Teorias sobre a relação de causalidade

AutorRafael Viola
Páginas113-167
Capítulo IV
TEORIAS SOBRE A RELAÇÃO
DE CAUSALIDADE
11. INTRODUÇÃO
A busca pela causa jurídica é um dos temas mais complexos no campo da
responsabilidade civil. Diversos autores se debruçaram sobre o tema na tentativa
de identicar os critérios mais adequados para, na multiplicidade de condições
que se colocam na produção do dano, eleger aquela que se apresenta juridicamente
como causa do prejuízo.
O debate tem seu início no campo do Direito Penal do século XIX, espe-
cialmente no Direito Alemão. Nesse particular, é curioso notar o tratamento
dispensado à noção de crime. Segundo os estudos iniciais de nexo de causalidade
no Direito Penal, a gura do crime enquanto ação procurou identicar o ato
comissivo como a causação do resultado por um ato de vontade, consistente no
movimento corpóreo voluntário;533 buscou-se, também, equiparar a causação ao
não impedimento do resultado relativamente às consequências que se produzem
– o ato omissivo.534 O resultado, então, deveria ser produzido pelo movimento
corpóreo, sendo necessária a presença de uma relação causal entre ambos. A ação
era tida, assim, como a inuência exercida consciente e voluntariamente sobre
o mundo exterior e provocada pelo movimento corpóreo em virtude da lei de
causalidade. Nesse momento, nas ciências jurídicas, o debate em torno do nexo
de causalidade cou circunscrito ao Direito Penal e, em especial, aos crimes de
homicídio e lesão, delitos notadamente materiais.535
No campo da responsabilidade civil, por ausência de uma sistematização
própria, e na busca de um critério que reduzisse o elevado grau de abstração
realizado pelos magistrados à época, foram incorporadas as construções doutri-
533. “O movimento corpóreo e o resultado constituem os dois elementos igualmente importantes da ideia
de acção como comissão” VON LISZT, Franz. Tratado de direito penal alemão. Trad. José Hygino
Duarte Pereira. Rio de Janeiro: F. Briguet & C Editores, 1899, t. I, p. 198.
534. Idem, p. 207.
535. GOLDENBERG, Isidoro. Op. cit., 2000, p. 13.
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RISCO E CAUSALIDADE • Rafael Viola
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nárias do Direito Penal, o que se pode vericar pela utilização das teorias penais
nos estudos civilistas da responsabilidade civil. Evidentemente que tal premissa,
embora louvável inicialmente na medida em que não existiam critérios cientí-
cos próprios no campo civil, demanda cautela na sua análise, especialmente em
consideração às nalidades perseguidas entre o direito civil e o direito penal.536
Iniciou-se, a partir de então, um tratamento especíco do nexo de causalidade
no campo do direito civil, o que levou a doutrina de responsabilidade civil a
propugnar por diversas teorias acerca do nexo de causalidade.
É importante destacar que a escolha legislativa por uma outra metodologia
(leia-se teoria) na busca pela causa jurídica produzirá consequências distintas.
Cogite-se, por exemplo, que A contrata um motorista B para buscá-lo em certo
horário. Suponha que o motorista, agindo negligentemente, perde a hora, o que
leva A a comprar uma passagem de trem para não perder seu compromisso.
Contudo, o trem em que A estava descarrila, em grave acidente, provocando sua
morte. Ou imagine-se que C, culposamente, vem a atropelar D inigindo-lhe
leves escoriações sem que haja, contudo, qualquer risco à sua vida. Ao ser en-
caminhado para o hospital, D contrai uma doença grave, vindo a falecer. Ao se
analisar esses exemplos, verica-se que as ações culposas de B e C estão inseridas
no processo causal conducente ao evento morte de A e D. Nesse caso, deve ser
atribuída a obrigação de indenizar aos atos culposos? Elas são meras condições ou
podem ser alçadas a causas dos resultados? Essa resposta só poderá ser alcançada
a depender dos critérios legislativos vigentes: a adoção de uma ou outra teoria do
nexo de causalidade certamente acarretará na atribuição ou exclusão da obrigação
de reparar o dano. Nesse ponto, é preciso recordar que a causalidade, embora
constitua elemento incontestável no campo da reparação civil, tem resistido a
todos os esforços em reduzi-lo a uma fórmula útil e compreensiva, o que o leva
a ser objeto de uma variedade de análises considerando sua natureza, conteúdo,
escopo e signicância.537 De fato, não há uma regra matemática ou exata que
possa efetivamente identicar a causa de um dano.
Durante boa parte do início do século passado, a aplicação do nexo de
causalidade limitou-se a uma retórica causal. Mas é justamente a partir de mea-
dos do século passado que o uso da causalidade sofreu profundas alterações na
536. Ainda que se admita a existência de um lastro comum e importantes zonas de interseção entre as
construções teóricas para o nexo de causalidade no direito civil e penal na busca por uma teoria sobre
a natureza da causação e que as construções teóricas não são fundamentalmente distintas, não se pode
perder de vista que a nalidade perseguida pelos diferentes ramos do direito inuencia as soluções.
Sobre o tema, v. PEREIRA, Rui Soares. O nexo de causalidade na responsabilidade delitual – fundamento
e limites do juízo de condicionalidade. Almedina, 2017, p. 245-260.
537. WRIGHT, Richard W. Causation in tort law. California Law Review. v. 73, Issue 6, 1985, p. 1737.
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CAPíTulO IV • TEORIAS SOBRE A RElAÇÃO DE CAuSAlIDADE
busca da identicação de uma causa.538 As mais variadas teorias buscam reduzir
a discricionariedade na complexa tarefa de identicar a distinção entre condição
e causa. Basicamente se desenharam dois tipos de teorias. De um lado as teorias
generalizantes e, de outro, teorias seletivas ou individualizantes. Entende-se
como teoria generalizante as teorias que reconhecem que existem leis causais
gerais regulares, ao passo que as teorias individualizantes não reconhecem essa
regra geral, mas, antes, insistem que há uma qualidade em ser a “causa, não se
confundindo com uma simples condição,539 isto é, distinguem causa de uma
mera condição.540 Em outras palavras, a doutrina caracteriza as teorias genera-
lizantes como aquelas em que basta o liame naturalístico para sua identicação
enquanto seriam individualizantes todas as teorias que não se conformam que
a causa seria a soma de todas as condições necessárias ao resultado, buscando
identicar apenas uma causa dentre as várias condições.541 Esta classicação não
é isenta de críticas, tampouco aceita universalmente.542 De toda sorte, não há
consenso quanto a classicação e sistematização das teorias e perspectivas sobre
o nexo de causalidade, pelo que esse debate se torna relativamente desprovido de
maior relevância. Cumpre notar, apenas, que, como será melhor desenvolvido
posteriormente, segundo Menezes Cordeiro, não é possível se valer de fórmulas
universais válidas543 para identicar o nexo de causalidade, e, portanto, torna-se
necessário desenvolver uma metodologia de concretização da causalidade, va-
lendo-se de vários critérios de imputação.544
Muito embora se possam identicar inúmeras teorias, a duas principais
teorias – e que tiveram profundo destaque no meio acadêmico e jurisprudencial –
foram as teorias da equivalência das condições e da causalidade adequada. Merece
destaque, também, a teoria do dando direito e imediato, adotada em algumas
codicações. Nesse capítulo tentar-se-á tratar das duas principais e enfrentar-se-á
aquelas que chegaram a ter maior destaque.
538. Idem, p. 1737.
539. HART, H. L. A., et HONORÉ, A. M. Op. cit., 1967, p. 383. Para este autor: “e fundamental distinction
recognized by continental theorists is between those theories which recognize that every particular
causal statement is implicitly general, in the sense that its truth is dependent on the truth of some
general statement of regularities, and those theories which do not recognize this. eories of the rst
kind are known as ‘generalizing theories’; those of the second kind as ‘individualizing theories’.
540. ENGISCH, Karl. La causalidad como elemento de los tipos penales. Buenos Aires: Hammurabi, 2008,
p. 78.
541. GOLDENBERG, Isidoro. Op. cit., 2000, p. 19.
542. PEREIRA, Rui Soares. O nexo de causalidade na responsabilidade delitual – fundamento e limites do
juízo de condicionalidade. Almedina, 2017, p. 239-240.
543. CORDEIRO, Antonio Menezes. Op. cit., 2017, p. 548.
544. Idem, p. 549.
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