Prefácio

AutorGeraldo Prado
Páginas15-18
15
PREFÁCIO
“A verdade como instância de legitimação da arbitrariedade”. A arqueo-
logia das ideias dominantes no mundo ocidental, relativamente à tarefa
de adjudicação da solução de litígios em torno de comportamentos tidos
como graves – a atual infração penal, conforme a def‌inição jurídica hege-
mônica –, revela-se em toda a sua plenitude nessa expressão do Professor
Salah H. Khaled Jr., no livro cuja nova edição tenho a honra de prefaciar.
O generoso propósito de fundamentar a adjudicação de responsabilidade
penal em uma verdade sobre os fatos e assim limitar o arbítrio, em substi-
tuição a critérios de uma tradição que se apoiava no transcendente, a priori
incontrolável, muito rapidamente cedeu à tentação que o monopólio do
exercício da jurisdição penal apresenta a todos os que exercem o poder:
converter o meio de legitimação de exercício do poder em instrumento de
dominação, algo naquele momento funcional às novas organizações sociais
que na Europa vieram a suceder o modelo feudal pré-moderno.
O capitalismo engendrava o nascimento do estado territorial nacional.
O discurso moderno da soberania, da equação segurança versus liberdade,
da transformação do saber tradicional em saber instrumental – ciência
–, associado às novas fórmulas de determinação da verdade científ‌ica e
seus métodos, contribuiu para enquadrar culturalmente modalidades de
exercício do poder punitivo em um esquema conceitual que, ao originar
o direito processual penal, naturalizou a imposição de castigos cruéis e
tornou as práticas penais aceitáveis em termos civilizatórios, por mais que
a realidade apontasse para a irracionalidade da sua própria conf‌iguração,
em permanente divórcio com a narrativa jurídica de legitimação da pena.
O poder da palavra é extraordinário. Susan Haack, Professora da
Universidade de Miami, ao fazer a crítica ao probabilismo jurídico, chama
atenção para o fato de a Suprema Corte norte-americana af‌irmar, no caso
Tehan, em 1996, “que o objetivo do processo é determinar a verdade”.3
A frase, comum e consumida como af‌irmação de legitimidade em prati-
camente todos os sistemas penais contemporâneos, malgrado a distância
3 HAACK, Susan. Los estándares de prueba y los límites del análisis jurídico. In:
Carmen Vázquez (Org.). Estándares de prueba y prueba científ‌ica: ensayos de episte-
mología jurídica. Barcelona: Marcial Pons, 2013. p. 74.

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