I os sistemas processuais penais e a produção da verdade

AutorSalah H. Khaled JR
Páginas39-176
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OS SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS
E A PRODUÇÃO DA VERDADE
1. OS SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS E A
QUESTÃO DA PRODUÇÃO DA VERDADE
A primeira etapa de nossa investigação tratará o problema da produ-
ção da verdade através de uma investigação de caráter histórico sobre a
forma com que os diferentes sistemas processuais enfrentaram a questão,
objetivando realizar uma discussão sobre a caracterização dos sistemas e
dos respectivos modos de produção da verdade. Portanto, a abordagem é
proposta com a intenção de estabelecer historicamente a questão da pro-
dução da verdade por meio de um exame dos sistemas processuais penais
concretamente considerados.
De acordo com Armenta Deu, a história do processo penal retrata uma
constante alternância entre dois sistemas: o acusatório e o inquisitório,
sem que possa ser sustentada a vigência em sua plenitude de nenhum
deles.23 A posição da autora é quase unânime na doutrina, que discute e
problematiza o processo penal a partir dos sistemas referidos, consideran-
do que hoje em dia não existem sistemas puros em vigor. A partir dessa
premissa, as opiniões divergem muito no que se refere à caracterização
dos sistemas concretos como inquisitórios ou acusatórios e na própria ad-
missão de existência de um sistema misto.24 Segundo Aragoneses Alonso,
respondendo a princípios diametralmente opostos, os sistemas chegaram
23 ARMENTA DEU, Teresa. Principio acusatorio y derecho penal. Barcelona: JM Bosch,
1995. p. 11.
24 Como observa Lopes Jr., “ora, af‌irmar que o ‘sistema é misto’ é absolutamente in-
suf‌iciente, é um reducionismo ilusório, até porque não existem mais sistemas puros
(são tipos históricos), todos são mistos. A questão é, a partir do reconhecimento de
que não existem mais sistemas puros, identif‌icar o princípio informador de cada sis-
tema, para então classif‌icá-lo como inquisitório ou acusatório, pois essa classif‌icação
feita a partir do seu núcleo é de extrema relevância”. LOPES JR., Aury. Direito proces-
sual penal e sua conformidade constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 56.
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a manifestar-se em formas totalmente puras, ou em função de desloca-
mentos históricos, houve inf‌luência recíproca ou convivência de princí-
pios.25 Para Badaró, o contexto atual apresenta combinações de caracte-
rísticas dos dois sistemas: ora o processo é majoritariamente acusatório,
ora apresenta maiores características inquisitórias.26 De qualquer forma,
a discussão em torno da estrutura acusatória ou inquisitória dos sistemas
é o postulado do qual partem as análises em torno da caracterização dos
sistemas processuais penais.
Trata-se de uma abordagem clássica, da qual raramente a doutrina se
abstém, motivo pelo qual merece menção a posição de Montero Aroca.
Para o autor, somente o processo acusatório pode ser considerado como
verdadeiro processo, não cabendo ao procedimento inquisitório essa
qualif‌icação; o autor considera que não há processo inquisitório, pois o
processo inquisitório não foi nem pode ser considerado um verdadeiro
processo.27 Embora a posição de Montero Aroca deva ser respeitada, uma
vez que no sentido contemporâneo de processo exigível em um Estado
Democrático de Direito somente a conf‌iguração acusatória mereceria a
designação, concordamos com Bachmaier-Winter, que considera duvidosa
a utilidade e relevância de reduzir a noção de processo ao processo acu-
satório.28 Do que seria então chamado o processo inquisitório? Práticas
ou método? Para a autora, a posição de Montero Aroca rompe desneces-
sariamente com concepções historicamente assentadas nos estudos pro-
cessuais, entendimento do qual compartilhamos, escolhendo introduzir a
temática da produção da verdade no processo a partir da discussão histó-
rica sobre os sistemas.29
25 ARAGONESES ALONSO, Pedro. Instituciones de derecho procesal penal. Madrid: Rubi
Arts Graf‌icas, 1986. p. 39.
26 BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 102.
27 MONTERO AROCA, Juan. Principios del proceso penal. Valencia: Tirant Lo Blanch,
1997. p. 28-30.
28 Também merece menção a leitura processual de Fazzalari, para quem o que de-
termina propriamente o processo é o seu caráter de procedimento em contraditório,
o que potencialmente coloca em questão a existência de um processo inquisitório,
dada a quase inexistência de contraditório em tal conf‌iguração. Ver FAZZALARI, Elio.
Instituições de direito processual. Campinas: Bookseller, 2006. p. 116.
29 BACHMAIER WINTER, Lorena. Acusatorio versus inquisitivo. Ref‌lexiones acerca
del proceso penal. In: BACHMAIER WINTER, Lorena. Proceso penal y sistemas acusato-
rios. Madrid: Marcial Pons, 2XXX. p. 25.
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Nesse sentido, consideramos que o relevo da discussão em torno dos
sistemas é enorme em função de o sistema inquisitório não estar sepultado
pela história: pelo contrário, a vertente inquisitória ainda se sustenta, ba-
seada em larga margem no artifício discursivo da verdade correspondente
e na aptidão do juiz para buscá-la, cuja desconstrução é objeto deste livro.
Partimos do pressuposto anunciado na introdução: a verdade corres-
pondente é mais do que um conceito; é uma espécie de critério argu-
mentativo que oferece suporte à arquitetura inquisitória processual, que
persiste em manter-se vigente, mesmo dentro do contexto de um Estado
Democrático de Direito, o qual por excelência não deveria comportar
espaço para o f‌lorescimento de sensibilidades inquisidoras.30 O concei-
to de verdade correspondente é suf‌icientemente maleável para encontrar
resguardo sob as mais diversas nomenclaturas, como real, substancial e
material, sendo que sua roupagem não é fundamentalmente alterada em
concepções que resguardam a noção correspondente de forma relativa ou
aproximativa e que permanecem justif‌icando a busca pela verdade como
elemento central do processo.
A ideia de verdade correspondente tem uma tripla gênese e fundamen-
tação: política, jurídica e científ‌ica. Trata-se de uma combinação hetero-
gênea e altamente adaptável às circunstâncias – como f‌ica evidente pela
sua sobrevivência ao longo de praticamente toda história ocidental – e
que historicamente tem vínculos com regimes autoritários, ditatoriais e
totalitários, caracterizados pela tendência em produzir “verdades” atra-
vés de práticas persecutórias. Não por acaso, a perspectiva inquisitória
pode ser encontrada em sua forma embrionária já no Império Romano,
atingindo sua plenitude com a busca obsessiva pela verdade que caracte-
rizou a perseguição religiosa da Inquisição e depois foi extrapolada para
a jurisdição laica em toda Europa Continental. Com a modernidade e o
advento do sistema misto – cuja estrutura é essencialmente inquisitória
–, foi reestruturada argumentativamente através do paradigma científ‌ico
estabelecido nos séculos XVII, XVIII e XIX, o qual gradualmente passou a
conceber a ciência como mecanismo privilegiado para a obtenção de ver-
dades objetivas sobre o real.31
30 O termo “sensibilidade inquisidora” é aqui utilizado no sentido referido por
Maffesoli: trata-se de uma sensibilidade que persegue implacavelmente quem não
pensa, não vive e não se porta de acordo com a lógica do “dever ser” a priori imposto
pelo poder. MAFFESOLI, Michel. O instante eterno: o retorno do trágico nas sociedades
pós-modernas. São Paulo: Zouk, 2003.
31 A utilização do termo paradigma se baseia no sentido utilizado Thomas Khun,
que afastou a ideia de uma compreensão universal e atemporal da ideia de ciência,
af‌irmando que a mesma se constitui em uma série de consensos e compromissos

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