II Para além da violência da verdade moderna

AutorSalah H. Khaled JR
Páginas177-312
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ii
PARA ALÉM DA VIOLÊNCIA DA
VERDADE MODERNA
2. O DISCURSO DA VERDADE CORRESPONDENTE AO REAL
E SUA VERTENTE RELATIVA OU APROXIMATIVA
O direito ainda conserva – ao menos em algumas correntes – parte da-
quela postura científ‌ica típica dos oitocentos, fundamentalmente ligada
à ideia de verdade correspondente, de neutralidade e de correspondência
estrita entre o que aconteceu e o que o processo supostamente verif‌icou,
por meio da convicção do juiz. Desde essa perspectiva, para boa parte
da doutrina, o processo penal é caracterizado por uma lógica de verdade
correspondente ao real, que brota do que def‌inem como “fatos”, conforme
demonstra uma emblemática frase de Bettiol:
o f‌im de todo processo é a busca da verdade. No processo penal isso só se
torna mais dramático em função de sua natureza. Em razão da intensidade
com que se anseia pela busca da verdade no processo penal, podemos dizer
que um princípio fundamental do processo penal é o da investigação da
verdade material ou substancial dos fatos em torno dos quais se discute,
para que sejam provados em sua subsistência histórica, sem obstáculos e
deformações. Isso faz com que o legislador tenha que eliminar do código
toda limitação à prova e que o juiz tenha que ser deixado livre para formar
seu próprio convencimento.586
Na citação de Bettiol podemos perceber a crença nitidamente moderna
na aptidão do sujeito do conhecimento para alcançar a verdade e também
o quanto estão entrelaçadas as ideias de verdade correspondente (real, ma-
terial, substancial… enf‌im) e de concessão de iniciativa probatória ao juiz,
pois na ideia de eliminação de qualquer limitação à prova insere-se essa
586 BETTIOL, Giuseppe. Instituciones de derecho penal y procesal. Barcelona: Bosch,
1973. p. 250.
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prerrogativa.587 No entanto, o que Bettiol propõe é inaceitável sob dois as-
pectos: o primeiro deles é mais do que claro; a verdade não pode ocupar
um lugar hegemônico no processo, devido à existência de uma série de
limites à atividade probatória, que lhe são característicos em função de sua
conf‌iguração formal, como a recusa de prova ilegal, por exemplo. Como
refere Aragoneses Alonso, ainda que o processo penal esteja dominado, em
geral, pelo princípio de liberdade dos meios de prova, isso não impede que
possam ser indicados determinados meios de prova com caráter obrigató-
rio e que em alguns casos exista um sistema de proibição de determinados
meios de prova ou modos de sua obtenção.588 Nesse sentido, antes de ser
indagada a possibilidade de obtenção da verdade nos sentidos ontológico e
epistemológico, deve ser demarcada uma fronteira não ultrapassável entre
qualquer pretensão nesse sentido e os limites impostos ao processo na
conf‌iguração democrática exigível pelo devido processo legal. Não é por
acaso que Calamandrei af‌irma que a f‌inalidade do processo e, ao mesmo
tempo, a f‌inalidade da ciência processual estão sintetizadas na expressão
“pessoa, não coisa”.589 A questão é que a estrutura processual que tem como
núcleo fundante a epistemologia inquisitória objetif‌ica o acusado, ou quan-
do não o faz, o trata como inimigo a ser perseguido a qualquer custo para a
satisfação de uma inesgotável ambição de verdade. Como observa Lopes Jr.,
o mito da verdade real está intimamente relacionado com a estrutura do
sistema inquisitório […] com sistemas autoritários; com a busca de uma
‘verdade’ a qualquer custo (chegando a legitimar a tortura em determinados
momentos históricos); e com a f‌igura do juiz ator (inquisidor).590
587 Um exemplo da referida associação pode ser encontrado no trecho a seguir: “no
processo penal, em face do princípio da verdade real, o ônus da prova também in-
cumbe ao juiz, que poderá, de ofício, independentemente de provocação das partes,
determinar diligências para dirimir dúvidas sobre ponto relevante (art. 156, 2ª parte,
do CPP) ou ordenar diligência para sanar qualquer nulidade ou suprir falta que pre-
judique o esclarecimento da verdade (art. 502, caput, do CPP). Note-se, contudo, que
em razão de nosso Código de Processo Penal adotar o sistema acusatório e não in-
quisitivo, tal faculdade de produção das provas do magistrado é supletiva, devendo,
pois, ser comedida, nesse sentido, sua atuação”. COLNAGO, Rodrigo. Processo penal
(perguntas e respostas). 2. ed. CAPEZ, Fernando (Coord.). São Paulo: Saraiva, 2008. p.
199-200. (Coleção estudos direcionados.)
588 ARAGONESES ALONSO, Pedro. Instituciones de derecho procesal penal. Madrid:
Rubi Arts Graf‌icas, 1986. p. 286.
589 CALAMANDREI, Piero. Direito processual: volume III. Campinas: Bookseller,
1999. p. 190.
590 LOPES JR., Aury. Introdução crítica ao processo penal: fundamentos da instrumen-
talidade garantista. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 262.
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Não podemos mais tolerar de forma alguma a objetif‌icação do acusado,
tão característica da epistemologia inquisitória, que justif‌icava toda espé-
cie de violação em nome da sagrada obtenção da verdade e tampouco a
existência de um processo penal de persecução ao inimigo no contexto
democrático contemporâneo. Trata-se da expressão de um posicionamen-
to político-criminal autoritário, que pode ser encontrado no pensamento
de Manzini, para quem o interesse fundamental que determina o processo
penal é o de chegar à punibilidade do culpado, ou seja, de tornar realizá-
vel a pretensão punitiva do Estado contra o imputado, enquanto resulte
ser culpado.591 O autor considera que o processo penal é duplamente ca-
racterizado como meio de tutela de interesse social de repressão da delin-
quência e meio de tutela de interesse individual e social de liberdade.592
Para ele, o interesse de repressão da delinquência predomina sobre o in-
teresse de liberdade: seu sentido está em fazer valer a pretensão punitiva
do Estado através da imputação penal.593 Segundo Manzini, é equivocado
dizer que as normas processuais penais são voltadas para a tutela da ino-
cência, considerando que a inocência deve ser presumida enquanto a sen-
tença condenatória não transitar em julgado; para o autor, a presunção de
inocência não pode ser sustentada na ideia de que a obrigação de provar
cabe ao acusador, pois a prova de delinquência pode ser obtida por inicia-
tiva do juiz e a acusação já está provada em si mesma pelos indícios que
a fundamentaram.594 Ou seja, enquanto o processo está em curso, não há
culpado ou inocente, mas somente um indiciado.595 As próprias palavras
de Manzini deixam mais do que clara a sua f‌iliação ao paradigma inqui-
sitório de persecução ao inimigo. O que mais impressiona, nesse sentido,
não são as ideias de Manzini – que em alguma medida são consistentes
com o espírito político da Itália fascista de seu tempo – mas que autores
591 MANZINI, Vicenzo. Tratado de derecho procesal penal: tomo I. Buenos Aires: EJEA,
1951. p. 250.
592 MANZINI, Vicenzo. Tratado de derecho procesal penal: tomo I. Buenos Aires: EJEA,
1951. p. 251.
593 MANZINI, Vicenzo. Tratado de derecho procesal penal: tomo I. Buenos Aires: EJEA,
1951. p. 253.
594 O Código de Rocco de 1930 inspirou-se na doutrina de Manzini e não consa-
grou a presunção de inocência, de forma condizente com a anatomia política fascista
existente no período. Percebe-se daí o absurdo de fazer deste autor uma orientação
dogmática, como se as categorias processuais por ele delineadas pudessem estar des-
vinculadas de seu projeto político-criminal.
595 MANZINI, Vicenzo. Tratado de derecho procesal penal: tomo I. Buenos Aires: EJEA,
1951. p. 255.

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