A insuficiência da doutrina tradicional da reparação dos danos para avaliar a distribuição dos riscos: uma proposta de identificação do fortuito interno

AutorRafael Viola
Páginas215-256
Capítulo VI
A INSUFICIÊNCIA DA DOUTRINA
TRADICIONAL DA REPARAÇÃO
DOS DANOS PARA AVALIAR A
DISTRIBUIÇÃO DOS RISCOS:
UMA PROPOSTA DE IDENTIFICAÇÃO
DO FORTUITO INTERNO
18. O VÍNCULO DE CAUSALIDADE E O RISCO
Como se teve a oportunidade de ver ao longo do presente estudo, o risco
passa a polarizar os debates da sociedade. Ele deixa de gurar como um mero
aspecto acidental, reservado às fatalidades ou aos desígnios dos deuses, para se
tornar verdadeiro elemento central, objeto de estudo, mensuração e controle.
De fato, se no passado os perigos eram sempre relegados aos outros, atualmente,
eles não podem ser segregados, estando todos nós, inclusive os seus próprios
produtores, submetidos diuturnamente a eles.1076
O reconhecimento desse protagonismo, como debatido no Capítulo I, pro-
duziu intensas transformações em todos os setores das ciências. No campo das
ciências jurídicas não poderia ser diferente. As novas denições de risco, então,
acabaram sendo incorporadas pelos ordenamentos jurídicos,1077 especialmente
no que diz respeito aos sistemas de reponsabilidade civil.1078 A conssão de que o
homem é o produtor dos próprios desastres – nas palavras de Beck, os man-made
disasters, ou, como arma Giddens, os manufactured risks –,1079 reforça a ideia,
cada vez mais presente, de que é necessário identicar os responsáveis pelos
males que aigem os homens, pois se apresenta inverossímil que os riscos e os
1076. BECK, Ulrich. Op. cit., 2010, p. 7.
1077. LUPTON, Deborah. Op. cit., 2013, p. 37.
1078. ROSENVALD, Nelson et al. Novo tratado de responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2015, p. 6.
1079. GIDDENS, Anthony. Conversas com Anthony Giddens: o sentido da modernidade. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2000, p. 143.
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RISCO E CAUSALIDADE • Rafael Viola
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danos não tenham a participação direta ou indireta do homem. Como armara
Louis Josserand em conferências pronunciadas em Faculdades de Direito pela
Europa no início do século passado, “não aceitamos mais, docilmente, os golpes
do destino, e, sim pretendemos determinar a incidência denitiva”.1080 O alerta
do jurista francês não poderia ser mais atual na sociedade de risco: busca-se o
equilíbrio jurídico e a segurança, necessários aos desconhecidos e graves desaos
a serem enfrentados.
Nesse ponto, o contínuo desenvolvimento tecnológico, ao mesmo tempo
que produziu um profundo incremento na vida, segurança e saúde da huma-
nidade, trouxe, a reboque das forças produtivas, inúmeros riscos decorrentes
desse progressivo processo de modernização,1081 caracterizando uma ameaça aos
interesses juridicamente protegidos no ordenamento, gerando as mais variadas
lesões, quantitativa e qualitativamente consideradas. Nesse ponto, operou-se
uma profunda transformação dos conceitos de reparação civil, que acabou por
deixar de lado a ideia do agir culposo, diretamente ligado ao bonus pater família,
realçando a natureza solidarista que o século XX imbuiu à responsabilidade civil,
num movimento de socialização e distribuição dos riscos. A responsabilidade
civil abandonou a concepção historicamente individualista para buscar novos
mecanismos de diluição dos ônus reparatórios entre os mais variados agentes
que contribuem para a produção dos danos.1082 Como lembra Ana Mafalda de
Miranda Barbosa, não se está mais em jogo um “pensamento de tipo causa efeito
nos termos da qual entre comportamento culposo e resultado medeia um hiato
logicista a ser preenchido segundo critérios consequencialistas, mas um a priori
dever de obstar a produção de tal resultado.1083
O risco passa a ditar os caminhos da reparação dos danos. Independente-
mente dos efeitos concretamente considerados no momento da prática do fato
jurídico, é em seu nome que a obrigação de indenizar será pensada, analisada e
delimitada.1084 Indaga-se a quais deveres aquele que cria uma atividade perigosa
deve se submeter e a quais danos deve, então, car sujeito. Nesse contexto de
maiores riscos, construídos a partir de uma noção de sociedade de risco, é de se
pesquisar quais deles se encontram efetivamente na esfera jurídica do criador da
atividade perigosa, que não necessariamente guardam uma conexão material ou
intelectual, ao menos, clara e evidente, com os danos sofridos por aqueles expostos
1080. JOSSERAND, Louis. Op. cit., 1941, p. 550.
1081. BECK, Ulrich. Op. cit., 2010, p. 15.
1082. Idem, p. 235.
1083. BARBOSA, Ana Mafalda Castanheira Neves de Miranda. Do nexo de causalidade ao nexo de imputa-
ção – contributo para a compreensão da natureza binária e personalística do requisito causal ao nível
da responsabilidade civil extracontratual. v. II, p. 746. Cascais: Princípia, 2013.
1084. Idem, p. 747.
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CAPíTulO VI • umA PROPOSTA DE IDENTIFICAÇÃO DO FORTuITO INTERNO
a eles, seja porque decorrem de fatos de outros agentes (fato da vítima ou fato de
terceiro) ou da própria natureza (caso fortuito e força maior), seja porque é tecni-
camente inviável a demonstração dessa conexão em razão da falta de informação
suciente para conhecer, com razoável precisão, as possíveis consequências do
desenvolvimento da referida atividade. Eis o difícil dilema dos tempos atuais.
Percebeu-se, ao longo do século XIX e, especialmente na primeira metade
do século XX, que o conceito de causalidade até então construído pelas ciências
naturais e repensado pelas ciências jurídicas à luz da normatividade presente não
eram aptas a dar conta de toda a multiplicidade de situações decorrentes dos novos
riscos criados. Observou-se, então, um aprofundamento da complexidade causal,
levando o risco a irradiar seus efeitos, também, para o princípio da causalidade.
O problema da sociedade de risco é, assim, um problema de causalidade.
Os mais variados discursos cientícos, tanto do lado daqueles que criam os
riscos, como daqueles que os suportam, são construídos numa lógica binária
de irresponsabilização ou responsabilização. Opera-se, portanto, uma gradual
revogação causal dos riscos, como anunciado por Beck: os riscos do processo de
modernização, em razão de suas particularidades, não podem ser sucientemen-
te interpretados segundo o clássico princípio da causalidade.1085 Pense-se, por
exemplo, nos poluentes presentes no ar que, na maior parte das vezes, decorrem
dos mais variados atores e cidadãos presentes na sociedade, desde as usinas e
indústrias, até os motoristas de veículos movidos a combustível fóssil, passando
pelas chaminés dos residentes para aquecimento de suas casas. Exigir uma prova
causal estrita e cabal, nos termos das ciências naturais, tornaria inviável qualquer
mecanismo de responsabilização. A complexidade de causas e suas incontáveis in-
terações provocam, consequentemente, um desânimo na busca pelo causador.1086
É possível vericar, por conseguinte, uma lenta, mas notável contamina-
ção do nexo de causalidade pelo risco, que exige uma releitura do instituto. O
primeiro inuxo doutrinário e jurisprudencial dessa contaminação se deu a
partir de um movimento que vem buscando abstrair do plano da imputação da
responsabilidade civil a própria ideia de causalidade ou, ao menos, exibilizá-la,
de tal modo que possa vir a ser dispensado na vericação dos danos.1087 Sobre este
1085. BECK, Ulrich. Op. cit., 2010, p. 76.
1086. HERMITTE, Marie-Angèle. Os fundamentos jurídicos da sociedade de risco – uma análise de U. Beck.
In: VARELLA, Marcelo Dias (Org.). Rede latino-americana-europeia sobre governo dos riscos. Brasília,
2005, p. 11.
1087. “A exibilização diz respeito ao olhar do intérprete. Isto é, trata-se de uma permissão, ou uma orienta-
ção hermenêutica, para que ele seja menos rigoroso na análise do nexo causal. Em outras palavras, ao
analisar determinado caso de responsabilidade civil, que possivelmente não se concluiria que houve
o nexo causal se fôssemos rigorosos e matemáticos (...)” (BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Op. cit.,
2019, p. 296).
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