O risco nas ciências jurídicas

AutorRafael Viola
Páginas41-78
Capítulo II
O RISCO NAS CIÊNCIAS JURÍDICAS
5. COLOCAÇÃO DO PROBLEMA
A discussão em torno do risco, como já se pôde perceber, não é fácil. Ao
revés, trata-se de tema espinhoso e de difícil conceituação,190 não havendo una-
nimidade entre os autores na medida em que o risco é tratado a partir das mais
variadas acepções e dentro das mais distintas áreas do saber, o que apenas torna
mais difícil o trabalho do operador do direito na busca pela denição de uma
teoria adequada para os tempos atuais.
O problema em torno do risco começa a partir do próprio signicado da
palavra, cuja origem é desconhecida, pois, como arma Luhmann, “não existem
estudos compreensivos sobre a etimologia e a história conceitual do termo,191 o
que não quer dizer que não se encontrem elementos históricos e etimológicos
dispersos. Apesar de aparentar ser importante analisar a origem da palavra, de
forma a subsidiar um conceito mais adequado, torna-se imperioso registrar que
não se pretende, nesse curto espaço, realizar uma digressão histórica aprofundada
do termo, pois, além de não ser o escopo do presente trabalho, demandaria um
estudo extremamente complexo e aprofundado. Pretende-se, ainda que sucin-
tamente, apenas apontar as diculdades que a terminologia sempre enfrentou e
que permanecem até hoje.
Sylvain Piron esclarece que a noção de risco nas línguas romanas e germâ-
nicas192 deriva de uma mesma palavra do latim medieval, cujo surgimento pode
ser datado em meados do século XII.193 Pierre-Charles Pradier recorda que a Pe-
190. Como lembra Caio Mário da Silva Pereira, risco “é um conceito polivalente” (PEREIRA, Caio Mário
da Silva. Responsabilidade civil. Atual. Gustavo Tepedino. 10. ed. rev. atual. Rio de Janeiro: GZ, 2012,
p. 369).
191. LUHMANN, Niklas. Op. cit., 2008, p. 9.
192. Rischio, riesgo, risk, risiko, risque, risco etc.
193. PIRON, Sylvain. L’apparition du resicum em Méditerranée occidentale, XIIe-XIIIe siècles. Pour une historire
culturelle du risque. Strasbourg: Editions Histoire et Anthropologie, 2004, 59. Em seu profundo estudo,
o autor apresenta evidências do uso dos termos ad tuum resicum, ad risicum sive fortunam entre os
anos de 1154 e 1164. Posteriormente, em 1193, a primeira atestação da palavra em linguagem vulgar
aparece num contrato de venda de terrenos, escrito em latim, em que uma das cláusulas especica
que os riscos de perda serão compartilhados entre as partes, expressando a ideia de risco com o termo
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nínsula Italiana constitui o centro do aparecimento do fenômeno – muito embora
não se possa precisar exatamente qual região seria o seu berço; aparecendo, em
seguida, a partir da rota econômica e política de Gênova, em Marselha, Catalu-
nha, Provence e, a partir do século XV, na Croácia e, posteriormente, junto aos
alemães, castelhanos e franceses.194 A ideia de risco, nesse período, no entanto, não
estava ligada a qualquer concepção de seguro ou do estado de bem-estar social.
Ela é estritamente pessoal, não coletiva, de modo que é absolutamente ausente,
no período medieval, qualquer apreensão institucional de riscos coletivos.195
Há de se distinguir dois períodos da propagação da palavra risco. De um
lado, o período moderno em que a designação da palavra se expande rapida-
mente e, de outro, a era contemporânea em que a palavra se tornou, na maior
parte, abstrata.196 No século XVII, ao lado de um uso especíco para a Marinha,
encontra-se uma aceitação geral da palavra risco com um signicado econômico
ligado diretamente aos avanços do empreendedorismo, isto é, aos riscos e perigos
da atividade econômica. O conceito de risco, em verdade, reete um julgamento
sobre a natureza da coisa ameaçada.197 Nesse período, o termo risco tem uma co-
notação normativa e justica um lucro, um ganho, no contexto de uma atividade
econômica, seja ela aventureira ou, até mesmo, ilegal.198
Explica Pierre-Charles Pradier que no século XVIII opera-se uma evolução
linguística do termo, acompanhada das transformações sociais que se operaram
ao longo das décadas.199 A partir de então, a palavra é cada vez mais usada, afe-
tando outros termos do mesmo campo semântico, especialmente as palavras
aventura, perigo, ameaça, sorte e fortuna. Essa ideia de aventura, identicada
com o destino do indivíduo, acaba por ser inuenciada, cada vez mais, por um
elemento de vontade e habilidade, a ponto de abandonar o termo aleatório, sen-
ad resicu. É em 1233 que aparece a cláusula rezegue e perilh (em risco e perigo). O primeiro atestado
do rischio italiano gura numa tradução do latim datada de 1260, enquanto que, na mesma época, se
encontra o uso do termo rischium em documentos sieneses ou o uso de riscum nos notários pisans. Para
o autor, posteriormente, “[l]e meilleur témoignage d’une superposition de ces deux strates de diusion
d’un terme de même origine est fourni par la coexistence en Catalan médiéval d’un reec vernaculaire,
comparable au rezegue provençal, généralement transcrit par le latin redegum, et d’un risc reconstruit
sur le modèle d’un riscum de provenance probablement toscane. C’est à une convergence de ces deux
formes que doit être rattaché le castillan riesgo qui est attesté au début du XIVe siècle”.
194. PRADIER, Pierre-Charles. La notion de risque en économie. Paris: La Découverte, 2006, p. 8.
195. PIRON, Sylvain. Op. cit., 2004, p. 61.
196. PRADIER, Pierre-Charles. Op. cit., 2006, p. 13.
197. Idem, p. 14. No mesmo trecho, o autor reforça o uso da palavra com os seguintes exemplos: “On hasarde
une mise, on risque un placement; la première décision est hasardeuse, la seconde, risquée.
198. Idem, p. 14. Nesse ponto, o autor frisa que uma aposta ou a loteria não são consideradas riscos, pois
não são investimentos sérios, o que denota o caráter de expectativa de ganho do termo risco a partir
de uma atividade econômica efetiva.
199. PRADIER, Pierre-Charles. Op. cit., 2006, p. 14.
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CAPíTulO II • O RISCO NAS CIÊNCIAS JuRíDICAS
do substituído pelo termo acaso.200 A partir do início do século XX, a ideia de
uma sociedade profundamente pautada pelo risco produz mais um fenômeno
linguístico. Nesse momento, o risco passa a ter uma noção de perigo provável201
ou, na linguagem das seguradoras, a probabilidade ou a expectativa matemática
de que o perigo irá se manifestar. O risco passa a ser entendido (ou confundido)
com a sua medição, obtendo largo uso no âmbito das ciências naturais e, espe-
cialmente, no campo do seguro.202
O conceito de risco, como se pôde verificar, embora tenha mantido a
proximidade do conceito da Península Italiana,203 teve sua designação gradual
e tardiamente ampliada. As transformações de meados do século XX, por sua
vez, inuenciaram diretamente no conceito, especialmente a partir da década
de 1980. Consequentemente, a palavra risco adquire uma polissemia, que se
expande, de modo quase inndável, num enorme jogo de metonímias, o que
acarreta a diversidade de usos e aplicações que toma lugar, no referido século,
nas ciências naturais, biológicas, sociais, assim como na administração pública e
na denição de políticas públicas.204 Esse conceito polivalente deixou profundas
marcas no uso metodológico e operacional do termo ao longo do último século.
Nesse sentido, é preciso, ainda, buscar um conceito adequado às ciências jurídicas
para os dias atuais.
5.1 Risco: entre economia e direito
O risco nunca foi um desconhecido das sociedades e, tampouco, dos pen-
sadores antigos. Como já foi dito, o risco sempre esteve presente, mas a mudança
no tratamento dele é o que dene os tempos modernos.205 A partir do momento
em que é possível o conhecimento, a avaliação e o gerenciamento do risco, per-
cebe-se que a noção de futuro não é mais um arbítrio dos deuses e que os homens
e as mulheres não são passivos diante da natureza.
É somente a partir da década de 1780, sob o pálio dos matemáticos, que o
risco recebe, pela primeira vez, uma designação abstrata e geral.206 O seu trata-
mento probabilístico decorre, em grande parte, da crença, à época, de que todo
o conhecimento humano é baseado em probabilidade e de que todos os eventos
200. Idem, p. 14.
201. Idem, p. 15.
202. Idem, p. 15.
203. PIRON, Sylvain. Op. cit., 2004, p. 59.
204. MENDES, José Manuel. Op. cit., 2015, p. 17.
205. Bernstein, Peter L. Against the Gods: e Remarkable Story of Risk. New York: John Wiley & Sons Inc.,
1998. (Locais do Kindle 152-154). Wiley. Edição do Kindle.
206. PRADIER, Pierre-Charles. Op. cit., 2006, p. 14.
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