurídico formado entre a gestante e o médico/clínica tem-se que a
simples circunstância de o médico preparar a paciente e transferir o embrião para o
seu útero já faz nascer uma relação jurídica contratual entre eles, sem que a paciente
assuma qualquer dever de natureza econômica, porquanto todos os custos do pro-
cedimento, inclusive os honorários do prof‌issional, estão abrangidos no contrato
celebrado entre os benef‌iciários e o médico/clínica de reprodução assistida (o que
revela o liame existente entre os três contratos, criando uma união de contratos por
dependência). A importância deste negócio, todavia, reside na obrigação do médico
de obtenção do consentimento informado.
5. CONCLUSÃO
A prática jurídica guarda complexidade que põe em xeque divisões dogmáti-
cas tradicionais do Direito e, ao mesmo tempo, faz clamar para que microssistemas
jurídicos se entrelacem na busca de soluções mais adequadas aos problemas postos
pela realidade.
35. LIMA, Taisa Maria Macena de; SÁ, Maria de Fátima Freire de. Gestação de substituição: uma análise a partir
do direito contratual. In: CORDEIRO, Carlos José; GOMES, Josiane Araújo. Temas contemporâneos de direito
das famílias. Vol. 3. São Paulo: Pilares, 2018, p. 467-471.
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A GESTAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO
Para a gestação de substituição, como se pretendeu defender e demonstrar neste
estudo, é a mistura de institutos da teoria geral dos direitos da personalidade e dos
contratos com o próprio direito de família que melhor se apresenta para compor uma
solução jurídica mais compatível com essa nova demanda social. Da mesma forma,
a própria releitura do direito contratual para adequá-lo à emergência de proteção de
situações jurídicas existenciais já faz demandar sua penetração por questões de di-
reitos da personalidade e direito civil-constitucional que superam cisões dogmáticas
ou didáticas às quais juristas encontravam-se acostumados.
Diante disso, tem-se a proposta de que mesmo o modelo de gestação de substituição
já realizado no Brasil, sob a égide de normatização pelo Conselho Federal de Medicina,
já seja analisado como um contrato da perspectiva jurídica, por entender-se que assim
há melhores condições de proporcionar aos participantes a aplicação de institutos
jurídicos já desenvolvidos para regulamentação de relações civis, em lugar da atual
situação de insegurança que se verif‌ica para solver conf‌litos que eventualmente possam
se verif‌icar, sem a necessidade de desenvolvimento de normas jurídicas específ‌icas
para aplicação a estas relações. Mais do que isso, diante da análise da atual formatação
jurídica de nosso ordenamento, mostrou-se possível concluir pela inexistência de lei
proibitiva de uma execução remunerada dessa técnica, a qual também tem o condão de
gozar de instrumentos de proteção jurídica já desenvolvidos por nosso sistema legal.
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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EBOOK CONTRATOS FAMILIA E SUCESSOES.indb 164EBOOK CONTRATOS FAMILIA E SUCESSOES.indb 164 22/03/2021 09:02:4122/03/2021 09:02:41

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