O papel do juiz na transformação social - repensando a questão do acesso à justiça

AutorCristina Gaulia
Ocupação do AutorDoutora em Direito pela UVA - Universidade Veiga de Almeida, tendo defendido a tese 'A Experiência da Justiça Itinerante - O espaço de encontro da magistratura com a população brasileira'. Mestra pela UNESA - Universidade Estácio de Sá com a dissertação 'Juizados Especiais Cíveis - O espaço do cidadão no Poder Judiciário'. É desembargadora...
Páginas21-36
O PAPEL DO JUIZ NA TRANSFORMAÇÃO
SOCIAL – REPENSANDO A QUESTÃO
DO ACESSO À JUSTIÇA
Cristina Gaulia
Doutora em Direito pela UVA – Universidade Veiga de Almeida, tendo defendido
a tese “A Experiência da Justiça Itinerante – O espaço de encontro da magistratura
com a população brasileira”. Mestra pela UNESA – Universidade Estácio de Sá com a
dissertação “Juizados Especiais Cíveis – O espaço do cidadão no Poder Judiciário”. É
desembargadora junto à 5ª CC/TJRJ e a Diretora-Geral da EMERJ – Escola da Magistratura
do Estado do Rio de Janeiro (biênio 2021/2023).
Sumário: 1. Introdução – 2. Acesso à justiça – o avanço implacável das injustiças – 3. A angústia da
maternidade de mulheres em situação de prisão – 4. Requalicação e reconhecimento de pessoas
trans – o direito de andar de cabeça erguida – 5. Conclusão.
“Os estudiosos do direito, como o próprio sistema judiciário,
encontram-se afastados das preocupações reais da maioria da população”.1
1. INTRODUÇÃO
Nenhum artigo sobre acesso à Justiça pode começar sem que se revisite o trabalho
de Mauro Cappelletti.
Inúmeras vezes citado, interpretado e comentado, o ensaio “Acesso à Justiça”,
introdução à ampla pesquisa encetada pelo jurista e acadêmico italiano, com a colabo-
ração do professor estadunidense Bryant Garth, e que tomou o nome de “Projeto de
Florença”, tornou-se pedra angular para a compreensão dos obstáculos ao pleno acesso
à justiça, rompendo com a “crença tradicional da conabilidade de nossas instituições
jurídicas” e tomando como premissa um inovador ideário, para “tornar efetivos – e
não meramente simbólicos – os direitos do cidadão comum”, recusando-se a “aceitar
como imutáveis quaisquer dos procedimentos e instituições que caracterizam nossa
engrenagem de justiça.2
A pesquisa, publicada em 1975, mobilizou pesquisadores e estudiosos do tema do
acesso à justiça e das demais ciências sociais de vários países do então chamado primeiro
mundo, e de alguns países da América Latina.3
1. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Fabris, 1988, p. 10.
2. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Fabris, 1988, p. 8.
3. Eliane Junqueira aponta que chamou “a atenção a ausência do Brasil no Florence Project, enquanto outros países
da América Latina (como Chile, Colômbia, México e Uruguai) se zeram representar, relatando suas experiências
no campo do acesso à justiça” (JUNQUEIRA, Eliane Botelho. Acess o à Justiça: um olhar retrospectivo. Revista
Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n. 18, 1996/2, p. 2).
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A partir de Cappelletti deixa-se de lado a tradição da hermenêutica de manuais,
meramente lógico-formal do processo civil, inaugurando-se um movimento de com-
preensão sensível de que “a titularidade de direitos é destituída de sentido, na ausência
de mecanismos para sua efetiva reivindicação.4
E esse norteador é importante principalmente no Brasil, país de desigualdades
sociais e econômicas abissais,5 em que a Constituição estabeleceu no inciso XXXV do
art. 5º6 um princípio constitucional de acesso à justiça como direito fundamental, mas
no qual milhares de pessoas ainda cam à margem do sistema de justiça.
A garantia de um acesso amplo à justiça por todos e todas, igualitário e sem obstácu-
los, passa a ser portanto uma questão necessariamente inerente à prestação jurisdicional
propriamente dita, assumindo uma dimensão valorativa preliminar, um pressuposto à
jurisdição justa, do qual os magistrados não se podem mais alijar, pena de descumprirem
o princípio da vedação do non liquet.7
Essa necessária visão ampliada do papel dos juízes, começa antes mesmo que lhes
cheguem às mãos os requerimentos das partes e traz consigo uma mandatória revisão
da posição tradicional de inércia destes servidores públicos qualicados. E essa nova
realidade impõe outros deveres e obrigações que se coadunem com a terceira onda
cappellettiana: o novo enfoque de acesso à justiça, que pretende garantir a justiça e o
acesso a esta, não só por meio das vias alternativas de solução dos conitos, mas também
disponibilizando meios alternativos de acesso ao próprio Judiciário.
As “ondas renovatórias do acesso à justiça” foram portanto de magnitude surpre-
endente em um momento da história do direito em que não existiam as facilidades da
tecnologia da informação moderna, e não se ousava pensar fora dos rígidos ditames
processuais assentados.
Cappelletti e Garth apontaram então as barreiras que se opunham ao acesso igua-
litário de todos à justiça, bem como algumas sugestões de soluções práticas a serem im-
4. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Fabris, 1988, p. 11.
5. “José Bonifácio armou em representação enviada à Assembleia Constituinte de 1823, que a escravidão era
câncer que corroía nossa vida cívica e impedia a construção da nação. A desigualdade é a escravidão de hoje, o
novo câncer que impede a constituição de uma sociedade democrática. A escravidão foi abolida 65 anos após a
advertência de José Bonifácio. A precária democracia de hoje não sobreviveria a espera tão longa para extirpar
o câncer da desigualdade” (CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 11. ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 229). A percepção de Bonifácio, trazida por José Murilo de Carvalho é
extremamente atual, e foi pertinentemente estudada pelo sociólogo Pe dro Ferreira de Souza que pesquisou a
história da desigualdade de renda no Brasil pela observação da concentração dos mais ricos no topo da pirâmide
econômica, concluindo não haver no âmbito internacional “exemplos de países que tenham partido do nível
de concentração no topo registrado por aqui – próximo a 25% para o centésimo mais rico – e tenham avançado
de forma lenta e segura, sem sobressaltos, tragédias ou quebras institucionais, para o patamar observado na
maior parte dos países ricos e mesmo em desenvolvimento, em torno de 10%”. (SOUZA, Pedro H. G. Ferreira de.
Uma história da desigualdade: a concentração de renda entre os ricos no Brasil, 1926-2013. São Paulo: Hucitec:
Anpocs, 2018, p. 280).
6. Constituição Federal da República Federativa do Brasil, 05.10.1988. Art. 5º inciso XXXV: a lei não excluirá da
apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
7. LINDB – Decreto-Lei 4.657, de 04.09.1942 com atualização da Lei 12.376, de 30.12.2010. Art. 4º: Quando a lei
for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.
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