O vínculo de causalidade

AutorRafael Viola
Páginas79-111
Capítulo III
O VÍNCULO DE CAUSALIDADE
7. O OCASO DA CULPA E A CRESCENTE IMPORTÂNCIA DO LIAME
CAUSAL
A construção da teoria geral da responsabilidade civil clássica, como a
compreendemos, é delineada no antigo direito civil francês e consagrada na co-
dicação do século XIX, trazendo como elemento central a culpa, tornando-se,
então o seu próprio fundamento.364
As constantes mudanças sociais e jurídicas dentro da responsabilidade civil,
no entanto, conduziram os intérpretes a novas concepções acerca da noção de
culpa.365 De fato, se durante muito tempo a culpa foi tida como a pedra angular
do sistema de responsabilidade civil,366 atualmente o seu papel encontra-se pro-
fundamente atenuado.367 A superação da concepção psicológica da culpa foi uma
evolução natural de seu conteúdo.368 O abandono de uma noção de culpa atrelada
exclusivamente à uma valoração moral, ou melhor, à um juízo de reprovação
moral da ação do indivíduo369 foi uma consequência normal das insuciências
364. PLANIOL, Marcel e RIPERT, Georges. Op. cit., 1952, p. 641.
365. “Esta teoría [fundada na gravidade da culpa] ingeniosa y facticia ya muy combatida en el antiguo
Derecho, fué abandonada por el Código. (...) En otros términos, la ley actual sigue la antigua opción
romana de la culpa levis in abstracto, y condena la subdivisión en culpa grave, culpa leve y levísima
introducida por los comentadores” PLANIOL, Marcel e RIPERT, Georges. Tratado elemental de derecho
civil – las obligaciones. Trad. Jose M. Cajica Jr. México: Cardenas Editor y Distribuidor, 1983, p. 176.
366. “Durante o decurso do século XIX, os juristas não duvidaram de que a responsabilidade civil assentasse
sobre a culpa” RIPERT, Georges. A regra moral nas obrigações civis. Campinas: Bookseller, 2002, p. 207.
367. “Poucos conceitos jurídicos sofreram, nos últimos séculos, tantas transformações em sua ontologia
quanto a culpa” SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos
ltros da reparação à diluição dos danos. São Paulo: Atlas, 2007, p. 33.
368. As concepções sobre a culpa são um tema de fundamental importância. É leitura obrigatória: LIMA,
Alvino, Culpa e Risco. 2. ed. rev. e atual. pelo Prof. Ovídio Rocha Barros Sandoval, São Paulo: Ed. RT,
1998. SILVA, Wilson Melo da. Responsabilidade sem culpa. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1974. MORAES,
Maria Celina, Bodin de. Danos a pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais.
Rio de Janeiro: Renovar, 2003. SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil:
da erosão dos ltros da reparação à diluição dos danos. São Paulo: Atlas, 2007. CALIXTO, Marcelo
Junqueira. A culpa na responsabilidade civil – estrutura e função. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
369. MORAES, Maria Celina, Bodin de. Danos a pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos
morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 210.
EBOOK RISCO E CAUSALIDADE.indb 79EBOOK RISCO E CAUSALIDADE.indb 79 20/12/2022 10:33:2220/12/2022 10:33:22
RISCO E CAUSALIDADE • Rafael Viola
80
que essa doutrina abarcava. Considerada como um verdadeiro “pecado jurídico”,
a noção psicológica da culpa exigia que o magistrado adentrasse o estado anímico
do agente. Em outras palavras, carregada de uma ideologia fundada em contornos
morais, a análise do atuar culposo do ofensor incidia em um subjetivismo exage-
rado. A crítica feita a essa concepção, e que implicou numa mudança da cultura
jurídica,370 era que a prova da culpa, isto é, a demonstração cabal dos impulsos
anímicos do ofensor,371 constituía um óbice insuperável à reparação da vítima.
Este insuperável óbice teve como consequência a necessária revisão do con-
ceito de culpa. Consagrou-se, então, a sua concepção normativa ou objetiva,372
segundo a qual passa a ser considerada como um erro de conduta373 e não mais
como o estado anímico do agente.374 Através desta noção, portanto, compara-se
a conduta do lesante com um modelo geral de comportamento. A diferença da
concepção clássica para a concepção normativa é que nesta não se exige a busca
de elementos subjetivos do agente, mas um agir conforme um padrão de conduta
(standard). A culpa passou a representar a violação de um arquétipo de conduta.375
Esta concepção teve como vantagem atenuar o problema da prova da culpa,
pois bastaria confrontar a conduta efetiva do ofensor e a conduta padrão e abs-
trata que ele deveria ter adotado. No entanto, se por um lado ela facilitou o ônus
da prova da vítima, por outro, trouxe, como consequência, a diculdade em se
estabelecer o padrão de conduta,376 pois qual seria o padrão de comportamento
370. Essa mudança incluiu diversas tendências, desde os processos técnicos de ampliação da culpa, a multipli-
cação das presunções de culpa até a adoção da responsabilidade objetiva. Para maiores aprofundamento,
cf. LIMA, Alvino, Culpa e risco. 2. ed. rev. e atual. pelo Prof. Ovídio Rocha Barros Sandoval, São Paulo:
Ed. RT, 1998. SILVA, Wilson Melo da. Responsabilidade sem culpa. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1974.
371. SCHREIBER, Anderson. Op. cit., p. 16.
372. Não se deve confundir culpa objetiva com responsabilidade objetiva. Na primeira a responsabilidade
do agente permanece fundada na culpa, mas esta, ao em vez de ser apreendida de elementos subjetivos,
é analisada pela própria conduta do agente. Na segunda, a responsabilidade surge independentemente
da existência de culpa.
373. Neste sentido: PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1989. CA-
VALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2007. SCHREIBER,
Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos ltros da reparação à diluição dos
danos. São Paulo: Atlas, 2007. MORAES, Maria Celina, Bodin de. Danos a pessoa humana: uma leitura
civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. LIMA, Alvino, Culpa e risco. 2. ed. rev.
e atual. pelo Prof. Ovídio Rocha Barros Sandoval. São Paulo: Ed. RT 1998. CALIXTO, Marcelo Junqueira.
A culpa na responsabilidade civil – estrutura e função. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, dentre outros.
374. “Según este artículo el deudor está obligado a poner en el cumplimiento de su obligación todo el
cuidado de un buen padre de familia, ya sea que el contrato tenga por objeto la utilidad de una sola
de las partes o que sea común” PLANIOL, Marcel e RIPERT, Georges. Tratado elemental de derecho
civil – las obligaciones. Trad. Jose M. Cajica Jr. México: Cardenas Editor y Distribuidor, 1983, p. 176.
375. MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos a pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos
morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 212.
376. CALIXTO, Marcelo Junqueira. A culpa na responsabilidade civil – estrutura e função. Rio de Janeiro:
Renovar, 2008, p. 11.
EBOOK RISCO E CAUSALIDADE.indb 80EBOOK RISCO E CAUSALIDADE.indb 80 20/12/2022 10:33:2220/12/2022 10:33:22
81
CAPíTulO III • O VíNCulO DE CAuSAlIDADE
a ser adotado pelo ofensor no caso concreto? De modo a superar esta questão,
procurou-se estabelecer um padrão de diligência razoável que um homem pru-
dente adotaria.377 A denição de quem seria o homem prudente, o bonus pater
família, também levantaria outra diculdade, anal, qual seria o comportamento
diligente que um sujeito de atenção ordinária adotaria? As críticas se avolumaram
no sentido de que um único sujeito não pode adotar o mesmo comportamento
diligente para o desempenho de ações tão distintas nas mais variadas facetas da
vida cotidiana, porquanto isto levaria a noção do famoso homem médio a um
padrão irreal e atemporal378 na medida em que este sujeito abstrato não existira
em lugar nenhum e em tempo algum. A busca por um conceito menos abstrato
e mais próximo da realidade e das intempéries da vida levou ao que se denomi-
nou de fragmentação dos modelos de conduta,379 ou seja, a contextualização dos
standards de conduta às circunstâncias do caso concreto.380 Em outras palavras,
por meio desse mecanismo, de modo a estabelecer um arquétipo de conduta mais
próximo da situação do caso concreto, criar-se-ão “tantos modelos de diligência
quantos forem os tipos de conduta (...), de modo que os parâmetros, entre os
tipos, serão variáveis”.381
Ocorre que, mesmo diante da exibilização desse pressuposto da responsa-
bilidade civil, a culpa sofreu uma profunda derrocada nos últimos dois séculos.
Ficou patente, especialmente ao longo do século XX, a insuciência que a teoria
geral da responsabilidade civil trazia em seu bojo. A diculdade de demonstração
desse requisito nas ações judiciais, especialmente diante das novas tecnologias e
dos chamados danos anônimos levou a teoria dos danos a exorbitar os estreitos
limites da culpa e encontrar o fundamento da responsabilidade civil no risco.
Assim, o alargamento das hipóteses de responsabilidade civil demonstra inequi-
vocamente o caminho traçado pela responsabilidade civil que relega, na prática
377. “Procede com culpa quem age ilicitamente, podendo e devendo, na emergência, ter atuado de maneira
diferente”. GOMES, Luiz Roldão de Freitas. Elementos de responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Renovar,
2000, p. 55.
378. CALIXTO, Marcelo Junqueira. Op. cit., 2008, p. 11.
379. SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos ltros da reparação
à diluição dos danos. São Paulo: Atlas, 2007, p. 40.
380. CALIXTO, Marcelo Junqueira. Op. cit., p. 11.
381. MORAES, Maria Celina Bodin de. Op. cit., p. 213. Sob esse aspecto, Anderson Schreiber lembra que:
“Na construção de tais modelos, as cortes não se têm baseado tão somente na consciência judicial,
mas se socorrido, saudavelmente, de parâmetros externos. Mesmo fora do âmbito daqueles casos que
tradicionalmente exigem perícia (como os relacionados a erro médico), os magistrados têm buscado
recursos na sociedade para a formação dos standards de conduta, valendo-se, por exemplo, de diretrizes
emitidas por associações prossionais, de códigos de conduta especializados mesmo desprovidos de
valor normativo, da oitiva de assistentes judiciais especializados” SCHREIBER, Anderson. Op. cit.,
p. 40. Para um maior aprofundamento acerca da evolução da noção de culpa normativa vide, ainda,
CALIXTO, Marcelo Junqueira. Op. cit., 2008.
EBOOK RISCO E CAUSALIDADE.indb 81EBOOK RISCO E CAUSALIDADE.indb 81 20/12/2022 10:33:2220/12/2022 10:33:22

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT