A natureza da responsabilidade civil pré-contratual

AutorRegis Fichtner
Páginas187-241
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CAPÍTULO IX
A NATUREZA DA RESPONSABILIDADE CIVIL
P-CONTRATUAL
A responsabilidade civil é tradicionalmente dividida, pela
sua natureza, em dois grandes grupos: a) a responsabilidade civil
contratual, que pressupõe a existência de um dever jurídico primário,
caracterizado pela obrigação de uma pessoa de prestar a outra algum
bem da vida e pelo descumprimento dessa obrigação, ou pelo seu
mal cumprimento; b) a responsabilidade civil extracontratual,
caracterizada pelo fato de uma pessoa causar um dano injusto a
outrem, sem que tenha havido entre as partes relação jurídica anterior
ao fato danoso e que com ele tenha qualquer vinculação
juridicamente relevante.
Uma das questões mais polêmicas que envolvem o estudo da
responsabilidade civil pré-contratual, consiste em se definir a
natureza dessa responsabilidade, ou seja, se ela constitui hipótese de
responsabilidade civil contratual, se tipifica hipótese de
responsabilidade civil extracontratual, ou se se trata de um terceiro
gênero de responsabilidade civil, com autonomia em relação aos dois
tipos tradicionalmente reconhecidos.
A definição do tipo de responsabilidade civil de que se está
cogitando é de enorme importância, de vez que cada tipo de
responsabilidade civil possui tratamento específico. As normas
reguladoras da responsabilidade civil contratual e da extracontratual
não são, nem poderiam ser, diante das suas especificidades, as
mesmas.
A solução de um caso em que uma vítima solicite a reparação
de danos que lhe tenham sido causados, vai variar em função de
serem aplicáveis as regras de responsabilidade civil contratual ou as
regras de responsabilidade civil extracontratual. As diferenças vão
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surgir especialmente no que se refere ao ônus da prova, à prescrição
e à necessidade de demonstração ou não de culpa da pessoa a quem
se imputa a responsabilidade pelo dano.
As questões que se colocam em discussão neste momento são
as seguintes: diante de um caso de danos cometidos durante a fase
das tratativas, que regras de responsabilidade civil devem ser
aplicadas, as de responsabilidade civil contratual, ou as de
responsabilidade civil aquiliana? A responsabilidade pré-contratual
possui autonomia suficiente para que se crie um sistema próprio de
responsabilidade civil para regular as hipóteses inseridas no seu
âmbito de aplicação?
O que este trabalho procura demonstrar é que a
responsabilidade civil pré-contratual possui natureza própria, não
podendo ser aplicado, de forma pura, aos casos de danos perpetrados
durante as tratativas, quer o sistema de responsabilidade contratual,
quer o sistema de responsabilidade extracontratual.
O ideal, portanto, diante da sua autonomia, é que de lege
ferenda se estabeleça um sistema próprio de responsabilidade pré-
contratual. Enquanto isso não ocorre, a solução dos casos de danos
cometidos durante a fase das negociações deve se dar com o
aproveitamento de algumas regras e princípios da responsabilidade
contratual e outras da responsabilidade aquiliana, como a seguir se
passará a expor.
IX.1 A teoria da responsabilidade pré-contratual como
responsabilidade de natureza contratual
A caracterização da responsabilidade civil pré-contratual
como hipótese de responsabilidade civil contratual iniciou-se na
Alemanha, por razões facilmente identificáveis.
O Código Civil alemão, como afirmado, contém uma
regulação bastante complexa da responsabilidade civil
extracontratual. Ao invés de inserir no BGB uma regra geral de
responsabilidade civil extracontratual, preferiu o legislador alemão
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criar o chamado sistema das três pequenas r egras de
responsabilidade civil328, cujos preceitos não dão muito espaço para
a solução de certas questões mais específicas, acabando por gerar
algumas lacunas.
Na Alemanha, enormes diferenças de tratamento entre os
casos de responsabilidade civil contratual e extracontratual. Sea
possibilidade, em um caso concreto, de a vítima de um dano invocar
a responsabilidade civil contratual ou a extracontratual, é muito mais
vantajosa a invocação do primeiro tipo de responsabilidade329.
Dentre os vários exemplos das diferenças de tratamento entre
os dois tipos de responsabilidade, cabe citar apenas alguns mais
importantes: a) o dano cometido por um empregado no âmbito do
contrato gera para o empregador a sua imediata responsabilização, o
que não ocorre na hipótese de dano cometido pelo empregado na
responsabilidade extracontratual, em virtude do disposto no § 831
BGB330; b) a pretensão à indenização por danos na responsabilidade
extracontratual prescreve em 3 (três) anos, por força do disposto no
§ 852 BGB, ao passo que, na responsabilidade contratual, prescrevia
328 V. o Capítulo I, deste trabalho.
329 Essa enorme diferença de tratamento resultou na Alemanha no que Eduard
Picker denomina de “hipertrofia do direito dos contratos” (Hypertrophie des
Vertragsrechts), decorrente da inclusão pela doutrina e jurisprudência na
responsabilidade contratual, de diversas situações jurídicas em que não entre as
partes propriamente relação jurídica contratual. Essa hipertrofia causou , segundo
Picker, uma “compressão da responsabilidade civil extracontratual” (allmähliche
Verdrängung des allgemeinen Deliktsrechts) e o receio de uma “generalizada
deturpação fática e dogmática do sistema de resp onsabilidade civil”
(grundsätzliche sachliche und dogmatische Verfälschung der Haftun gssysteme).
Positive...”, ob. cit., págs. 391/392.
330 Segundo o § 831 BGB, na responsabilidade extracontratual o empregador não
tem qualquer responsabilidade se demonstra não ter incorrido em culpa in eligendo
ou in vigilando. Assim, se um empregado, dirigindo um carro da empresa, atropela
uma pessoa, a empresa somente será responsabilizada se re star comprovada a sua
culpa in vigilando ou in eligendo, tendo em vista que são aplicáveis as regras de
responsabilidade aquiliana. Se, no entanto, o mesmo empregado estiver
transportando uma pessoa, em função de contrato existente entre essa pessoa e a
empresa, e o passageiro se ferir, a empresa responde de qualquer maneira pelos
danos por ele sofridos, em razão de o ca so estar submetido às regras da
responsabilidade contratual.

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