Hipótese de incidência

AutorDaniel Pulino
Ocupação do AutorProfessor de Direito Previdenciário da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Procurador do Instituto Nacional do Seguro Social
Páginas111-153

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1. Critério material

Incluem-se no chamado critério material, ou núcleo da hipótese de incidência da norma jurídica, os fatores nela considerados como

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suficientes para caracterizar, em face da infinidade de possibilidades do mundo fenomênico, aquela específica situação que deverá ser disciplinada pela conseqüência normativa.

Assim verificada, concretamente, a ocorrência de evento que se encaixe, por assim dizer, na previsão da hipótese normativa — e uma vez relatada essa ocorrência de acordo com a linguagem estabelecida pelo Direito — nasce a obrigação previdenciária, formandose a relação jurídica de prestação, por meio da qual se impõe a determinado sujeito (passivo) o dever de conceder a outro (o ativo) o benefício.

Vejamos como se encontra caracterizada na lei previdenciária a situação jurídica que se quer proteger por meio do presente benefício.

Comporão o critério material da regra-matriz de incidência da aposentadoria por invalidez propriamente dita a descrição da contingência social (o conceito legal de invalidez), do período de carência e da causa da contingência (“risco”). Vejamos de que forma podemos assim raciocinar.

1.1. Contingência social: o conceito jurídico de invalidez

A rigor, a noção de invalidez não é dada, por completo, diretamente por nossa Constituição, mas seu conceito legal já é tradicional em nosso direito e — eis o que realmente importa — perfeitamente compatível com o atual Texto Magno, como veremos, valendo-nos para tanto do art. 42 da Lei n. 8.213/91, cujo caput prescreve:

Art. 42. A aposentadoria por invalidez, uma vez cumprida, quando for o caso, a carência exigida, será devida ao segurado que, estando ou não em gozo de auxílio-doença, for considerado incapaz e insusceptível de reabilitação profissional para o exercício de atividade que lhe garanta a subsistência, e serlhe-á paga enquanto permanecer nesta condição.

Este artigo, que veicula basicamente — mas não totalmente, como logo veremos — a contingência social descrita no critério material da estrutura normativa da aposentadoria por invalidez, permite-nos extrair dois elementos: de um lado, a permanência da incapacidade de trabalho (já que o segurado tem que ser dado como “insuscetível de reabilitação para o exercício de atividade” outra) e, de outro, a substancial, ampla extensão da incapacidade laborativa (vez que o segurado não é capaz de empreender-se em trabalho “que lhe garanta a subsistência”).

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É oportuno observar, desde logo, que somente por aproximação poderíamos dizer que o evento desencadeador do benefício em estudo é a incapacidade total e definitiva do segurado.

A rigor, tais expressões, com as quais não infreqüentemente tem sido designada a invalidez, tornam-se imprecisas quando utilizadas à luz de nosso regime jurídico-previdenciário, de forma que preferimos não adotá-las, empregando, em substituição, as palavras “substancial” (ou ampla) e “permanente” para nos referirmos, na exposição da matéria, àquilo que ordinária e respectivamente se designa com os vocábulos “total” e “definitiva”136. O próprio texto da lei, aliás, em certa passagem vale-se desses termos (cf. art. 43, § 1º: “... incapacidade total e definitiva para o trabalho...”), os quais, no entanto, se não limitados na extensão de sua real significação jurídica, podem induzir a confusões, como poderemos ver a breve trecho.

A incapacidade do segurado há de ser, portanto, substancial e permanente, para que seja devida a aposentadoria por invalidez.

Da reunião desses dois elementos é que se deduz o núcleo do conceito jurídico de invalidez aplicável ao regime geral de previdência social. Ou, dito de outro modo, é a partir deles que se forma a contingência descrita no critério material da aposentadoria por invalidez, a qual pode ser didaticamente sintetizada na expressão ficar inválido. É a situação de necessidade social decorrente dessa contingência que o direito procura proteger, valendo-se para tanto da concessão da aposentadoria em exame.

Dado, assim, o conceito que nos parece mais útil para a compreensão da disciplina, no âmbito do regime geral de previdência social — objeto exclusivo de nossas preocupações —, cuidemos de

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analisar cada um daqueles dois elementos que o formam (substancialidade e permanência), a fim de que possamos apreendê-lo em sua real significação.

Não é demais ressaltar, contudo, que o problema de conceituar a invalidez é não apenas o ponto crucial do benefício em exame como, seguramente, uma das questões mais complexas de todo o direito previdenciário.

Essa dificuldade não passou despercebida por Pereira Leite, que, em passagem relativa a uma das características da invalidez, observou, com argúcia, como a perfeição da lógica teórica do benefício pode não encontrar correspondência em face das inúmeras questões práticas que costumam acompanhar a sua concessão: “A natureza definitiva (no sentido de vitalícia) ou precária da aposentadoria por invalidez sempre suscitou dúvida. Em princípio, a partir da Lei Orgânica, de 1960, é precária a duração deste benefício, ou seja, perdura enquanto persiste seu pressuposto fundamental. Se o segurado recupera a capacidade para o trabalho, a aposentadoria deve ser cancelada. Como a aposentadoria é por invalidez, cessada esta, há de cessar a prestação correspondente. A clareza do raciocínio lógico mascara sérias dificuldades, tais como a relatividade dos exames voltados a constatar a recuperação, a perda da capacidade laborativa por longo período de afastamento, o subemprego ou o desemprego, etc.137.

Ainda a propósito dessa dificuldade, releva observar que, já há muitos anos, Augusto Schmidt Júnior havia observado, entre nós, ao comentar o seguro contra invalidez, velhice e morte, que “O único conceito que apresenta alguma dificuldade de definição é o de invalidez”138.

Essa “natural” dificuldade conceitual reflete-se também na doutrina, na própria via administrativa e na jurisprudência, já que dá origem a profundas disputas quanto à delimitação da noção legal de invalidez, como se verifica tanto aqui, em nosso País, quanto no exterior139.

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O tema é verdadeiramente tormentoso, mas apesar disso procuraremos abordá-lo, dentro da linha conceitual adotada neste trabalho, a partir do nosso atual sistema previdenciário, evitando limitarmo-nos à simples — e praticamente estéril — repetição das palavras da lei.

1.1.1. Substancial incapacidade

Dentro da complexidade conceitual que viemos de apontar, uma das maiores dificuldades que se apresentam na matéria consiste justamente em precisar a extensão da incapacidade laborativa que dá direito ao segurado de receber este benefício.

Apesar dessa dificuldade, não se pode entender, em nosso direito previdenciário, que o “fato gerador” deste benefício assenta-se na incapacidade absoluta, total, completa do segurado, no sentido de que ele deva estar completamente impossibilitado de exercer qualquer tipo de trabalho.

Com efeito, o que deve haver para que o segurado faça jus ao benefício é, na dicção da lei, a sua insusceptibilidade de reabilitação “para o exercício de atividade que lhe garanta a subsistência”.

Essa expressão final do dispositivo legal, se tomada num primeiro — e superficial — exame, poderia levar o intérprete a imaginar, caso restasse ao segurado uma capacidade laborativa residual, ainda que muito reduzida, suficiente para exercer apenas um trabalho de qualificação bem menor do que aquele para o qual ele se achava apto antes de sua incapacitação, que não teria cabida a concessão da aposentadoria, uma vez que essa outra atividade daria ao segurado condições de produzir renda suficiente para superar ao menos o limite de estrita subsistência (imaginemos, por exemplo — para nos determos num parâmetro objetivo do sistema jurídico — que sua capacidade residual permita apenas o exercício de atividades remuneradas com um salário mínimo).

Ora — poder-se-ia pensar — não se poderia subsumir este caso hipotético à regra do art. 42 da Lei, porque o segurado está apto a desenvolver trabalho que lhe permite ultrapassar a barreira da subsistência, não tendo havido, assim, a situação de necessidade consistente na completa perda de rendimento.

Esse raciocínio, no entanto, não é válido — ou, com maior rigor, ele não é necessariamente válido — em nosso ordenamento jurídico-positivo, porque, como veremos na seqüência, não é a esse nível de subsistência nem tampouco a esse estado de necessidade que

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se refere o art. 42 anteriormente transcrito. Para entendermos isso, será fundamental invocarmos o regime jurídico-previdenciário, sobre o qual nos detivemos na parte geral.

1.1.1.1. Contributividade e valor dos benefícios previdenciários

Nosso sistema constitucional de seguridade social compreende, como vimos, a concessão de prestações de saúde, previdência e assistência social. Já observamos, no entanto, que enquanto as ações de...

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