III Para além da ambição de verdade: o caráter analógico dos rastros do passado

AutorSalah H. Khaled JR
Páginas313-412
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PARA ALÉM DA AMBIÇÃO DE
VERDADE: O CARÁTER ANALÓGICO
DOS RASTROS DO PASSADO
3. OS RASTROS DO PASSADO
Uma vez que já exploramos preliminarmente a necessidade de supera-
ção da ideia de verdade correspondente, podemos dar início ao delinea-
mento de uma epistemologia da passeidade, que por excelência procura
atentar para a complexidade do real. Essa epistemologia será proposta a
partir de uma intenção de renúncia à característica mais marcante da epis-
temologia inquisitória: a violência conceitual que renega a complexidade
das coisas em nome da persecução desmedida que conforma o critério
reitor do sistema.1040
Nossa proposta parte de uma epistemologia que opere radicalmente a
partir do que há de mais característico no núcleo de saber processual e que
não pode ser desconsiderado por nenhum método cognitivo: a passeidade
do horizonte projetado pelo caso penal, que conduz a um conjunto decidi-
damente denso de perguntas. Como observa Ibañez, uma vez que são fatos
pretéritos, a verdade processual participa, em primeiro lugar, das limita-
ções que são próprias à verdade histórica.1041 Nesse sentido, qual é – to-
mando emprestada a expressão de Bachelard – a estética do escondido?1042
1040 Não é por acaso que Timm de Souza interroga sobre se “a sutil sanha analíti-
ca, de que muitas f‌ilosof‌ias são tomadas, e que reproduz um determinado modelo
de ciência experimental, esquartejando a realidade em busca de seus fundamen-
tos últimos, não é igualmente uma violência frente ao real?” SOUZA, Ricardo Timm
de. Razões plurais: itinerários da racionalidade ética no século XX: Adorno, Bergson,
Derrida, Levinas, Rosenzweig. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. p. 27.
1041 IBÁÑEZ, Perfecto Andrés. Los ‘hechos’ en la sentencia penal. México: Fontamara,
2005. p. 122.
1042 BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Rio de Janeiro: Eldorado Tijuca,
19XX. p. 19.
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Já observamos que a relação entre o processo e os eventos da vida é extre-
mamente complexa, estando para além da lógica de resolução da realidade
pelo simples poder cognitivo do sujeito do conhecimento que contata os
fatos, que supostamente são evidentes por si mesmos. Também já cons-
tatamos que o real é resistência, não se curvando de forma submissa aos
poderes metodológicos do homem racional. Agora chegou o momento de
perceber que o referencial cognitivo do processo envolve um problema de
grande sof‌isticação, ignorado completamente pelo dogmatismo religioso da
Inquisição e pelo dogmatismo cientif‌icista da modernidade: a passeidade.
Enquanto a discussão do método remete ao problema de fundo epistemo-
lógico, ou seja, à questão da formação da prova e de seu tratamento (que
discutiremos posteriormente), a passeidade do passado é a grande questão
de fundo ontológico, que não pode pura e simplesmente ser escamoteada
por nenhum método. A partir dessa perspectiva, a questão mais relevante é
a passeidade do evento sobre o qual o juiz forma sua convicção, que é o que
propriamente deve ser investigado e consiste em um aspecto que é descon-
siderado até mesmo por análises mais sof‌isticadas do que as habituais. É o
caso de Ferrer Beltrán, que, comparando o juiz e o historiador, diz que não
vê muita relevância na aproximação, considerando que o que mais importa
para o raciocínio probatório é que se trata de provar fatos individuais irrepe-
tíveis e não o de que são fatos passados.1043 Também é o caso de Taruffo, que
ao discutir a aproximação entre o juiz e o historiador, aponta que
La analogía examinada existe, pues, bajo ciertos aspectos (mientras que es
evidentemente inaceptable desde otros numerosos puntos de vista), pero
incluso dentro de los límites en los que puede ser sensatamente plantea-
da, no parece particularmente fructífera: en efecto, no ofrece esquemas de
análisis o datos cognoscitivos acerca de la determinación de los hechos rea-
lizada por el juez que se obtengan específ‌icamente del conocimiento de la
actividad del historiador. En particular, no se deriva ningún dato relevante
de esa analogía en referencia a la noción de prueba y a las modalidades de
uso racional de los medios de prueba en el ámbito del proceso.1044
O mais curioso na opinião de Taruffo é que ele efetivamente reconhece
que as discussões epistemológicas no âmbito da historiograf‌ia são muito
profundas, mas não as considera relevantes para a discussão da prova no
processo, o que consideramos um grande equívoco.1045 Não cabe aqui es-
1043 FERRER BELTRÁN, Jordi. La valoración racional de la prueba. Madrid: Marcial
Pons, 2007. p. 35.
1044 TARUFFO, Michele. La prueba de los hechos. Madrid: Trotta, 2005. p. 341.
1045 Taruffo observa que “Además, esta visión simple de la actividad del historiador
no toma en consideración el hecho de que precisamente el objeto y las modalidades
metodológicas de la historiografía constituyen desde hace mucho tiempo el objeto de
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pecular se Taruffo e Beltrán deliberadamente optam por desconsiderar a
comparação – e logo, a passeidade – porque isso os conduziria a uma di-
reção incompatível com a verdade correspondente e a crença nos poderes
do homem racional. O fato é que, ao fazer isso, Taruffo e Beltrán fecham as
portas para toda a ref‌lexão que a historiograf‌ia e a f‌ilosof‌ia desenvolveram
sobre a passeidade do passado e perpetuam o isolamento dogmático do
direito, justamente o isolamento com o qual pretendemos romper. Com o
devido respeito aos autores, nosso horizonte compreensivo é incisivamen-
te contrário, considerando que a referência ao passado é um dos aspectos
mais distintivos da verdade produzida no processo, motivo pelo qual é a
partir desse elemento inicial que uma teoria da verdade processual deve
e precisa ser estruturada. Em certo sentido, a posição de Taruffo e Ferrer
Beltrán representa uma inovação no âmbito da doutrina processual seme-
lhante à proposta por Montero Aroca, que, como já referimos, desconsi-
dera a noção de processo inquisitório, af‌irmando que somente o processo
acusatório merece a designação. Nesse sentido, embora reconheçamos o
esforço de inovação proposto pelos autores referidos, consideramos que
a propositura do problema em termos de acusatório/inquisitório e proxi-
midade entre o juiz e o historiador é muito pertinente para a discussão
processual, não devendo ser abandonada.
Portanto, a partir dessa perspectiva, a passeidade do passado é um as-
pecto a destacar e não a desconsiderar, uma vez que nela reside um ele-
mento fundamental para sustentar uma concepção de processo que deve
ter como elemento central as regras do jogo: a verdade corresponden-
un debate teórico de gran interés y también de notable complejidad: está en discu-
sión la naturaleza científ‌ico-positivista de la historiografía y se enfrentan grandes ten-
dencias como las del llamado narrativismo de la conf‌iguración de la historia como
ciencia sociais. Todo ello afecta directamente a la def‌inición objetiva y estructural
de la actividad del historiador, de forma que parece intolerablemente naif continuar
pensando que éste, como el juez, desarrolla una actividad consistente en determinar
hechos particulares sobre la base de pruebas […]En otros términos: incluso si se
ponen entre paréntesis las consideraciones recién realizadas sobre la complejidad
del problema metodológico de la historiografía e incluso tomando en cuenta ese
aspecto parcial de la actividad del historiador que consiste en reconstruir hechos
particulares, la analogía no parece signif‌icativa a los efectos de establecer lo que hace
el juez a través del conocimiento de lo que hace el historiador. En efecto, o bien esa
analogía se traduce en una remisión genérica a algo (la actividad del historiador) que
permanece indeterminado, o bien, si la remisión es al método científ‌ico del historia-
dor en la reconstrucción del hecho, se descubre fácilmente que de ese modo no se
llega a una metodología típica y específ‌ica de la reconstrucción histórica, sino a una
problemática epistemológica de orden mucho más general.” TARUFFO, Michele. La
prueba de los hechos. Madrid: Trotta, 2005. p. 338-339.

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