A judicialização da família e a (des)proteção da pessoa dos filhos

AutorRenata Vilela Multedo
Ocupação do AutorDoutora e Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). MBA em administração de empresas pela PUC-Rio. Professora Titular de Direito Civil do Centro Universitário IBMEC, da Pós Graduação em Direito Privado Patrimonial e de Direito de Família e Sucessões da PUC-Rio.
Páginas83-101
A JUDICIALIZAÇÃO DA FAMÍLIA E A (DES)
PROTEÇÃO DA PESSOA DOS FILHOS
Renata Vilela Multedo
Doutora e Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ). MBA em administração de empresas pela PUC-Rio. Professora Titular de
Direito Civil do Centro Universitário IBMEC, da Pós Graduação em Direito Privado
Patrimonial e de Direito de Família e Sucessões da PUC-Rio. Advogada, Mediadora
e gestora positiva de conitos. Capacitada e docente em Práticas Colaborativas pelo
IBPC e em Negociação pelo (PON) da Harvard Law School. Membro efetivo do IAB,
IBDFAM, IBDCivil, IBERC, IBPC e IACP. Membro do Conselho da civilistica.com –
Revista eletrônica de Direito Civil.
Aquilo que não é necessariamente uma escolha
não pode ser considerado como mérito ou como fracasso.
Milan Kundera
Sumário: 1. Introdução – 2. A constitucionalização da família e o melhor interesse dos lhos – 3.
Guarda, autoridade parental e convivência compartilhada – 4. Limites da intervenção do Estado
na autoridade parentaL – 5. A potencialidade dos métodos consensuais de solução de conitos e
dos pactos extrajudiciais – 6. Considerações nais – 7. Referências.
1. INTRODUÇÃO
A consolidação do divórcio pela sociedade brasileira veio acompanhada de uma
crescente judicialização dos conf‌litos familiares. Muitas são as razões e as consequ-
ências deste fenômeno, mas, sem dúvida, a mais gravosa delas é a desproteção da
pessoa dos f‌ilhos, que se transformam nas maiores vítimas dos litígios travados por
seus próprios pais.1
1. Chega-se a casos extremos em que um genitor, não conseguindo suportar o luto da separação e o sentimento
de rejeição, usa o f‌ilho do casal para se vingar, incutindo na criança falsas lembranças a respeito do outro.
Trata-se da síndrome da alienação parental, nova situação perante o atual direito de família, que foi def‌inida
pela primeira vez em 1985, por Richard A. Gardner, na obra Recent trends in divorce and custody litigation,
The Academy Forum, 29(2), p. 3-7. Em português, sugere-se a leitura do artigo de Richard A. Gardner,
traduzido por Rita Rafaeli. O DSM-IV tem equivalente para o diagnóstico de Síndrome de Alienação Parental
(SAP)?. Disponível em: http://www.mediacaoparental.org/page22.php. Acesso em: 29 mar. 2012. No Brasil,
a Síndrome da Alienação Parental foi regulada pela Lei 12.318, de 26 de agosto de 2010. De acordo com
o disposto no art. 2º da referida lei, “Considera-se ato de alienação parental a interferência na formação
psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos
que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor
ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este”.
O Código Civil de 2002 derrogou o art. 10 da Lei 6.515/77, que previa que os f‌ilhos f‌icariam com o cônjuge
que não tivesse dado causa à separação, prevalecendo a orientação da jurisprudência de que a guarda dos
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A dif‌iculdade em separar o exercício da conjugalidade da parentalidade, seja
pelo ex-casal, seja por apenas um deles, torna-se hoje o principal obstáculo para o
exercício da corresponsabilidade parental, e acaba por impedir a efetiva participação
de ambos os pais no processo de educação e formação dos f‌ilhos após a dissolução
da sociedade conjugal.
Enquanto o direito de família caminhou a passos largos para o f‌im da perqui-
rição da culpa nas dissoluções conjugais, pais eternizam suas angústias com o es-
facelamento de suas uniões buscando, no Poder Judiciário, soluções para questões
que transbordam a seara jurídica, o que dif‌iculta ainda mais o exercício de uma
parentalidade responsável e cooperativa. Na relação familiar contemporânea, não
há dúvida de que as regras estão a serviço da proteção da criança e do adolescente,
cujos melhores interesses devem sempre ser amplamente resguardados pelo Estado,
pela sociedade e pela família em si.
A introdução da guarda compartilhada no Brasil pretendeu convocar os pais
a exercerem de forma conjunta a autoridade parental2 - sendo seu real mérito mais
social do que jurídico - ao popularizar o debate da coparticipação parental na vida dos
f‌ilhos mesmo após o f‌im da união conjugal ou convivencial.3 Fato é que o legislador
infraconstitucional provocou uma profunda mudança no direito de família brasileiro
no que tange às relações parentais.
De fato, houve no ordenamento pátrio signif‌icativas alterações no regime de
guarda. A Lei11.698, de 13 de junho de 2008, modif‌icou o Código Civil para insti-
tuir, ao lado da guarda unilateral, 4 a guarda compartilhada no Brasil, retirando do
sistema jurídico brasileiro a preferência pela primeira modalidade. Posteriormente,
a Lei no 13.058, de 22 de dezembro de 2014, alterou novamente o mesmo diploma
legal, tornando a modalidade da guarda compartilhada como regra geral.
Nesse cenário, cabe indagar sobre o que representa o melhor interesse dos f‌i-
lhos no exercício e na formação da coparentalidade. Af‌inal, o aspecto funcional da
parentalidade é evidentemente mais relevante do que qualquer outro. Ressalta-se
f‌ilhos deve ser concedida a quem reúna melhores condições para exercê-la. Percebe-se assim que o legislador,
ao tratar dos critérios que devem orientar o juiz no deferimento da guarda, tomou como norte o melhor
interesse da criança, abandonando para f‌ins de deferimento da guarda a questão da culpa na separação.
2. GRISARD FILHO, Waldyr. Guarda compartilhada: um modelo de responsabilidade parental. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 111.
3. Observa Ana Carolina Brochado Teixeira que “não obstante a desnecessidade do instituto, o thelos de atri-
buir maior efetividade aos deveres dos genitores deve ser festejado, pois numa época em que o Brasil vive
grandes problemas com a irresponsabilidade parental, a possibilidade de dar maior ef‌icácia a tais deveres
coaduna integralmente com os objetivos constitucionais, não apenas de tutela da pessoa humana, mas
também de proteção ao crescimento biopsíquico saudável da pessoa menor de idade” (TEIXEIRA, Ana
Carolina Brochado. A (des)necessidade da guarda compartilhada. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado;
RIBEIRO, Gustavo Pereira Leite (Coords.). Manual de direito das famílias e das sucessões. Belo Horizonte:
Del Rey, 2008, p. 318).
4. No ano de 2007, anterior a promulgação da lei, em 89,1% dos divórcios, a responsabilidade pela guarda
dos f‌ilhos menores foi concedida às mulheres. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/
populacao/ registrocivil/2007/registrocivil_2007.pdf. Acesso em: 10 nov. 2020.

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