A percepção do risco

AutorRafael Viola
Páginas1-39
Capítulo I
A PERCEPÇÃO DO RISCO
1. POR UMA SOCIOLOGIA DO RISCO
A teoria da reparação dos danos, embora tenha sido objeto de profundos
estudos ao longo dos séculos, é tema da mais alta complexidade e diculdade.
Não é sem razão que Josserand explicitava a “revolução” que enfrentava a teoria
da responsabilidade, levando-a a novos destinos,1 colocando os autores diante das
mais variadas divergências e oposições, problemas que não deixam de encontrar,
atualmente, eco na jurisprudência, na doutrina e na legislação.2
A reparação civil sempre esteve no centro das sociedades, desde as mais
primitivas3-4 até os dias de hoje, sendo importante instrumento de pacicação
1. JOSSERAND, Louis. Evolução da responsabilidade civil. Revista Forense. v. LXXXVI, ano XXXVIII,
Fascículo 454, 1941, p. 548.
2. MAZEAUD, Henri, MAZEAUD, Leon y TUNC, André. Tratado teórico y práctico de la responsabili-
dad civil delictual y contractual. Trad. Luis Alcalá-Zamora y Castillo. 5. ed. Buenos Aires: Ediciones
Jurídicas Europa-América, 1961, v. I, Tomo primero, p. 1.
3. Se, em sua origem, a responsabilidade civil, permaneceu alijada do campo jurídico, vigorando, nas
sociedades primitivas, o uso da força contra a força, (MAZEAUD, Henri, MAZEAUD, Leon y TUNC,
André. Op. cit., p. 36), com o decurso do tempo, o Estado avocou para si a função de pacicação dos
conitos sociais extinguindo a ideia de vingança privada e determinando os critérios de reparação dos
danos. Sobre o tema, v. LIMA, Alvino. Culpa e risco. 2. ed. rev. e atual. pelo Prof. Ovídio Rocha Barros
Sandoval, São Paulo: Ed. RT: 1998.
4. No Direito Romano vericou-se um profundo desenvolvimento da responsabilidade civil, que esta-
beleceria as raízes da reparação dos danos do antigo Direito Civil Francês, assim como da teoria geral
da responsabilidade civil fundada na culpa, conforme estabelecido no Código Civil Francês de 1804
(MONTEIRO, Jorge Sinde. Estudos sobre a responsabilidade civil. Coimbra, 1983, p. 15). Discute-se,
entre os autores, se a Lex Aquilia efetivamente introduziu o elemento culpa na reparação dos danos.
Ainda que se admita o uso da expressão “culpa” na célebre passagem in lege Aquilia et levíssima culpa
venit, os autores divergem acerca de sua existência na Lex Aquilia. Sobre esse ponto, v. BETTI, Emilio.
Teoria geral das obrigações. Campinas: Bookseller, 2005, CALIXTO, Marcelo Junqueira. A culpa na
responsabilidade civil – estrutura e função. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, MACIÁ, Antonio Borrel.
Responsabilidades derivadas de culpa extracontratual civil. Barcelona: Bosch, 1942, FISCHER, Hans
Albrecht. A reparação dos danos no direito civil. Saraiva: São Paulo, 1938 e HESPANHA, António Manuel.
Panorama histórico da cultura jurídica europeia. Lisboa: Europa-América, 1997 e MOREIRA ALVES,
José Carlos. Direito Romano. 16. ed. Rio de Janeiro: 2014, p. 589). Jorge Bustamente Alfonso lembra
que a Lei Aquilia estava longe de constituir uma regra geral no sentido de obrigar a reparar qualquer
dano causado injustamente (ALSINA, Jorge Bustamante. Teoría general de la responsabilidad civil. 9. ed.
Abeledo Perrot: Buenos Aires, 1997, p. 33). Pode-se concluir que o Direito Romano, dominado pelas
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RISCO E CAUSALIDADE • Rafael Viola
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das relações sociais, ou, ao menos, de conscientização da necessidade de o Estado
atuar para fazer cessar as colisões de interesses.5 Essa crescente importância leva
o direito da reparação civil a uma perene metamorfose:6 a passagem dos mais
variados estágios da responsabilidade civil, como se pode vericar, por exemplo,
a partir da superação do princípio geral da responsabilidade civil fundada na
culpa, decorreu, não de um mero capricho teórico, mas em razão da mudança da
nova realidade sócio-político-econômica que o capitalismo e os avanços tecno-
lógicos trouxeram.7 A partir dos anos 1860, percebeu-se uma multiplicação dos
danos acidentais à pessoa8 – notadamente os acidentes do trabalho e os acidentes
relacionados ao transporte de pessoas, e sua crescente gravidade – decorrente,
especialmente, do processo de industrialização.9 O surgimento dos chamados
danos anônimos,10 produziu, junto aos tribunais uma mudança na reparação
dos danos que fez com que o regime da responsabilidade civil objetiva, isto é,
independentemente da existência de culpa, perdesse o seu caráter subsidiário,
para apresentar, ao menos na prática judiciária, contornos de um princípio geral.11
vantagens da certeza jurídica, mantendo-se el ao princípio da indenização pecuniária, introduziu
uma noção embrionária acerca do elemento culpa, ainda que muito distante da atual concepção, que
só viria a ser construída ao nal do século XVIII e início do século XIX.
5. Termo utilizado por Stefano Rodotà em entrevista concedida em 30.06.2002 a Danilo Doneda e
publicada originalmente na Revista Trimestral de Direito Civil, v. 3, n. 11, pp. 225-308, jul./set. 2002.
Segundo o autor italiano, “a disciplina da responsabilidade civil é uma disciplina que se presta muito a
seguir as novas tendências determinadas em uma organização social, e que oferece a elas uma primeira
forma de tutela quando as outras formas de tutela, que demandariam uma intervenção do legislador,
ainda não estão maduras e percebidas pela sociedade e pelos parlamentos” e, portanto, ela é como “a
campainha de um alarme, há um problema que deve ser resolvido em termos jurídicos, então veremos
o quanto pode permanecer no âmbito da responsabilidade civil sem alterar a sua função” (Disponível
em: http://www.doneda.net/2017/06/23/entrevista-com-stefano-rodota/).
6. BELLAYER-LE COQUIL, Rozenn. Le droit et le risque. In: ATALA, n. 5, p. 152. “Au bonheur du risque?”
2005.
7. PASSOS, José Joaquim Calmon de. O risco na sociedade moderna e seus reexos na teoria da respon-
sabilidade civil e na natureza jurídica do contrato de seguro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862,
ano 7, n. 57, Teresina, 1º jul. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/ artigos/2988. Acesso em: 1º jun.
2018.
8. VINEY, Genevieve. Pour ou contre un principe général de responsabilité civile pour faute? Osaka
University Law Review. 49 p. 35.
9. BARRIOS, Francisco Ternera, e ESPINOSA, Fabricio Mantilla. La responsabilité objective du fati des
activités dangereuses. Estud. Socio-Jurd., Bogotá (Colombia), 6(2): 386-405, jul./dic., 2004, p. 386.
10. “No m do século XIX empregou-se esforço para alargar a aplicação das regras da responsabilidade
civil. O aumento dos prejuízos devido principalmente aos maquinismos, a diculdade de descobrir
nos acidentes de causas complexas a culpa duma pessoa responsável, a favor particular sob um regi-
me democrático para as classes sociais às quais pertencem as vítimas naturais de certos acidentes, o
aperfeiçoamento das ideias cientícas e losócas sobre a pesquisa dos efeitos e das causas, foram as
razões dominantes deste movimento” (RIPERT, Georges. A regra moral nas obrigações civis. Campinas:
Bookseller, 2002, p. 207).
11. No Brasil, o legislador de 2002 estabeleceu uma cláusula geral de responsabilidade civil independente
de culpa no art. 927, parágrafo único, do Código Civil. Verica-se, portanto, a criação de um sistema
dualista de reparação em que convivem, lado a lado, uma cláusula geral de responsabilidade fundada
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CAPíTulO I • A PERCEPÇÃO DO RISCO
O nal do século XX e início do século XXI, por sua vez, têm sido de inten-
sas transformações na estrutura e função da responsabilidade civil, colocando-a
em um sensível ponto de indenição.12 Essa indenição decorre, em parte, da
transição do modelo social que vem se operando desde o nal do século passado
e que nos leva a modos de vida distintos dos tipos tradicionais de ordem social.13
A modernidade permitiu aos seres humanos gozarem de uma existência segura,
diferente dos sistemas pré-modernos.14 Esse período de nal de século, sofrendo
o intenso impacto da ciência, da tecnologia e da razão, cujas origens remontam ao
Iluminismo do século XVII e XVIII, deveria levar-nos a uma era ainda mais estável
e segura.15 Talvez, em algum momento, tenhamos experenciado esse período de
estabilidade e segurança. No entanto, a percepção que se tem nesse início de século,
é que vivemos numa sociedade cada vez mais perigosa, fora de controle e insegura.
Essa percepção decorre, em parte, de uma das características mais acentu-
adas da sociedade contemporânea: o acelerado progresso cientíco e tecnológi-
co16 – cujo objetivo consiste na melhoria da vida de todos no planeta –, mas que,
ao mesmo tempo, traz consigo inúmeros riscos e perigos para a civilização,17 o
que viria a ser descrito por Rafaelle De Giorgi como o período paradoxal das
sociedades contemporâneas em que “reforçam-se simultaneamente segurança
e insegurança, determinação e indeterminação, estabilidade e instabilidade.18
na culpa e uma cláusula geral de responsabilidade independente de culpa. Conra-se o disposto nos
art. 186 e 927, ambos do Código Civil Brasileiro: “Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária,
negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral,
comete ato ilícito.
“Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, ca obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos espe-
cicados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua
natureza, risco para os direitos de outrem.” (grifou-se)
12. DÍEZ-PICAZO, Luis. Derecho de daños. Civitas: Madrid, 1999, p. 19. Nada obstante, há de se reconhecer
que a crise que afeta a responsabilidade civil é antiga e, parece, esteve presente em todas as suas fases.
13. GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora Unesp, 1991, p .14.
14. GIDDENS, Anthony. Runaway world – how globalization is reshaping our lives. Londres: Prole
Books, 2002. Arquivo Kindle., p. 2.
15. GIDDENS, Anthony. Idem, p. 17.
16. LOPEZ, Teresa Ancona. Responsabilidade civil na sociedade de risco. Sociedade de risco e direito
privado: desaos normativos, consumeristas e ambientais. São Paulo: Atlas, 2013, p. 3.
17. “e world in which we nd ourselves today, however, doesn’t look or feel much like they predicted it
would. Rather than being more and more under our control, it seems out of our control – a runaway
world. Moreover, some of the inuences that were supposed to make life more certain and predictable
for us, including the progress of science and technology, oen have quite the opposite eect. Global
climate change and its accompanying risks, for example, probably result from our intervention into
the environment. ey aren’t natural phenomena. Science and technology are inevitably involved in
our attempts to counter such risks, but they have also contributed to creating them in the rst place
(GIDDENS, Anthony. Runaway World. Prole Books. Edição do Kindle, p. 2).
18. DE GIORGI, Rafaelle. Direito, democracia e risco. Vínculos com o futuro. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris Editor, 1998, p. 192.
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