A interpretação do Art. 618 do CC sobre a responsabilidade do construtor

AutorCarlos Pinto Del Mar
Páginas85-106

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Evolução do tema – visão geral e atual

O entendimento jurídico sobre a responsabilidade do construtor modificou-se ao longo do tempo.

Quando foi editado o Código Civil de 1916, os dados da indústria imobiliária, a sua dinâmica, as técnicas construtivas, os conceitos jurídicos sobre a matéria, sobre as obrigações das partes, enfim, as premissas de raciocínio e a situação de fato eram completamente diferentes em relação à situação atual. A população total do Brasil, quando foi editado o Código Civil de 1916, era da ordem de 27.540.614 habitantes. Não tinha ocorrido ainda o êxodo rural, que trouxe às grandes cidades enorme necessidade de habitações.

Entre as novidades posteriores ao Código Civil de 1916 – e que passaram a influenciar a interpretação do seu art. 1.245 –, houve a regulamentação da profissão de engenheiro, que ocorreu em 1933, definindo sua responsabilidade profissional.

Verificou-se a modificação das técnicas construtivas, que também passou a influir na interpretação do alcance da garantia prevista no art. 1.245 do Código Civil de 1916.

Nas décadas de 1960 e 1970, houve a edição de uma série de leis e decretos que estimularam o setor habitacional e da construção civil, destacando-se: a Lei n. 4.380, de 21 de agosto de 1964, que instituiu a correção monetária nos contratos imobiliários de interesse social, o sistema financeiro para a aquisição da casa própria, criou o Banco Nacional da Habitação (BNH), sociedades de crédito imobiliário, as letras imobiliárias, o Serviço Federal de Habitação e Urbanismo, e deu outras providências; a Lei n. 4.591, de 16 de dezembro de 1964, que dispõe sobre o condomínio em edificações e as incorporações imobiliárias; a Lei n. 4.864, de 29 de novembro de 1965, que criou medidas de estímulo à construção civil; a Lei n. 5.741, de 1º de dezembro de 1971, que dispõe sobre a proteção do financiamento de bens imóveis vinculados ao Sistema Financeiro da Habitação.

Esse conjunto de medidas, dirigidas, sobretudo, à solução do problema da moradia, criou condições para que houvesse expansão no mercado imobiliário, com grande incremento na quantidade de construções, o surgimento de novas cons-

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trutoras, de novos profissionais atuando no ramo, entre muitas outras novidades. A ampliação do mercado e das construções deu à responsabilidade do construtor uma dimensão maior. A quantidade de construções era maior, a de pessoas, também, e a de problemas, maior ainda.

Nesse entretempo, houve modificações na legislação do inquilinato, com repercussão direta no setor da construção civil, fazendo oscilar o estímulo e a retração dos investidores no mercado de imóveis para locação.

Em 1990, veio a Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990 – o Código de Defesa do Consumidor –, que passou a dar tratamento diferenciado aos consumidores, entre os quais se inserem os adquirentes de unidades de empreendimentos imobiliários.

Outras importantes alterações conceituais passaram a influir na interpretação da responsabilidade do construtor, principalmente com a consagração dos princípios da boa-fé objetiva e da função social do contrato, já no Código Civil de 2002.

Desse retrospecto, pode-se perceber que muitos fatos ocorreram posteriormente ao Código Civil de 1916, influenciando e modificando o pensamento jurídico sobre a responsabilidade do construtor. A situação e muitos dos princípios que vigoravam à época do Código de 1916 eram diferentes dos princípios que emanam dos fatos atuais, o que nos autoriza a considerar que muitos dos grandes mestres que emitiram juízos naquele contexto jurídico poderiam revisar o seu entendimento caso reapreciassem a mesma questão sob os princípios jurídicos supervenientes (CDC, por exemplo). É natural que a jurisprudência também tenha acompanhado essas alterações e tenha-se transformado ao longo do tempo. Isso faz com que se deva interpretar a doutrina clássica e a jurisprudência mais antiga com o devido temperamento (cum grano salis), ajustando-as ao cenário atual.

As classificações feitas pela engenharia, priorizando os problemas referentes à estabilidade da edificação (solidez) em relação à habitabilidade (segurança – salubridade dos moradores)
4.2. 1 Introdução

Com base nas teorias e classificações que existem na Engenharia, é possível estabelecer no campo jurídico (e particularmente na classe dos vícios referentes a solidez e segurança) prioridade dos vícios referentes a solidez (solidez = estabili-

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dade da edificação), em relação aos vícios ou defeitos referentes a habitabilidade (segurança = salubridade dos moradores = habitabilidade)147, com importantes reflexos na aplicação dos prazos de responsabilidade e para reclamação.

A aplicação das regras jurídicas deve levar em conta a importância da falha em relação ao conjunto e, para isso, é necessário ter visão sistêmica da edificação. Assim, em princípio, é correto que a responsabilidade do construtor acompanhe a classificação e a priorização dos problemas que são feitas pela própria Engenharia e correto, também, que se considerem maiores os prazos de responsabilidade do construtor em relação aos itens ou sistemas mais importantes da edificação, em relação àqueles que, mesmo sendo importantes, situam-se em patamar inferior aos primeiros.

Dentro da classe dos problemas referentes à solidez e segurança, por exemplo, poderia ser feita subclassificação em razão da natureza e prioridade dos itens, pois alguns elementos ou serviços antecedem e são prioritários em relação a outros, como é o caso, dentro do sistema estrutural, das fundações e pilares em relação às divisórias internas; estas inexistiriam se não existissem condições de assentamento do prédio.

Em teorias e classificações de diversas naturezas, a Engenharia prioriza alguns subsistemas em relação a outros. Assim ocorre na visão sistêmica da edificação, na Teoria dos Estados Limites, quando distingue os estados limites últimos de estados limites de utilização e também quando classifica os critérios de desempenho para edifícios habitacionais, separando critérios essenciais (entre os quais se insere a estabilidade da edificação) de critérios classificatórios (entre os quais se inserem questões de habitabilidade, adiante comentadas).

4.2. 2 Visão sistêmica da edificação – tratamento dos problemas com base na respectiva importância

Quando se analisa a importância dos vícios e defeitos, é preciso ter visão sistê-mica da edificação. A visão sistêmica compreende os edifícios como complexos (sistemas) funcionais maiores, constituídos de vários subsistemas componíveis de formas diversas; os próprios objetos são redes de relações, embutidas em redes maiores. De acordo com a visão sistêmica, as propriedades essenciais de um organismo são propriedades do todo, que nenhuma das partes possui. Elas surgem das interações e das relações entre as partes. Embora possamos discernir

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partes individuais em qualquer sistema, elas não são isoladas, e a natureza do todo é sempre diferente da mera soma de suas partes. Para o pensador sistêmico, as relações são fundamentais. Uma estrutura bem feita propicia um sistema de vedação de qualidade que, por sua vez, permite que o revestimento obtenha bom desempenho, e assim por diante. Nesse contexto, a estrutura antecede e é condição da existência ou funcionamento dos demais sistemas.

4.2. 3 Estados limites: últimos e de utilização

Na teoria dos estados limites das estruturas de concreto, a Engenharia faz uma distinção, uma priorização, entre estados limites últimos, que são aqueles correspondentes ao valor máximo da capacidade de suporte da estrutura, e estados limites de utilização, que decorrem de critérios de utilização normal ou de durabilidade. O termo “estado limite” vem sendo preferido a “colapso”.

Estado limite último, segundo Fusco, ocorre quando a estrutura esgota a sua capacidade de suporte, deixando de apresentar as características exigíveis para a sua utilização; nesse caso, surge uma deficiência estrutural, caracterizada pelo aparecimento de danos estruturais. Por outro lado, estado limite de utilização existe quando ficar comprometida a durabilidade da estrutura ou quando ficar prejudicada a utilização funcional da construção; nesse caso, não há danos estruturais que, de imediato, comprometam a sua integridade, mas apenas desempenhos inadmissíveis para a manutenção da própria estrutura ou para a utilização nor-

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mal da construção148. Ou seja, os problemas de um sistema podem corresponder a um desempenho fora dos padrões especificados para a sua utilização normal ou a uma parada de funcionamento devido à ruína de um ou mais de seus componentes. Os estados limites de desempenho correspondentes ao primeiro tipo de problema, no qual não há ruína do sistema, são designados por estados limites de utilização. Os estados limites de desempenho correspondentes ao segundo tipo de problema, no qual há uma interrupção da utilização, são chamados estados limites últimos149.

Exemplificando, temos:

  1. estados limites...

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