Possíveis aportes críticos de gênero em direito das famílias

AutorLígia Ziggiotti de Oliveira
Ocupação do AutorDoutora em Direitos Humanos e Democracia pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Paraná (2019). Mestra em Direito das Relações Sociais pela mesma instituição (2015). Professora de Direito Civil da graduação e da pós-graduação em Direito da Universidade Positivo. Vice-presidenta da ANAJUDH-LGBTI. Advogada.
Páginas65-82
POSSÍVEIS APORTES CRÍTICOS DE GÊNERO
EM DIREITO DAS FAMÍLIAS
Lígia Ziggiotti de Oliveira
Doutora em Direitos Humanos e Democracia pelo Programa de Pós-Graduação da
Universidade Federal do Paraná (2019). Mestra em Direito das Relações Sociais pela
mesma instituição (2015). Professora de Direito Civil da graduação e da pós-graduação
em Direito da Universidade Positivo. Vice-presidenta da ANAJUDH-LGBTI. Advogada.
Sumário: 1. Introdução – 2. Perspectivas de gênero em análises jurídicas – 3. Assimetrias de gênero
em relações familiares e os instrumentos jurídicos aptos ao enfrentamento das vulnerabilidades;
3.1 Constituição e ecácia do vínculo conjugal e gênero; 3.2 Dissolução do vínculo conjugal e
gênero; 3.3 Constituição da autoridade parental e gênero.; 3.4 Autoridade parental e gênero – 4.
Considerações nais – 5. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Em relações familiares, as assimetrias de gênero ressoam de modo enfático. A
distribuição do trabalho remunerado e não remunerado, as constatações quanto à
heterossexualidade ou quanto à homossexualidade a partir dos afetos estabelecidos
nestes espaços, o cuidado com crianças e adolescentes providenciado por adultas(os),
por exemplo, conduzem a uma série de signif‌icantes disponíveis à tradução jurídica,
que processa referidas realidades em termos de produção de direitos e de deveres.
Apesar disso, as lentes críticas de gênero raramente acompanham a análise
doutrinária e a aplicação prática dos institutos jurídicos. O ponto cego, neste aspec-
to, representa verdadeira fratura para o alcance da igualdade material em relações
privadas, porque não se funcionalizam1 adequadamente os instrumentos disponíveis
para a superação de vulnerabilidades desta natureza.
Com isso, o objetivo deste capítulo consiste em demarcar focos do Direito das
Famílias com especial vocação para uma análise crítica de gênero. Para tanto, realiza-se
um breve sobrevoo acerca de como tais perspectivas ingressaram, historicamente,
no radar jurídico, para, assim, desdobrar as imbricações específ‌icas para os eixos
conjugais e parentais.
Pinçadas a constituição e a dissolução conjugais, bem como a constituição e
o exercício do poder parental, como f‌ios condutores deste texto, oferece-se uma
espécie de radiograf‌ia das principais críticas a partir de gênero alocadas em tais
1. “Funcionalizar um instituto é descobrir sob qual f‌inalidade ele serve melhor para o cumprimento dos
objetivos constitucionais, qual seja, a tutela da pessoa humana na perspectiva não apenas individual, mas
também solidarista e relacional. Por isso, descobrir a função de um instituto é mais importante do que
investigar seus aspectos estruturais” (TEIXEIRA; KONDER, 2019, p. 140).
LÍGIA ZIGGIOTTI DE OLIVEIRA
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focos de produção de sentido jurídico, com a expectativa de que a apresentação
introdutória destas rotas de abordagem promova faíscas dentro dos estudos e das
práticas do campo.
2. PERSPECTIVAS DE GÊNERO EM ANÁLISES JURÍDICAS
Do ponto de vista cronológico, as assimetrias de gênero foram combatidas, antes,
por organizações externas aos ambientes acadêmicos e de produção de Direito estatal,
até porque estes se encontram, historicamente, fechados à presença de quem não
incorpora o padrão masculino, branco e cis-heteronormativo. Com isso, a atmosfera
das lutas sociais se apresenta como o principal motor das digressões doutrinárias
atualmente em curso.
Para se tratar das irradiações das análises de gênero para o Direito, em primeiro
lugar, é importante destacar que as teorias de gênero propriamente ditas se apresentam
em profusão notoriamente crescente, com destaque às literaturas norte-americana
e francesa, a partir das décadas de 60 e de 70.
Durante a década de 70, algumas feministas acrescentaram a gênero a complexi-
dade das forças sociais que def‌iniam expectativas, preferências, habilidades e espaços
relacionados a sexo, como Gayle Rubin (1993), o que conduziu, cada vez mais, à
consolidação desta categoria como útil para uma análise crítica das relações sociais.
Em consonância com Joan Scott, de modo mais pacif‌icado, o conceito “indicava
uma rejeição do determinismo biológico implícito no uso de termos como ‘sexo’ ou
‘diferença sexual’ (...) e enfatizava igualmente o aspecto relacional das def‌inições
normativas da feminilidade” (SCOTT, 1990, p. 72). Atualmente, as perspectivas
pós-estruturalistas desestabilizam cada vez mais a assimilação direta que se fazia
entre sexo e natureza.
Considerado o contexto brasileiro, a categoria analítica de gênero se tornou
mais perceptível em textos posteriores aos anos 90. Com efeito, se a segunda onda
do feminismo teve seu início identif‌icado nos anos 60 na Europa Ocidental e nos
Estados Unidos, a narrativa crítica sobre o papel das mulheres em sociedade passa
a se conf‌igurar, entre nós, a partir dos anos 70, nas pautas marcadas pelo peso da
ditadura militar e pela inf‌luência do pensamento marxista.
Disputar a pauta feminista no contexto ditatorial, de greves e de complexa
situação política nacional signif‌icou relevante desaf‌io. Mesmo assim, as feministas
brasileiras formaram, durante este sombrio período, grupos bem articulados no
exterior durante o exílio (PEDRO, 2010, p. 126).
Sequencialmente, a democratização promoveu uma abertura dialógica e plural
para estes grupos durante o processo constituinte, incluídos os ligados à defesa dos
direitos das mulheres. Com a derrocada militar, abriram-se algumas vias entre Estado
e movimentos sociais, permitindo a participação de um cada vez melhor articulado
feminismo na formulação dos contextos político e jurídico nacionais.

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